quinta-feira, 17 de junho de 2010

SOBRE A FRAGILIDADE DE OSSOS [POEMA]

Não há vez para arbítrio livre
Aceitas já são ordens em detrimento da conveniência
Vontades são outras
Arrogância quer buscar além de sua beleza
Não dá mais para tolerar o conhecido e o reconhecível
São claras as regras
Voz deve ir, e não pode voltar sem retorno
Algo inigualável e coisa sublime precisa trazer consigo
A estirpe requerida não é nobreza
É mais: sensibilidade que saiba transgredir
Se nota aí o porquê de tanta dificuldade com incumbência lançada
Não é a qualquer um que modificador desse porte se faz respiração
A espera é longa e ainda pode durar mais
Paciência não casou com eternidade
Idade já pede companhia
Basta de sonhos vadios
Necessidades inéditas exigem outras extravagâncias
A ambição que se firma em mim não tem pernas
Ela desliza ampla
E excitada pela introspectividade devassa
Aspira domínio de si em outrem
Vastidão a se encher continuidade:
Fluxos, mais que meras experiências.
Agora sou posse à mercê de Senhor
Prêmio exposto sob as vestes do ócio
Sobre a fragilidade de ossos, finco residência
Renunciando liberdade de expansão, me torno limites.

Dió. Salvador-ba, 13 de agosto de 2009, às 22h e 24min.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

De olhos abertos [poema]

Depois dum dia cheio e estressante
Finalmente chegou a Noite
Com ela, o sono deitou sobre o cansaço
E me levou pra outros lugares...


Vastos campos onde a Natureza era cortesã luxuriosa de si
Embriagada de Beleza, expelia formosura:
Fabulosos jardins, fontes fantásticas,
cercas de montanhas sempre-vivas
Pássaros cantores e árvores dançarinas
Não existia fim. Tudo era gigantesco e belo
E os olhos corriam alegres
Eram meninos levados outra vez

O ar não pesava, gostoso de respirar
Sem calor nem frio, o espírito se acalmava
Em outro tempo que não conhecia pressa
E paz entrava vitoriosa e triunfante no satisfeito vencido
Era o paraíso? Não. Ainda não
Era apenas uma amostra de parte do que
Os desejos manifestados em realização
Podem desfrutar àquele que Ousa
E lá estava Ele sob a proteção da varanda de sua mansão
Que espécime humano! Causava inveja benigna a qualquer um
Pois Ele não era qualquer um
Era a materialização da Conquista em sua melhor forma e aparência

Aí veio a manhã
O Sol fazia dengo no meu rosto
Me trazendo outra vida
Logo tive um assalto de sorriso e risos soltos, livres, travessos
Tudo tinha sido sonho...
Como é maravilhoso sonhar!
E que venham as noites com seus sonhos
Mesmo quando ainda for dia

Diógenes Pereira da Silva. Salvador-ba, 10 de junho de 2010.

 

Ainda é vivo [poema]


Sonhar. Ter sonhos é maravilhoso

E senti-los na vida como ágoras

É mais fantástico ainda!

E o que passa é aproveitado, deixando relevos na alma

Passar, passado, passando, passará. Nada escapa. Fluxos é a ordem.

Assistir ao nascimento de cada montanha

É presenciar o irromper de mais um desejo...

Desejar em desejado é apenas início

Mais coisas chegam

Principalmente quando é a ausência

O piso no qual a cama repousa resignada.

É... Já fui homem maximizado.

Só homem pra ter noção do que é se sentir homem

Por meio dum sentimento que só cabe aos homens: AMIZADE.

Cumplicidade além fronteiras

Mesmo quando não se rompe o físico

– É preciso do corpo pra provar alguém?

Muitos pensam que sim, mas já há a certeza que não!

Existe rara exceção.

E ela só acolhe a poucos,

Aqueles que se permitem ao carinho de ver a si

Na conquista e sucesso do outro.

Sou orgulhoso. A soberba fez fortaleza em mim.

Também não foi por menos

Não é qualquer um que pode ostentar a atenção de um puro de coração.

O sorriso é face do espírito.

Certeza: uma vez amado, sempre haverá vontade nascente de volver contente ao passado

Que não descansa de reclamar o presente.

Amar é bom, e amar sorrindo, sabendo que existem mãos fortes pra lhe guardar,

É mais fabuloso ainda!

É lindo presenciar o sol namorar a baía

Que o recebe completa no nascer da noite...


Diógenes Silva. Ssa-ba, 04.06.2010.

Após [poema]

Frio. Faz frio com generosidade

E já não tem mais casaco acolhedor

É difícil olhar o espelho agora

Não encontro mais face alguma

Pior: não foi mais um que se foi

Nunca é mais um

Porque todos são uma sequência

de amadurecimentos nas experiências.

Deixou marca. Sempre fica. Olha aí uma coisa boa

Dor. Chorar também é bom.

Hoje, chorei com fartura duma única lágrima

E me escorri até o vazio atormentador

Ruim não é olhar em volta

Sempre tem gente e coisas, e coisas

Terrível é ver a si

E notar o que não se quer perceber

Vaidade se foi

Fôlego abafado

Boca que não tem vontade

Sim, é um agora

Mas ele não passou

É ainda um agora

E isso é foda

Os dedos no momento são ociosidade

A mente, maresia inerte num nada

Confuso que converge numa ilha de sensações

Que me esfolam de dentro até aquilo que foi forjado

Ser minhas curvas e retões

Silêncio. Silêncio outra vez.

Se permanecesse assim, talvez...

Não. O barulho é bom

E ele já está aqui. Tímido, mas está

Já o sinto mesmo ainda relutando contra a resignação inevitável

– Há coisa mais teimosa que esperança?

Ela também se cansa.

Deixa... Vai secar como tudo que não se alimenta

E não tarda visitar as Quintas.

Ainda não tenho o barulho como amigo

Mas logo terei

E outras vez serei água

Com vontade de ser chuva.

Rio precisa comer

E Oceano tem cede de Rios

Após a morte, sempre existe vida.

Tempo ao tempo para que o sorriso volte.

Ai como rir era bom...

Lembranças... Lembranças que não passam de só lembranças.

Mais uma foto no álbum da vida

Que venham os cliques!



Dio. Ssa-ba, 26.05.2010.

ocorrendo [poema]

Chove. Chuva é tão gostosa...
Cai geladinha sobre o corpo
Beijando ele satisfeita
Porque há mais que vida
Ocorre desejo.
O coração logo se anima em sua certeza
Mas que só bater,
Delira ao sabor dos sonhos soberbos de si
Delirar é delicioso. Pirar, experiência única!
Insanidade reclama outra razão
Não existe mais paz
Agitação é toda alma
Alegria pros dedos inquietos
Que procuram na pele do outro
Topografias duma geografia apenas permitida a aqueles
Que se achegam pelo cheiro
Saborear as diferenças indispensáveis
Através das afinidades necessárias
É se expandir criança pelo quintal farto
Onde tem muita fruta, muita cor, muita forma
Muitos sabores muita coisa a descobrir, a desvendar
a provar e compartilha porque não dá pra respirar só
Fome não falta
Olhos não param
Pernas não cessam a vontade de sustentar apenas um corpo
União é reclamada aos suspiros dos encontros
Cumplicidade é de poucos e pra raros
Onde há lábios em contatos,
Ocorre a imaginação farta:
Possuindo e possuído em liberdade refrescante.
A vida sempre vem
Até quando se sente dor
Nada é gratuito
É certo vida escapar pelos dedos
Então só resta aos sábios loucos
Tocar a boca no fogo que não queima
Apenas alimenta o desejo de se ver bem no espelho
Vire. Me fite. Enxergue em mim além do medo,
Sinta aquilo que sempre quis,
E nunca se permitiu ousar
Viver é pra poucos
Viva! Levante!
Pegue em minha mão
E vamos juntos pelo mundo das descobertas...
Muitos caminhos nos esperam
Amar é maravilhoso
Deixe a paz fazer do vazio
O oceano de sensações inacreditáveis
Sorria!
Rir é muito bom!

Díógenes Pereira da Silva. Salvador, Bahia, 25 de maio de 2010.

Dedicado

Com carinho, respeito, admiração, atenção
uma pessoa que tem fome de vida e
deseja ser a pessoa: o reflexo no espelho

Um dia de exílio [texto abstrato]

Com certeza, hoje não foi mesmo um dia como os outros! Muitas coisas aconteceram e outras tantas, não. Calma, você logo-logo vai entender tudo. Um pouco de suspense faz bem, pelo menos às vezes. Apenas venha me acompanhando nessa conversa. Se desligue de tudo ou quase tudo e se jogue naquilo que quero que seja o nosso rio comum onde vamos tomar um bom banho...


Você há de convir comigo que todos os dias ocorrem problemas, aborrecimentos, frustrações, desastres de magnitudes variadas. Que isso é até normal, né? E achar que eu estou exagerando. Pode até ser a depender de como você encare as coisas e de que forma sua sensibilidade e percepção das coisas esteja agora. Portanto, lhe convido à permissibilidade luxuriosa e libertina, puta mesmo, mas não uma puta qualquer. Uma Puta soberbamente ciente de todo seu potencial e superioridade, jactosa da sua beleza, arrogante de sua sedução e firme na sua malícia devassadora de qualquer máscara! É difícil, né? Não é qualquer um ou uma que pode ser Puta. Sei que muita coisa não é fácil mesmo. Ainda mais ser uma lindíssima Puta, que tem a todos, e ninguém a tem. Liberdade em sua máxima manifestação. Que inveja das Putas! Tudo bem. Não exigirei muito. Não precisa ser, basta estar. Ou se quiser, pode arriscar ser um mendigo ou até um andarilho renunciante. Todos eles são livres, são a manifestação da subversão e o romper das convenções; pelo menos de muitas das quais jamais nossa conveniência ousaria afrontar. Eu ainda prefiro as Putas, sabia? Mas vá lá. Escola qualquer um entre eles e venha. O importante é vir. Combinados?

Tudo pode ser solucionável, sim. Até aquilo que acreditamos não ter jeito. O que acontece é que ainda não é o momento de descobrir como resolvê-lo. Afinal, somos uma espécie dotada de inteligência e inteligência. Podemos nos adaptar a praticamente tudo; superar muitas coisas; aprender e crescer com as experiências. O problema é que muitíssimos se acomodam com o conhecido e temem o novo e o estranho, recepcionando a mudança com certa aversão. Atrofiamento ignorante. Proteção néscia. Limitação retrógada. Restrição definhante e suicidada. Então, pra que esperar? Venha comigo. Vamos juntos nessa.

Visto que o modelo de vida que adotamos tende a nos levar pra automatização, “robotização”, petrificação, violência e renúncia de algo que nos faz Ser Humanos (o amor, amor de si, amor ao outro e amor universal, tornando-nos estúpidos e burros de todos e principalmente de nós mesmo), só nos restas, como saldo, o descontentamento, a insatisfação, a fadiga, a ansiedade monstro, o desespero, a depressão, a frustração e a inevitável tarefa árdua e falida de representar. Fingimos sempre ou quase sempre ser o que não somos: bem sucedidos e felizes. Para isso, nos valemos de muitas coisas, como: seguir os paradigmas da sociedade (tendências, modas, imitar celebridade, frequentar lugares badalados, concordar com “verdades” sem ao menos ter um mínimo de sadia vontade de questionar, calando-nos em nossa modorra resignação). Como compensar a perda de Vida? Consumir, consumir e consumir. Para os muitos que não podem consumir o delicioso bolo de tapioca com recheio de graviola caramelizada e cobertura de cajá, resta apenas empurrar o angu de água e sal mais carne seca com uma jará farta de água ou kissúqui. O que vale é consumir. Ou pelo mesmos desejar consumir. E é nessa que nos tornamos prisioneiros de uma prisão sem muros cheia de selas: o mundinho de frustrações que é cada um de nós.

Uma das selas da prisão sem muros onde residimos é a tecnologia. Quem algum momento consegue ficar alguns estantes sem acessar alguma parafernália tecnológica, que ironicamente teve a razão de sua existência a facilitação de nossa vida, dando-nos mais tempo livre pra fazer o que mais gostamos: nada? O irônico é que quanto mais tecnologia surge, proporcionalmente menos tempos acreditamos ter. Todo mundo só anda com uma frase na boca: não tenho tempo nem pra respirar. Minha vida tá uma loucura. Sempre desejando mais e mais tempo pra fazer e adquirir mais e mais bens, pois a lei é: serei feliz quando eu tiver... Sou o que tenho. Se a vida dela tá uma loucura tendo a ajuda maravilhosa do micro-ondas, carro, avião, ferro-de-passar elétrico, panela de pressão, forno a gás, geladeira, supermercados, celular, notebook, drive-thru, self-service... Imagina a vida das pessoas há 1000 anos? Acho que elas, mesmo com sua rudeza e singeleza, deveriam ser menos estressadas e frustradas, tendo mais tempo pra fazer o que mais gostavam, rindo e amando. Coisas cada vez mais raras de encontrar hoje em dia.

Foi aí que pirei! Cheguei em casa no ápice da tortura e resolvi fazer o que há tanto tempo deseja, e não tinha coragem. Tomei um gostoso banho gelado, comi duas bananas, um goiaba e três deliciosas rodelas de abacaxi acompanhadas de um revigorante suco de jenipapo e me tranquei no quarto. Antes, precisava me certificar de que meu exílio seria completo. Desliguei e desconectei todos os aparelhos eletrônicos, principalmente o telefone fixo, o cel, o computador, a TV, o rádio, desconectei a net e até interrompi o fornecimento de energia da casa. Fechei todas as portas. Só a janela dos fundos ficou aberta, exibindo a beleza diferente do favelão que tava logo ali após meu quintal.

Incomunicável! Estava em minha fortaleza. Coloquei um lençol limpíssimo na cama, botei tapadores de ouvido e uma viseira sobre os olhos e mergulhei no abissal de minha introspectividade ociosamente deliciosa. Delirei como nunca sobre e sob todos meus desejos e sonhos possíveis, impossíveis e até aqueles que fogem a minha compreensão e classificação. Apaguei. Esqueci hora, civilização. Me desconectei por completo de todo o mundo forjado pela maquinação humana e aportei seguro na Paz de apenas inspirar, expirar e metabolizar o extremamente necessário à manutenção do existir. Apenas dormi na morte temporária. Estava em outro espaço-tempo. Quem sabe tive a experiência da morte, uma outra Morte: a morte do humano moldado e modelável? O certo é que deitei ao meio dia e só levantei às 5h do outro dia, a tempo de ver o dia amanhecer com o sol imperador ainda bebê, como nunca tinha visto antes! Gozo terreal, estúpido, bestial mesmo! O melhor: com a sensação maravilhosa de paz, leveza e corpo e mente renovados. Parecia que eu tinha apenas 3 aninhos de idade, sem alguma preocupação ou culpa. Aliás, naquele agora, tinha mesmo. Era só uma criança em iniciação, para qual tudo é novidade, brincadeira, descoberta e prazer. Estava leve. Éramos apenas Eu e Eu mesmo: mais uma criação da Natureza que se harmonizava como toda a Criação que me circundava, atravessava, sustentava e envolvia. Sorria à toa. Um bobo que causaria inveja a qualquer abestalhado, palhaço, lunático. Era uma nova pessoa que tinha acabado de nascer ali... Sensação única, difícil de relatar, só vivenciando pra saber mesmo.

Tá esperando o quê? Já vá ensaiado o seu dia. Ouse. Abuse. Transgrida. Irrompa. Se permita. Com a certeza da experiência, afirmo que você não vai se arrepender. Pirar o cabeção de vez em quando é maravilhoso! Fantástico é ser louco; caso não queira ou não possa, então se jogue no estar pirado. Mandar tudo e todos pra casa da Porra às vezes é aliviante. Tente.

E os passarinhos cantavam, as árvores falavam ao arrochar dos ventos, os cachorros latiam satisfeitos, os gatos espiavam e meu coração batia como nunca, rindo, se comunicando com todos; era a Vida! Sorrir é bom...

Diógenes Silva. 22 de maio de 2010.

Êh lá em casa! [crônica]

Tinha acabado de sair d’academia. Era pouco mais das oito da manhã duma sexta-feira movimentada na principal avenida do Cabula, a Silveira Martins, quando fui arrancado de meu mundinho introspectivo repleto de pensamentos vários. Me assustei! Por que todos que estavam nos carros na fila interminável do congestionamento olhavam ávidos para trás de mim? Minha curiosidade não resistiu e num giro só me voltei pra trás. Adivinha o que era. O óbvio. Só os homens olhavam com caras, gestos, bocas e piadinhas. Bonita moça, bem feita de corpo, estava caminhando logo atrás de mim, indo pra mesma direção que eu ia. Como sou míope, não pensei duas vezes. Atrasei os passos e deixei que ela passasse por mim pra ter a certeza que tanto burburinho masculino tinha razão.

A bela e formosa moça passou, e que passagem, heim? Se vestia dentro da normalidade baiana para sua idade e saúde: camisetinha regata, calça jeans justa, sandália rasteira e cabelos presos. Andava com firmeza e leveza, dançando seu largo quadril apoiado por grossas coxas. Olhar fixo e face séria. Parecia ignorar os úrus dos machos que não se continham com tanta gostosura. Ela, aparente indiferença a tudo. E isso em vez de inibir os machos, parecia que os instigava mais ainda. A moça bonita não era qualquer uma. Era um troféu que pouquíssimos tiveram, têm ou poderão ter acesso. Pelo menos eu achei isso na hora. Com tanta beleza e seriedade soberba e arrogante, ela deveria ser muito exigente. Ou talvez não. Vai saber. Imagem é tudo, menos o esqueleto da personalidade e o cérebro da conduta. Retornando, imagine como a imaginação e a libido dos caras não estavam. Como as cabeças deles deveriam estar agitadas. Falo das duas: a de cima e a de baixo, porque nessas horas quem domina o homem é a cabeça menor. Pareciam cachorros no cio em bando atrás duma única fêmea, sem noção nem temendo o perigo.

Entretanto, o que me chamou mais atenção não foi a moça em si. A exposição à qual ela foi arremessada por todos em plena via pública foi outdor e vitrine de invejar qualquer publicitário ou Gisele Bündchen. Todo mundo a olhava como se ela fosse algo de outro mundo. E era mesmo! Verdade seja dita: perfeição da natureza como aquela não é fato corriqueiro no dia a dia do povo simples da Ville Du Cabula (pronúncia: viL dI cabILá). Quem perderia a oportunidade de secá-la com os’ói? Os transeuntes, os ocupantes dos carros e ônibus, os passageiros que estavam no ponto do busu, enfim, tudo que é homem olhava mesmo. Ah, mulheres também bisbilhotavam. Era outro olhar é certo, mas olhavam, sim. Acho que você já dá pra imaginar, né? Mulher olhando fixamente outra que seja muito bonita e bastante cobiçada por muitos homens não deve pensar boa coisa... A maioria olhava a moça de canto de olho, medindo a coitada de cima a baixo, com certa ou completa reprovação. No ar, muita inveja, isso sim! Péra! Exagero meu. Também havia aquelas que sentiam na alma o drama da moça. Qual mulher não tem um causo parecido pra contar? Quem de alguma forma não se identificou com toda aquela exposição e até sentiu pena da coitadinha, reprovando a agressividade da libido masculina, pra não falar falta de respeito e consideração ao próximo? Até mesmo as feias já tiveram ou terão a chance de ser showzalizadas algum dia. A paquera gentil é até bem vinda. Qual muié não quer ser desejada, admirada e cobiçada pelos homens. Isso infla o ego, faz a pessoa se sentir bem, viva, chegando em casa radiante, rindo à toa! Mas da forma aqui contada não. Aí já são outros 500. Verdadeiro absurdo, daqueles de cabelo de sovaco de 20 metros de comprimento e ainda pingando suor de CC.

Péra! Ainda não acabou, não. Além dos olhares, a moça foi OBRIGADA a ouvir e escutar, numa educada resignação, cada cantada mais tosca e vil que outra. De gostosa, tesuda, maravilhosa até outras que não convém reproduzir aqui. Foi uma enxurrada de palavras e frases terríveis. Imagina como a bichinha estava por dentro: vergonha, nojo, raiva, ódio, aterrorizada... Tive pena dela. Ela foi mais uma de tantas vítimas por’aí do machismo e da má-educação de nossa sociedade, a qual permite essa afronta e desrespeito da dignidade feminina. Aliás, não só a feminina, não. Com o grito de liberdade das mulheres e a auto-afirmação dos homossexuais, cada vez mais é comum ouvirmos galanteios vindos de muitos lugares e indo para outros tantos jamais imaginados há pouco tempo atrás. Isso que é liberdade, permissibilidade e escrachamento público de um cidadão, o qual é exposto até sua “cueca” e “calcinha”. Se é que os tem, né? Imoralidade, abuso sexual, desmoralização? Que nada! Pra quem olha e/ou comete o abuso, tudo é normal; e pra quem vivencia como vítima, é o completo terror sair de casa e transitar entre os famigerados dominados pelo apetite sexual platônico, acalentado apenas pela masturbação. Ai de muitos se não fosse a pueta, heim?!

Ousadia desmedida e exposição escandalosa trazem mais que vergonha, irrompem nojo, aversão, ódio. Se você é mulher, é mais fácil tentar imaginar como a cabeça da moça deveria estar na hora. Acho que se ela pudesse, evaporaria dali num milésimo de segundo! Absurdo! Por que ainda permitimos coisas como essa? A resposta vem em plural. Não é competência desse texto. Basta lembramos que tudo isso e muito mais fazem parte da nossa cultura infelizmente. O macho domina, mesmo não sendo macho. E é sua conveniência que contribui, em boa parte, para o forjamento da moral e da conduta. Até as mulheres são machistas, umas mais que outras, além das exceções, é claro. Criamos nossos filhos para serem machos e as filhas para serem complacentes a eles e aos seus desejos, vontades, caprichos e movimentos agressivos e promíscuos. Viva ao mundo dos Homens e as delícias que ele proporciona a todos!

Diógenes pereira. Salvador, 21 de maio de 2010.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Não tem como ignorar [crônica]

Já ouvi muita gente falar que dia de aniversário é mais um dia comum. Até poderia ser se alguém conseguisse ser indiferente a ele por completo, não se lembrando dele por um instante que seja ao longo do dia, não esperando que outros se lembrem também e venham lhe prestar alguma forma de homenagem. Não dá! Ficamos, sim, na expectativa, mesmo que minúscula, apática e frustrada. Queremos ser notados. Desejamos a atenção alheia, principalmente daqueles que estimamos. Precisamos nos orgulhar de algo em nós, aquilo que atrai o outro, que nos faz ser admirados, amados, respeitados e até mesmo temidos – a quem goste de trocar o amor pelo temor. Prazer se sente de várias formas. – inflar o ego, mesmo que um pouquinho só (não precisa ser um baiacu, não), é necessidade de todos. E justamente o dia de aniversário é um ótimo momento para estarmos em evidência. Quem perderia essa chance? (risos)


Por incrível que pareça, há muita gente que tenta pensar e força querer que o dia em que se completa mais um ano de vida é mais um entre os milhares que já gastou. Os motivos pra isso podem ser muitos, como: desilusão, depressão, dor, sofrimento, frustração e até conveniência! Enfim, mesmo com algum problema ou algum desejo que pareça – e até é – estranho para muita gente, a luta para tentar esquecer o níver é em vão. Não tem como ignorar esse dia único. Ele só acontece a cada 365 dias! Mexe, sim, muito com todos nós. Para alguns, ele traz sentimentos, sensações e lembranças boas e muito boas; para outros, um passado-agora terrível e extremamente doloroso. Não importa como e a intensidade. O fato é: ninguém está livre da ansiedade provocada pelo dia de aniversário. Senti isso na pele.

Na semana que antecedia meu aniversário, eu já estava muito ansioso. Detalhe, eu geralmente passo a ideia de que sou meio que desligado dessas coisas (mentira! – Risos). Só pensava no dia e o que eu iria fazer. Dois dias antes, eu já nem dormia direito. Na véspera, insônia monstro. No dia, ócio total. Nem querer e ir trabalhar eu quis e fui. Simplesmente, com a cara mais lavada, liguei para chefe e disse que estava com disenteria apocalíptica (assim mesmo, com todo o drama do mundo) e que não poderia sair de casa. Se ela acreditou ou não, isso nem me importava. Queria era my Day off na tora mesmo (risos). O dia precisava ser meu. Eu tinha que fazer o que queria: NADA! E nada fiz. Só fui malhar, assisti TV, li algumas coisas, gastei a net, fiquei à merda. Nem aí pra nada. Bem, também não foi tanto.
O dia inteiro entre idas e vindas de um cômodo a outro da casa, eu ia olhar o cel, o Orkut, o Facebook, o Twitter, o MSN e até a caixa de correio olhei toda hora – vai que um(a) romântico(a) de plantão resolvesse mandar uma carta pra mim à moda antiga. Vai saber. Muita coisa é possível. Não podia deixar uma possibilidade sequer de lado. Todas eram dignas de nota. – Ficava na completa expectativa de saber quem lembrou e quem ainda não se tocou que era o MEU dia! Pior: quando percebia que aquela pessoa mais estimada ainda não tinha me ligado ou mandado alguma mensagem, ah... Aí que a ansiedade pirava mesmo! Será que o desgraçado e a miserável não vai lembrar que hoje é meu níver? Nem uma ligaçãozinha, nem um sms com um simples parabéns, nem um recadinho sem sal na net. Impossível! Como pode tanta insensibilidade? Quando via, o alívio chagava. Suava, viu! Foi um dia tenso. Felizmente a noite chegou.

Com a noite, o dia de tormentas chegava ao seu ápice. Era o momento da consagração. Amigos reunidos. Todo mundo pagando pau para mim. Que maravilha! (Risos) Num restaurante carérrimo, novo espaço de badalação da City, armei meu palco. Não poderia ser em qualquer lugar que iria comemorar meu dia, né? Tinha que dar o melhor para mim. Afinal, não é todo dia que a doméstica vai à boate. Era o dia de esbanjar, gastar o que tinha, o que não tinha e o que ainda acreditava que um dia ia ter – sabe lá quando! – A ordem era vamos estourar tudo, se endividar, hoje é o dia do póóóde, mesmo não podendo (risos). E os amigos lá animando tudo, ajudando a me empurrar para desgraceira. O que todo mundo queria era diversão, não importando as consequências disso.
Do começo ao fim, foi um festival de breguice, puxassaquice e muuuiiita zoeira. Conta piada aqui, sacaneia ali, abusa de lá. Tinha que ter muito barulho e animação. Sem isso não é aniversário. Mas o mais bizarro chegou: o bater palmas de parabéns pra você. Babado! Nem te conto (risos)! Em coro, começou com os meus convidados em minha mesa, que havia reservado com uma semana de antecedência. Uma que ficava bem no centro, visível a todos. Depois todo o restaurante já estava na mesma onda. Gente que nem conhecia e que nunca tinha visto me aplaudia e sorria para mim. Eu transbordando de vergonha e me inflava de satisfação. Consagração! Eu era o cerne da atenção de todos. Star, Um Very Impotant Person genuíno. Simplesmente brilhei. Não! Mais, muito mais. Nada de simplicidade. Glamour, muita luz, muito brilho, muita cor, muito, muito de tudo (risos). Brega era luxo. Tinha gente que fazia bico e virava a cara. Não estava nem aí para eles. Era eu, eu e eu apenas. Egoísmo e vaidade a 800 km/h! Pouco era uma palavra que não queria ouvir jamais naquela hora. Chega de privações. Queria era esbanjar, chutar a lata e gritar para o mundo: EU SOU O CARA! E cachaça para dentro. Tome-lhe água de burro, com direito a discurso e dancinha ridícula em pleno restaurante dos bacanas – pense na farofada (risos).

No dia seguinte, além de dor de cabeça, ressaca moral. Meu Deus, como tive coragem de... (Risos). Já foi, né? Como dizem por aí Inês é morta, Menino. O jeito era concretizar as oportunas palavras de Marta Suplici: relaxe e goze. Goza até gozei, bem no pretérito. O difícil era relaxar. Bem, o que importa é que para o ano tem mais. Outras extravagâncias virão. Então, salta os cachorros, Maria! (Risos).

Diógenes Silva. 17 de maio de 2010.

Mais que água e óleo: rico e pobre [crônica]

Faça um experimento: pegue uma garrafa de refrigerante vazia de 1L e acrescente 250 ml de água mais 250 ml de óleo. Tampe a garrafa e em seguida sacuda bem. Resultado: uma mistura nada homogênea que logo se desfará, voltando a ser água (no fundo) e óleo (por cima). O mesmo se dá com pobres e ricos. Eles raramente se misturam. Quando acontece isso, é o mesmo fenômeno que água e óleo. Provas são abundantes. E eu tive mais duas no domingo posterior ao feriado de 1° de maio.


Um domingo como muitos outros. Eu estava bastante entediado. Monotonia, monotonia e monotonia. Sempre os mesmo lugares pra ir e as mesmas coisas pra fazer com as mesmas pessoas de companhia e presença. Aí pensei: preciso fazer algo bem diferente já! Pesquisei na net, perguntei a amigos no MSN, olhei revistas de tendências. Nada outra vez. Quando já abeirava à resignação, vi na TV uma reportagem sobre parques, reservas ecológicas e zoológicos. Não deu outra! Encontrei o passatempo perfeito pr’aquele domingo entediante: visitar o Zoo. De pronto, liguei pra dois amigos bem diferentes entre si: um introspectivo, sereno e culto e o outro extrovertido, agitado e (digamos) deliciosamente abobalhado – adoro! – Marquei com os dois e fomos todos pra lá de busão, já que ninguém tinha carro – oi, que falta faz os amigos riquinhos nessa hora (risos), mas deixamos eles kétus porque para essa aventura eles não serviriam como fermento.

Depois de passar quase uma hora mofando à espera do ônibus que nunca chegava, conseguimos pegar o bendito. Mais 57 minutos de para-para em sinais, pontos de busu, trânsito intenso em pleno domingão, e chegamos ao destino almejado: o Zoológico de Salvador, que fica no tradicional bairro da Ondina. Logo na entrada do Zoo, fiquei espantado com a quantidade de pessoas, sobretudo crianças – pense no terror! –, caminhado pro mesmo lugar. Seria possível que todos estavam indo pra lá também ou era algum evento qualquer grátis que estava ocorrendo por perto? Não demorou e eu obtive a resposta.

Sim, não tinha festa alguma. A multidão de mães e pais, quase a perder a paciência com seus terríveis monstrinhos traquinos, perguntadores de tudo e ávidos pelo consumo de bobagex degustativas e lúdicas, estava indo mesmo ver os animais do parque – vamos lá: a ordem é comer besteira, engordar e lascar com a saúde tanto da gente como dos coitadinhos dos animais (risos). Afinal, raros são os que respeitam o aviso Não alimente os animais selvagens. Que nada, eles também merecem provar das maravilhas de nossa gastronomia (e com ela, terem as perspectivas de doenças cardíacas, diabetes, câncer...). Educação e civilidade beirando o nível zero. Ou não. Depende do referencial, né?

Nunca passaria pela minha cabeça que o Zoo poderia ser tão visitado. Contudo, o maior espanto foi a UNANIMIDADE do público frequentador. Não vi uma pessoa sequer que aparentasse pertencer às classes mais abastadas. Todos eram do povão merrrmo, com direito a cabelo alisado à base de fero, ou chapinha, ou progressiva, bolsas coloridas, tops e shortinhos sensuais e muitos (muito mesmo) óculos de sol, boné e tênis made in camelô. Era a festa da periferia em pleno rincão dos Doutores. E como na Bahia pobreza tem cor, formas e movimentos, todo mundo portava em si a sua porcentagem de pretude desde a textura do cabelo, passando pelos traços do rosto, a cor da pele até a disposição pro riso e pr’alegria deliciosamente espalhafatosa. Verdadeira nuance. Outra beleza. A baianidade pululava ali com efervescência! Lugar magnífico pros antropólogos, filólogos, linguistas, psicólogos e toda gente que gosta da simplicidade e espontaneidade da gente simples, que ri fácil e se anima com tudo, precisando de muito pouco pra gozar.

Terminado o passeio atípico dominical, chegou a noite e com ela a fome. Resolvemos ir direto pr’uma famosa creperia ali mesmos, pertinho. De cara, o choque: ambiente de muito luxo, ostentação, exibição, vaidade. Desfile de grifes, últimas tendências da Civilização Ocidental. Muito burburinho. A paquera rolava solta entre os playboys e as patizinhas. O brasileiro se misturava livre com duas ou três palavras do inglês para cada frase proferida. Os papos eram outros sem dúvidas. Realidade, bem distinta daquela de pouco tempo atrás ali no Zoo. De imediato, só se via os brancos típicos das Terras Brasillis pipocando entre as mesas – depois dizem que não existem brancos na Bahia... Aonde?! Eles são os herdeiros da antiga aristocracia e oligarquia rurais desde a época da fundação de Salvador e da riqueza da cana de açúcar no Nordeste. Os mantenedores do poder em detrimento da massa volumosa dos negros e descendestes abandonas e esquecidos sobre as encostas-manteigas dos morros que derretem a qualquer pancadinha de chuva mais forte. Salvem-se quem puder! A Bahia é aqui. – Os únicos não brancos, ou de cor (como muitos chamam pejorativamente), ou simplesmente pretos, negos ou negão era a gente e os funcionários do estabelecimento. Me senti deslocado completamente. Nós éramos os extraterrestres ali; diferente do ambiente anterior, onde éramos mais um no meio da muvucada. Olhares de reprovação não faltaram contra nós. Se pudessem, arrancavam a gente dali aos murros e chutes. Era como se pensassem Onde já se viu! Que disparate! Não sabem mais onde é o seu lugar não, Gentalha?! E nós apenas erguemos a cabeça, fitamos nosso olhar provocante em cada um e fomos soberbos pra nossa linda mesa bem à vista de todas e todos. Afinal, tínhamos como bancar a afronta – mesmo que isso levasse metade ou mais do salário do mês (risos). Não tinha mais como recuar. Já tava no barril de bosta mesmo, né? O jeito era se afogar por completo. Deus ajuda os necessitados...

E nos afogamos mesmo! Os preços baixos do Zoo eram formiguinhas em face dos astronômicos da Califórnia Soteropolitana. Pedimos três crepizinhos mirados que nos custou o dente queiro! Mal botamos na boca os desgraçados e a barriga pedia mais. Ah, o bolso pirou com o bucho. Tá variando, Doido?! Aonde você vai ter capim pra sustentar esse alazão? Se toque! Procure seu lugar, Vei! Oxe, um coitadinho acostumado com acarajé da esquina querendo dá uma de gaiato no manjar dos bacanas. Vai estudar, Misera! A razão gritou mais alto. Pedimos um refri e depois a conta. Saímos de lá em estado de torpor, em plena suspensão de tanto susto e espanto (risos). Não é pra pião, não! Quem guenta?

Aquilo lá não é nosso, mas pegamos emprestado por algumas horinhas. Ficaram na lembrança e na vontade de fazer outras. Toda experiência é válida. Essa nos valeu porque aflorou a nossa ousadia. Conclusão: pobre e rico não se misturam nunca, mesmo quando estão na mesma vasilha; semelhante a água e óleo. Tanto um quanto o outro se estranham e estranha o mundo maravilhoso ou burlesco do outro. Lá no Zoo, mesmo com tanta algazarra e criança, nos divertimos mais que no ambiente arrogante dos que podem pagar sem se preocupar com o arroz e feijão do mês. É... Já vi: quanto mais singelo e ignorante, menos exigente e frustrado é. Outra dessa? Vixe! Só quando a insanidade pedir e chegar o salário de agosto! Por enquanto, estamos quebrados... (Risos)
Diógenes Pereira. Salvador, 11 de maio de 2010.

À BEIRA DA LOUCURA [CRÔNICA]

Cheguei em casa tarde e acabado. Nem pra academia tive saco de ir. Ontem foi um dia daqueles, sabe?! Muita correria e estresse puro. Tudo dando errado, e o dia nem deu pra fazer o queria e o que devia. Desastre! Sem escapatória: dor de cabeça, fadiga e mal humor. Cheguei ao ponto que não tinha mais a que/quem culpar, xingar, mal dizer, reclamar. Então, me resignei, tirei toda a roupa rapidamente, tomei um banho demorado (um quentinho pra variar), comi uma saladinha de frutas com granola e sentei pra ver um pouco de besteirol na TV. O sono não demorou a chegar.




Bocejando interminavelmente, fui pra cama. Despenquei. Comecei a deliciar aquela maravilha macia, geladinha e cheirosa – lençol lavadinho é bom demais. Adoro! Ui, que delícia... – Tudo indicava que seria uma noite maravilhosa; coisa rara! Cheguei a relaxar um pouquinho, mas aí o inconveniente. Começaram a entrar coisas desagradáveis em minha mente sem serem convidadas: pendências, preocupações e vontades frustradas, desejos desejosos e caprichos abortados. Sabia! Tava fácil demais pra ser verdade. Quem disse que o infeliz aqui conseguiu dormir?! Bastei triscar na cama que o sono se desintregou por completo. A mente foi bombardeada por informações muitas e várias. A cabeça fervilhou, e, com ela, todo o corpo se agitou. Já era uma noite agradável de sono... Além de ser escravo das obrigações ordinárias, sou refém do meu pior algoz: a Insônia de todas as madrugadas. Não era à toa que a parte do dia de 24h que mais temo é justamente a noite!

Na cama, que outrora era um paraíso, me vi doido. O corpo se agitou no leito. Ansiedade veio com força. Já foi... Insônia das brabas mesmo é a dona da bola. Joga quem ela quer e como ela quer. É ela que dita todas as regras. Não tinha pra onde correr. Era eu e ela. Briga injusta.

A hora estava passando, o relógio denunciava isso insistentemente, e nada de dormir. Meu querido quartinho parecia mais uma sala de tortura dessas de filme de terror, isso sim. Com muito calor e desconforto, virei prum lado, virei pro outro. Nada. Levantei, tomei outro banho, bebi leitinho morno, voltei pra cama. Olho vivo grudado no teto. Desespero! Precisava dormir, tinha que descansar! O dia já estava vindo e me exigiria repleto de energia.

Ai... Quase enlouqueci. Faltei apenas arrancar os cabelos da cabeça a dentes! – imagine a façanha! (risos) – Fiz de tudo pro sono retornar: contei carneirinho, pensei em comida, recorri a pensamentos positivos, técnicas de terapia e autoajuda, relembrei momentos agradáveis, tentei ler algo e até reza fiz, acredita?! Nada de petiberiba. Tudo que fazia só piorava a insônia maldita, que era retroalimentada pela ansiedade e vontade de querer dormir a qualquer custo. Aí não aguentei mais e levantei com todo ódio e frustração do mundo, me sentindo a pessoa mais injustiçada e infeliz do universo: por que eu? Logo comigo, caramba! Homem honesto, trabalhador e sofrido! Pensava irritadíssimo me fazendo a pessoa mais coitadinha e digna de dó possível – e era mesmo! Sabe o que é querer dormir, e não conseguir de jeito nenhum, vendo a hora passar impotente? Pois é... Pimenta só arde é no C. dos outros.

Teimoso, custei a acreditar que não tinha jeito. Saí da cama, fui na geladeira, peguei algumas guloseimas e acabei na frente da TV outra vez. Nada que prestasse passava na caixinha mágica. Quatro bocejos de tédio e desistência. Com a vigília a mil, resolvi pegar algo pra ler. Folheei desde tese de doutorado em física até revista de fofoca. Eita, seria a leitura mais rica que já tive SE minha cachola tivesse pra raciocínio. Faltava paciência. Apenas um zumbi. Não absorvia nada do que lia; apenas lia por ler. Terminei ainda mais aborrecido, estressado, frustrado e o pior me vendo como o maior incompetente do mundo. Como alguém é tão merda ao ponto de não conseguir fazer uma coisa que é tão simples para milhões de pessoas? Tem gente que dorme até em pé no buzu lotado parado no meio dum engarrafamento, chovendo e, lá dentro, a maior sauna – sem essência de eucalipto é claro! – E eu em casa com todo conforto fazendo malabarismo pra pegar no sono. Tenha santa paciência! Vai ser azarento assim...

A autoestima foi pro buracão mesmo! Eu era o ser mais infeliz, um fracassado. Os olhos percorriam alucinados todos os cantos da casa. Tinha que dormir. A obrigação de ter uma noite de 8h de sono me consumia terrealmente. Várias foram as vezes que pensei em tomar algum ansiolítico. Me contive. Até na morte pensei. Morrer seria o alívio para todo aquele martírio interminável. A sorte que me faltou coragem para consumar a sugestão – uffa... Escapei por pouco. (risos). – Como já tava na merda mesmo, faltando apenas 2 horinhas pra dar 6 da manhã, hora que eu levanto pra me arrumar pra sair, sentei na cadeira da sala e deixei a mente vagabundear à vontade. Pasme: sem esperar, na surdina da surpresa, fui assaltado pelo sono! Acordei às 8h:37min sob os gritos já roucos do despertador insistente, coitadinho (risos). Esse é meu amigo mesmo. Nunca me deixa na mão. Aliás, deixa pensar melhor...

Levantei num pulo. Nem banho tomei, nem comer comi. Mal botei a roupa e zarpei pro trabalho. Lá inventei mil histórias para justificar o atraso: de dor de barriga e disenteria à síndrome do pânico e TOC. Exagerei, confesso. Fui drama grego dos brabos (risos). Fazer o que né? Queria muito que todos me vissem como coitadinho e tivessem pena d’eu – puro dengo e manha de caçula de cinco homens (hehehehe!). – Quem ia levar fé numa insoniazinha? Só quem sofre dela, né? Mas lá são todos dorminhocos. Nunca iriam me compreender.

Aquela foi apenas mais uma noite daquelas que a cada dia (ops, melhor: quase todas as noites) se torna algo trivial em minha vida sofrida (risos). No fim, estava um legume que mal respirava. Talvez um repolho murcho. Não prestava pra nada o resto do dia. Não rendi no trabalho, mal ouvia os outros, não prestava atenção em nada. Paciência? Hummm... Artigo de luxo que eu não tinha como comprar! Patadas foram tantas que eu dei em quem se aproximasse, fosse quem fosse. Raciocínio a 0,0001 km/h, cochilando onde encostava e olheiras maquiando minha cara de defunto, apenas sonhava com a cama traiçoeira. Pra jogar mais água na enchente, a hora não passava. Ô ódio! (risos). A vontade era jogar tudo pra cima e sair correndo quem nem barata fugindo de galinha.

E, finalmente, chegou o fim do expediente. Era a vez de voltar pra casa, mas antes tinha que enfrentar o busão lotadérrimo, o engarrafamento e só depois despencar na cama. Nada comparado à insônia! Já em casa, sobre a cama deliexcitante, dormi como um barco naufragado – brevíssima trégua nessa guerra longe de ter fim. – No dia seguinte, acordei com a cara mais safada, sorrindo. Parecia que havia ganhado um baita prêmio – ganhei mesmo: uma maravilhosa noite de sono. – Pronto: estava de volta para ser vítima outra vez de um dos piores de meus medos: a Insônia.

Diógenes Pereira. Salvador, 20 de abril de 2010.

NA CURVA DO RIO [CONTO CURTO]

Riqueza, luxo, conforto, sofisticação, extravagâncias. Ondina, lindíssima, carismática e delicada jovem, encantava a todos com sua amável inteligência ingênua e sem igual. Mimada, não faltavam admiradores, amigos e pretendentes a moça. Ela era o modelo de beleza e felicidade para muitos. Quem não queria tê-la ou até mesmo sê-la?

Mas por detrás do sorriso encantadoramente polido de Ondina, o vazio lhe corroia a alma. A tristeza a dominava terrealmente. Mesmo admirada e amada por muitos, sentia-se a mais abandonada e infeliz das criaturas. Tudo a sua volta parecia ter vida e alegria, menos em si.

Quando se via ao espelho, desesperava-se em prantos ao não enxergar a beleza infinita e sem falhas que os outros encontravam nela. Jamais achava nas suas formas angelicais o fascínio que tantos poetizavam. Artificialidade era o que percebia, a qual tapava vergonhosamente sua sorte desgraçada em dor.

Sem poder desabafar com ninguém com medo de causar desapontamento, consumida pela farsa que pensava ser e guiada por pensamentos perniciosos, Ondina foi ao rio decidida. Colocaria um fim naquilo tudo. De alguma forma encontraria a paz. Num débil barquinho, desceu rio abaixo sobre as águas turbulentas e impiedosas. Despedindo-se de tudo pelo caminho, entregou-se à sorte da morte. E, sem cerimônia, água rompe casco da embarcação e logo faz delas naufrágio.

Seria o fim, se no caminho não houvesse um velho cajueiro à beira do rio mergulhando fortes e longas raízes e galhos sobre o rio, o que barrou Ondina do trajeto da destruição. De longe, um jovem pescador de pitu, com outra beleza e charme que só gente simples detém, a viu desolada, e correu heroico a fim de salvá-la. Chegara a tempo para provar da doçura da moça e ser enfeitiçado em eterno pela sua magnitude feminina. E Ondina, ao descerrar os olhos, viu o brilho nas meninas dos olhos do estranho; além: tivera a certeza da segura resposta para sua dor ali mesmo, na curva do rio. Esperança. Outra história se iniciava.

DIÓGENES SILVA

África [texto abstrato]

Cosmos… Universos… Universo… Física… Dimensões… Dimensão… Espaço-tempo… Forças… Força… Gravidade… Magnetismo… Eletricidade… Eletromagnetismo… Nuclear Fraca e Forte… Energias… Energia Negativa… Energia Positiva… Radiação… Matéria… Antimatéria… Matéria Escura… Vácuo(?)… Partículas Elementares… Partículas de Força… Bósons Fracos W e Z… Fótons… Glúons… Higgs… Píons… Neutrinos… Tau-neutrinos… Múon-neutrinos… elétron-neutrinos… Taus… Múons… Elétrons… Leptons… Quarks Bottom… Quarks Top… Quarks Strange… Quarks Charm… Quarks Up… Quarks Down… Nêutrons… Prótons… Antipartículas… Núcleo… Átomo… Moléculas… Massas… Células… Tecidos… Corpos… Seres… Coisas… Coisa… Ocorrência… Existência! Existir? O que é isso? Muito complexo, vasto e vago os significados que a essa unidade lexical, lexema, são permitidos - ainda! Aliás, possui valor(es) semântico(s) existir? Talvez. Nasça, então, aqui, uma existência para existir a partir duma dor maior que a da partida ou da (re)construção: existir é Permissão. Mas simples assim? Não se iluda frente à aparente e epidérmica puerilidade da expressão. Muitas vezes a poeira guarda mais mistérios e deslumbres que o pomar de jacas e goiabas, ou as fezes da entediante muriçoca é mais agitação que um banquete à Luiz XV. Veja, sinta, deguste o que está convenientemente tácito e devasse os abissais das ocorrências, fatos, atos e verdades que estão frente ao seu ser.

As Leis Físicas, Partículas de Força, Partículas Elementares e Enigmas do Cosmos se permitiram uns aos outros e surge o Átomo, por exemplo, a mútua permissibilidade, Energia em “ebulição” de contatos. O início acabou de começar! A Permissão, contudo, não pára no átomo. Você só consegue ver, ler e entender estas palavras porque o fascinante, intrigante e intrincado processo de permissão chegou a tal ponto que criou você, o indivíduo, uma parte da humanidade, o ápice da Permissão(?), que continua a se permitir mais e mais, e mais, mais…

Incrivelmente, tudo é regido, envolvido, atravessado, sustentado e/ou composto por Leis Físicas, Partículas de Força, Partículas Elementares e Enigmas do Cosmos, que, por sua vez, formam, entre outros, o átomo, ser composto por prótons, nêutrons e elétrons. E os primeiros são construídos, concebidos pelo quê? Silêncio terreal e excitante, assim é a ordem/estado/informação corrente, o próprio estupor, paralesia em contradição com movimento, ação, mutação, transformação. Pára, então, por aí, ou por aqui, ou por cá, ou por lá, aquém, inter, além? Não. Ainda não nos permitimos a outras respostas – e, antes, até mesmo perguntas outras e várias! –, pelo menos creio – ainda! Isso faz com que tudo que há seja uma coisa só: a permissão de Leis Físicas, Partículas de Força, Partículas Elementares e Enigmas do Cosmos em Ocorrências, Coisas, como por exemplo, num contínuo de criação, os próprios átomos, que, por sua vez, se permitem em moléculas; fato esse que anula as diferenças, aproximando-me de você e nós dos gatos, cachorros, baleias, lesmas, minhocas, morotós, canetas, sol, ar, água, cocô, mijo, catarro, sangue, rosa, chocolate, álcool, abacaxi, fogo, luz; tudo energia em suas conveniências imagéticas e físico-corpóreas. Mas o que torna o cocô um cocô e o chocolate um chocolate, ou eu em mim e você em si? A própria Permissão. Ela que(m) faz com que os G4 (Leis Físicas, Partículas de Força, Partículas Elementares e Enigmas do Cosmos) formem, em exemplo, prótons, nêutrons e elétrons, átomos, moléculas, massas, células, tecidos, corpos, seres, coisas, existência, o que cria em si a diversidade pululante e fascinante. Isso é o próprio Universo: Energia! Eu e você somos construídos por Ela Nele e, paralelamente, é evitado que nós dois nos misturemos, formando uma coisa única com o resto, os outros seres: um oceano cósmico de G4 desgovernados, solitários, frívolos que, um dia, se cansariam da ociosidade e exigiriam o divórcio aos berros! Surgindo, dessa forma, um universo de rebeldia, independência, indiferença, arrogância, intolerância, vaidade – aversivos entre si e de si mesmos; possibilidade outra (imaginada!) que impossibilitaria a Existência – ou pelo menos a Existência que conhecemos e somos – e, por extensão, o momento do contato de minha mente com o papel, intermediado (é claro!) pela caneta – e por que não o lápis? –, a qual permitiu a existência deste texto e, por conseguinte, a sua leitura de você próprio através de mim, nós, o texto: Leis Físicas, Partículas de Força, Partículas Elementares e Enigmas do Cosmos, sucinta e facilitadoramente prótons, nêutrons e elétrons. Esse trio em átomos; átomos em moléculas; moléculas em massas; massas em células; células em tecidos; tecidos em corpos; corpos em seres; seres e coisas em existência; existência em existências, a Conveniência da Permissão, Energia em hiper-atividade perpétua.

Apesar de tudo ser permitido/composto pelos G4, os postes continuam sendo postes, assim como o esgoto, o próprio esgoto; como eu continuo – por conveniência – sendo eu e você, você mesmo. Isso nem sempre foi assim e, talvez, não fique assim para sempre. Incertezas são o ar e nós, o resto, uma mosca dentro do espaço amplo! Falta-nos segurança de tudo – ainda! Tudo está nas mãos da Permissão. É Ela que(m) permite a Existência, a Ocorrência de tudo. Sua Conveniência é que(m) dirá se eu já não sou você e você já não sou eu agora, neste momento. Talvez já sejamos um só ser e/ou coisa, e não nos percebemos ainda disso ou assim o queremos que o seja, teatro! Será? O que acha, pensa, crê, sente? Não acha, nem pensa, nem crê, nem sente; não achamos, pensamos, cremos, nem sentimos. Somos achados, pensados, acreditados, sentidos: eu em você, você em mim, nós na Existência, Existência nas Existências, Existências na Permissão. Confuso? Muito tautológico? Não se canse tão cedo! Ainda nem se quer iniciamos o começo. A brincadeirinha apenas só fez arriscar um passo… Não tenha dó de si. permita-se a Permissão! Se não abriu a mente, faça-o agora! Ainda há tempo. Vamos, juntos, unidos, permitamo-nos ao permissível: Existir, Ocorrer, os Fatos/Atos. Devassemos a nossa essência até desaguarmos na nudez sedutora da Conveniência da Permissão. De agora em diante, portanto, faremos um Pacto. Forjaremos um laço de união, a fim de escrutarmos o que somos. Cúmplices, então, já somos; amantes, talvez, nessa sedutora relação que ainda não teve Sexo. Será? (…) Há muitas coisas entre Eu e Você e os Outros que você ainda não se autorizou à percepção. Deseje-me – por que não “me deseje”? – sorte, pois você já a tem, assim eu o quero. E fique muito ansioso porque depois de um suspiro, vem a dor, o sofrimento, a insatisfação, a frustração, o devir, o desejo, o prazer e mais, mais, muito mais, outros… Outras… Esperanças… Desilusões… Quimeras… Ficção… Realidade… Forjamentos… Imagens…

Diógenes pereira. Ssa, algum dia do 1º semestre de 2005 a 26 de maio de 2007

SIM, MAIS UM! [CONTO]

Ainda posso sentir o cheirinho maravilhoso e o delicioso sabor daquele monstruoooso pedaço de CARne todinho em minha boca, hum... Era mais que realização, foi A Glória! Senhorrrr! Único, inesquecível! Momento mais feliz na vida nunca tive. Pena... Durou tão pouco. Valeu. Foi demais meeezzzmo!!! Foi num dia que eu cheguei em casa retaaado. A noite e a madrugada não foram das melhores. Melhor nem lembrar dessa parte. Pulo logo inferno e mergulho de vez no céu – apesar que o inferno não deve ser tão ruim assim como dizem nem o céu tão bom como desenham. Ah, deixa pra lá. Eu e as percepções e os fetiches estranhos. Ririri... – Sim... Deitei. Num tapa, fui levado pro paraíso na primeira classe. Sem me dar conta de como, eu já tava lá. Era uma mansão enorrrme: jardins que colocariam no chinelo os lendários da Babilônia, um rio translúcido, povoado por peixes vários, cortando todo o gramado arborizado e frutífero, cercando a casa. Muitas flores, rosas, orquídeas, enfim muito verde e outras cores, cheiros e formas. No interior, muito luxo, requinte e riqueza: móveis de época, quadros de Da Vinci, Michelangelo, Picasso, Dali, Portinari, outros, esculturas, prataria, ouro, pedras preciosas, peças decorativas de todo parte do mundo, muito mármore, longas cortinas, tapetes persas, artesanatos, muitos objetos decorativos, espetacular mosaico de épocas, estilos e gostos harmonizados, sem suscitar o brega e o confuso. O inverso, passando bem ao largo deles. Beleza em diversidade aos bocados. Bem que eu não ligo muito pr’essas coisas – creia! Logo Moi? Nunquinha. Eu quero é mais! – Eu, o Imperador Senhor de Tudo. Todos aos meus pés, súditos fiéis, amáveis e sadios. Bajulação pra todo laaado. As gatinhas, hum... Cada uma melhor que a outra... Todas na mão: ali, aqui, lá, mergulhado nelas. Eu tava louco já! Tudo que desejei e pedi – é... Bem... Talvez não tudo, mas muita coisa. – O buffet?! Melhor que o dos Césares. Espetáculo! Sublime! Uma mesa imennnsa abarrotada de todo tipo de carrrne preparada de todo jeiiito que possa imaginar (e também sem puder imaginar). Qualquer carnívoro adoraria estar na sua borda e no seu alcance. Estupidez! O que foi aquilo?! Loucura! Mas o esquisito era que bem no centro não tinha nada. Um espaço vazio! Aquilo me intrigou bastante. Por que justamente aquilo? Para quê aquele pedaço sem nada logo no meio da mesa, em destaque? Qual função tinha? O que queriam com ele? A mente tava nervosa: ora presa as maravilhas que chegam a ela pelos sentidos todos eriçados em excitação, ora atraída pela curiosidade lasciva do esquisito. Alguma coisa ia acontecer. alguma surpresa me aguardava, isso minha intuição fofocava. Dexa quéto. Estava Ânsia potencializada. Agitação! Ia curtindo tudo em minúcias. Não me deixava escapulir qualquer que fosse o detalhe. Tava esperto a tudinho. Sempre vinha algo diferente, novo, inusitado. A expectativa aumentava abruptamente a cada desvendar. E pra fuder logo com o cara, não demorou e foi a vez do Il Grande Finale arrasador. Abalou as estruturas. Entraram os fortes servos e as doces servas mais hermosos que já vi, trazendo consigo uma bandeja monstruooosa. Nela, nada menos que um bife fresco, ainda sangrando, pulsando, que eu tenho certeza: não era dum boi. Aquilo deveria pertencer a um Mamute, e um dos gigantões, porque era ignorância. Colocaram ele justamente no meio da mesa. Festa pra meus olhos, escândalo pra minhas narinas e deleite pra minhas presas, que já salivavam ansiosas. Ai... Não me contive. Cedi a todos os instintos. Não poupei energia. Como A Madame transloucada que não guenta ver lançamento de bolsa e sapato de grife, fui direto, sem cerimônia, pra cima daquela excelência da Natureza. No começo, fui voraz. Expus toda minha Animália. Depois fui me satisfazendo e fui namorando aquela obraprima que teimava não se acabar, mesmo eu já tendo devorado um monte dele. Fui o último dos românticos. Estava apaixonado. Não me cabia mais em mim. Perdi a noção do mundo: era eu e o bifão, só nós dois em namoro. Aiii... Que deleite! Que prazer! Que gooozo! Realização. Simplesmente FE-LI-CI-DA-DE!!! Mas a desgraceira aconteceu. Sabiiia... Era demais pum pobre coitadinho como eu. Tinham que estragar tudo.




Aos pouquinhos, chegava aos meus ouvidos um sutil barulhinho, insistente, que não parava. Ai... Apenas ele ia aumentando e me retirando da terra prometida, na tora mesmo, porque eu não queria (jamais!) abandonar tudo aquilo – o mundo que se lixasse, era a minha vez. Não tava nem aí pra nada. Queria era ficar sozinho, na boa, curtindo meu presentão! – De novo: abuso, insistência. Marteladas. Não: marretadas com todos os braços do mundo operando a desgraçada! Eu não sabia o que era ele ou ela ou o quê, sei lá. Sei bem que me importunava na hora errada, justamente naquele momento mais que sublime, excelso! Senhor, o que fiz para merecer brutal castigo? Logo eu, criatura tão transbordante de caridade e amorrr – bem, talvez nem tanto, mas o suficiente para me arrancar da rinha dos cães. Ok. Confesso. Cometi alguns deslizes. Nada que exigisse castigo à altura. Exagero, sim! Sacanagem das miseravonas comigo. Destá! Pra frente nós vai, como diz a preta de lá de casa. – Não poderia ser outra vez, como na hora do banho? – Odeeeio banho. Não sei pra que esse erro? Acho que inventaram isso só pra aporrinhar com os desavisados. – Mas não... Papito aqui tinha de ser massacrado. Vai: joga pedra na Geni – ui... Só pode ser encosto. Trabalho dos bons, talvez um boi inteirinho! Ta repreendiiido! Xô, mal! – Tentava ignorar ele o máximo que podia; cada vez mais, exigindo força maior, mas ele vinha que vinha, teimoso, o danado. Agora trazia consigo um friozinho gostoooso – ai... dé-lí-ci-a! –, que só fazia me convidar pa ficar de vez na caminha quente e macia de Mãinha. E como vontade tem pressa, eu me encolhia fazendo enroladinho de mim. Buscava proteção no calor de meu próprio corpo sobre todo aquele univerrrso de maciez... Voltei pro paraíso. Caía de boca naquele manjar... Me espalhava todinho. Era a Felicidaaade com todos os biquinhos de manha. De repente, o miserável retorna. Chegava mais potente, armado com gotinhas de água geladinha que espiravam todas sobre mim. Fiquei firme. Não dei a mínima. Penetrei mais ainda em mim construindo fortaleza. Até relaxei. Aproveitei aquela zuadinha compassada, ritmada dele – tenho que confessar: é até gostosa pra dormir, faz ninar – e me embalei no meu presente. Mas quem disse que o açougue tava pra gatos? A desgraçada da janela, aberta, em conspiração com ele só pa me sacanear, deixou o ordinário entrar com tudo, em turbilhão. Aí já foi. Fiquei pobre, sem nada. Num salto, arrepiado, assustado, desnorteado por todo, arregalei os’ói e claridade veio com toda: foi a tristeza, e, pra minha surpresa, não era ele, e, sim, ela, a chuva. Fechei minha cara imediatamente. Indignado, fui prum canto da cama bem longe onde ela não me alcançaria. Apenas eu mirava ela com pinta de sedento justiceiro, porque ela tinha que me pagar. Ah se tinha! Agora, como? Isso eu lá não sabia. Só pensava em me vingar. Como já se viu! Abusar quem tá quéto. Não fiz nada pra ela. Apenas tava na minha. Curtindo o que se é raro possuir em completude, sempre uma vez na vida, e olhe lá. Mas tiiinha que me roubar o prazer. Porra! Que ódio! Não me restava mais nada. Nem saco mais tinha pra lembrar de alguma coisa boa. Perdi meu dia. Me resignei.


Cansado de pensar besteira que não renderia peixe, resolvi dar um giro pela casa já que não podia sair mesmo, tava chovendo, e me molhar? Nunquinha. Tomei banho semana passada, o erro! Outro que não venha tão cedo. A casa tava numa mesmice só. As Crianças brigando pra ver quem ficava com o controle e quem seria o ditador da tv, entre arranhões, tapas e puxadas de cabelo e muita xingamento, faltava apenas sangue – e quem sabe homicídio triplamente qualificado, o que não demoraria (cá entre nós: aquelas pestinhas eram Os Cães! Desse espaço pra elas e neguin ia ver o que é taxo de torrar farinha de mandioca bem nas virilhas!);,va toda, acontece algo de bom, o que duvido muito. mas a caseira. olhei ,inho em minha boca, humm Patrão, cheio de cerveja e amendoim, castanha, salsicha no rabo gordo, no quarto vendo futebol, porque era domingo e o Timão tava na Arena. Nadinha no mundo faria ele perder seu verdadeiro amor em atuação, nem a aparição das pernas de Ivete Sangalo – será mesmo? Tenho lá dúvidas; – e Mãinha, coitada, incompreendida e nada reconhecida pelos abutres da casa, lá na senzala suando preparando o rango da galera da casa, parecendo uma louca que fugiu do Juliano! Fora, é claro, Tia Fifi, que chegaria com sua renca pra filar a boia. Terror: dia de domingo chuvoso, nada de interessemocionante pra gastar tempo e, pra acabar de me matar, casa lotada de parentada num zunzum interminável, que sempre acabava em alguma confusão, tava rebocado! Já vi essa tragédia outras vezes. Fazer o quê? Que venha a tempestade. Bem, tudo na sua norrma-li-da-de. Eu sem nadica de nada de petiberiba pra fazer. Então, fui ver se Esperto estava esperto meeezmo. Cheguei de mancinho... Sem que ele nem ninguém me percebessem. Olhei sorrateiro... – A barra tinha que tá limpa. Tran-qui-li-daaa-de... – Me fazia de desentendido, dissimulando, como se não tivesse nem aí pra ele nem pa porra nenhuma, apenas de bobe pela casa. Dei alguns passos, reconhecendo o terreno... Nada de diferente. Ele lá, no glu-glu dele interminável e irritante (entra água, sai água), indo de um lado pro outro de sua baiazinha quadrada e cheia de enfeitinhos de maugosto, como um bobalhão. Aproveitei a situação. Fixei bote e, numa ligeireza que só eu tenho, me arremessei com tudo pra cima dele. Ai! Maior mole. Quase quebro o focinho. Tinha me esquecido, na cegueira de minha esperteza presunçosa, que tinha um tipo de parede invisível que arrodeava a baiazinha onde ele tava dentro; isso não me deixava pegar ele de jeito algum. Miséria! O sacripanta sabia disso. Ficava na dele, só esperando minha desgraça pra se esparramar em satisfação. Gozava de minha cara e da minha vergonhosa impotência, falência, pra não dizer burrice mesmo. Sempre eu caía no igual erro, vai saber por quê. Vacilo meu. Dexa quéto. Eu idiota e ele o Todo-todo, assim terminava o capítulo, mas não a História. O Mar virou Sertão, diz muita gente. Também a baía encantada dele vai se tornar um Salar, ah se vai... Deixa que o dia dele cheeega. – Engraçado... Ainda me pergunto por que chamavam Esperto de esperto. Aquela cara de sei-lá-o-quê. E ele que é o esperto?! Aiaiai. – Beleza. Já recuperado, estima Clodovil Hernandes outra vez e vaidade Gisele Bündchen, continuei minha jornada caseira. Olhei alguns cantinhos, por cima, embaixo e atrás dos móveis, nada. Nenhum ratinho, nem baratinha, nem mosquinha. Nada pra me distrair. Tinha lá, largado, o rolo de lã. Não. Cansou. Olhei o teto, limpo. Fui no banheiro, ok. Nos outros quartos, tudo certo. Rodei a casa toda, zero! Que tédio! Restou somente me achegar interesseiro pra junto do pessoal, maquiado de carinhos, perfeito. E o que recebi em troca? Repulsa. Ninguém nem aí pra mim. Afff! O jeito é voltar pro quarto e ficar de boresta na janela que pouco antes me traiu. Quem sabe, naquela chuva toda, acontece algo de bom – o que duvido muito. – Mas sei lá, né, tudo é possível. Me permiti.


O quarto tava num silêncio só. Tudo no seu lugar, estranhamente normal, até demais. A escuridão era quase completa, uma pinta de filme de terror – era a regravação pasteurizada do Exorcista nos trópicos? Babado. – Bem, quanto mais longe da janela, por onde entrava um pouquinho de claridade marreeenta, menos luz tinha. O ambiente era friozinho e úmido. Me arrepiei um pouco. Tive um filete de medo. Entrar de primeira? Jamais! Não... Tinha que ter certeza. A barra tinha que tá limpa. Olhei com distância. Parecia beleza. Quando coloquei minha perna na parte de dentro, voou loucamente um saco cheio de papel do alto do guardaroupas. Gritei nervosamente – dizem que macho não grita, né? Mentira. Naquela ora eu fui Edson Cordeiro sendo atacado por Preta Gil, imaginem a cena! Kakaka!!! Hilário. Daria todas minhas coleções pra assistir isso de camarote! – Corri doido e espichado pra bem longe. Não sabia o que fez aquilo – como não há consenso sobre a existência ou não de coisas sobrenaturais, melhor ter cuidado. – Parei. Pensei. Ponderei. Retornei. – Que bom que ninguém viu ou percebeu de alguma forma a demonstração de pânico e covardia de minha parte. Rsrsrs – Um pouco longe, observei com rabo de olho. Ainda tinha uns papéis voando sobre todo teto. Lembrava um forró pé de serra, só que no ar e com papéis. Até que tinha sua beleza. Fiquei um tempinho admirando. Isso foi me acalmando. Quando eles finalmente cansaram e desceram pro chão, eu vi que não foi nada demais. Deveria ter sido o vento mais forte que entrou e carregou o saco, abriu ele e espalhou todos os papéis que tinha dentro. Foi isso – pelo menos acho. Acreditei. – Com uma gotinha de receio, ainda estava eu, mesmo assim entrei, dei uma geral. Nada. Tranquilidade. Fui enchido de coragem outra vez. Eu era o dono do pedaço. O que poderia acontecer comigo ali? Era apenas um quarto de dormir. Pulei na cama. Gostosa como sempre, apenas estava gelada, uiii! Detesto. Desci dela e, num salto, já estava na janela. Pela primeira vez do dia, vi o mundo lá fora.


Da janela, sentia o vento friozinho e via a chuva pequenina. Ventava (não tanto quanto antes); chovia (era uma chuva preguiçosa). O ritmo das coisas parecia outro, muito mais lento. A impressão era que faltava energia pra todos e tudo. Não se via aquela ferveção dos dias ensolarados e quentes. Todos recolhidos. Tudo molhadamente chato. Tédio pleno. Não gosto da época das chuvas. Aliás, acho que ninguém gosta de chuva. Pra que chuva? Tudo e todos não poderiam ficar eternamente secos? Acho que dessa forma todo mundo seria mais feliz – pelo menos eu, né? – Mas não... Tinha que chover. Água? Só pra beber e olhe lá! Chove e tudo fica numa morte em vida da porra: alguns dormindo o dia todo, outros tantos presos em suas casas fazendo nada, ou vendo tv, ou ouvindo música chata, ou lendo bobagem tipo revista de fofoca e sobre novela, ou resenhando no telefone, ou se ocupando da vida dos outros, ou comendo demais pra depois se arrepender e querer fazer mil-e-uma dietas pra emagrecer – não sei qual pior! – Sei que nos dias como esse, não tem criança brincando na rua, pivete perturbando os outros, não tem passarinho no céu, não tem ir-vir frenético de gente ansiosa, não tem futebol no campo de barro ou na rua mesmo, não tem cachorro perambulando pela calçada cagando tudo e mijando os pneus dos carros – péra! Isso é até bom. Rsrsrs... O mundo sem cachorro seria maravilhoso. Agora, ter isso às custas de dia chuvoso, jamais! Prefiro os cães burramente latidores. Aliás, por que será que eles latem por tudo, heim? Afff. Eles não sabem como me aborrecem. São feios, bobalhões, puxasacos, dependentes, sujos, fedorentos. Totalmente diferentes de nós. Somos superiores. Totalmente limpos e possuidores de liberdade. Somos o que há! – Ops! Voltando... Onde parei mesmo? Ah, sim... A cidade praticamente fica na UTI. E eu obrigado a ficar em casa. O tempo custa a passar. Aparece é coisa desagradável aqui, ali, lá, em cada um de nós mesmos. Reparamos todos os defeitos que possam existir. É o momento da depressão, sem se falar no desespero. O jeito é continuar pensando besteira e ficar mais triste que já está, ou virá zumbi logo de vez, ou dormir, ou embernar. Chove tanto nessa época, praticamente todos os dias, dias seguidos, sem descanso. Ninguém merece! Ai... Bateu até um soninho... Mas não tava com saco, não. Dormi tanto já. Basta. O que fazer então? Traquinar? Não, não é uma boa ideia. – Olha, penso logo na desgraça. Rsrsrs... É o instinto. Rsrsrs... – Da última vez, quase botei a casa toda em fogo. Na cozinha, fui inventar de subir no armário, derrubei as panela que caiu pra todo lado. Maior barulhão. Me assustei. Dei um pulão que fui parar na geladeira. Escorreguei na toalhinha que cobria ela – pobreza da porra! – Me segurei com força nela, vim pra baixo com tudo. O radim que também tava lá, se espatifou no chão. Ficou mudo de vez. Saiu umas faisconas dele, rapaz! Deu curtocircuito da porra no fio que ligava ele na tomada. Queimou a instalação elétrica da casa toda, juntamente com os eletroeletrônicos que estavam conectados nela. Se foi geladeira, micro-ondas, tvs, som, computador. Preju total. Nesse dia, vi o que era caos. Foi um grita aqui, mão na cabeça, “ai, meu deus!”, “socorro, Jesus!”, corre pra lá, corre pra cá interminável. Entra vizinho, desconhecido, inimigo, todo tipo de gente e gentinha. O povo queria espetáculo! Não é todo dia que acontece uma coisa daquelas. A populaça não ia deixar isso passar de graça. Tinham que aproveitar. A casa tava um cinema de noite de estreia. Ninguém sabia o que fazer na hora. Todo mundo pegado de surpresa. Foi a Doideira só. Quando tudo se acalmou, aí que o bicho pegou. Buscando a origem do problema, chegaram a mim. Foi um pega pra capar da zorra. “Pega ele, segura esse miserave, ordinário!”, erra o que se ouvia em meio tanto palavrão, como os caralho da vida. Eu, que não sou besta, corri desembestado. Dei o sumiço. Se me pegam... Hum... Iam fazer de mim peça empalhada, o que seria pouco! (Rsrsrs...). Vendo tudo aquilo hoje, de fora, até que foi engraçado e emocionante. Foi hilário ver Mãinha correndo atrás de mim puxando o vestido pra baixo, que insistia subir e mostrar suas coxas gordas, e estrientas, e celulíticas; e Patrão, barrigudão, com perninhas finas de passarinho mirrado, se contorcendo e se equilibrando todo na cadeira pra me alcançar na estante, inútil! As Crianças que eram escrotas... Arremessavam tudo que encontravam. Queriam mais que me acertar; desejavam sangue! Nunca vi coisa mais cruel que criança. Ô coisinhas miúdas que não têm pena de nada! E todas estilo Capitu, só na sombra da inocência. Os tolos dos adultos ainda creem nelas. Eu não! Não sou otário. A mim não enganam mais. Quando vêm com carrinho e chamego pra cima de mim, fico logo desconfiado. Boa coisa não tá por trás daquilo; traquimaldade vem por aí. É só pagar caro pra ver, provar e sentir mais que na pele. Não mesmo! Não quero conta com elas. Sei quem são as peças. Elas lá, eu cá, na minha, de boaça. Enfim, é passado. É mais uma lembrança, como muitas. Sim, como ia dizendo, tava de mári. Até que...


...Até que eu tava olhando pro ar, sem me ligar em coisa alguma, com a cabeça bem longe, pensando sei-lá-o-quê, não lembro (deveria ser besteirol), e uma coisa estranha invade o espaço aéreo onde meus olhos estavam ligados. Uma criatura miudinha, magrinha, com asas, voando engraçada bem no meio do chuvisco, embalada pelo ventinho lerdo. Espremi mais ainda meus’ói pra ver se enxergava melhor. Tinha que saber o que era. Olhei... Olhei... Não dava pra perceber ao certo. Tava um pouco longe. Por ora, notava que era pequenucha e tinha asas – também, isso era fácil de deduzir, tava voando. – Aquilo me gritou atenção. Que loucura: como alguém tem coragem de sair debaixo de chuva? Ou é Danado ou Danada, ou muito Burro, ou tão Idiota o bastante pra tá na chuva e no frio de graça. Já viu que eu nunca ia fazer isso?! Olhe pra mim!A Bonita, não, ia que ia: linda, se achando, se sentindo, na maior – acho que deveria pensar que era a porradona do pedaço. – Perambulando pelo ar, veio se aproximando de mim aos poucos, sem pressa, como se estivesse curtindo seu passeio molhafrio. Quando tava bem pertim, vi o que era: uma libélula... Não! Era A Libélula! Mesmo anã, tinha que admitir: era linda demais. Cheia de charme, movimentava seus pares de asas colortransparentes numa delicadeza... Era um misto de cores vivamente encantadoras: vermelho, amarelo, prata, roxo, preto, branco, num arranjo que tornava seu corpo esbelto uma aquarela em mosaico. Estupendo! Fiquei de boca aberta. Muito graciosa. Realmente obraprima. Não, mais! Uma dádiva (se de Deus, ou do Diabo, ou sei lá de quem, ou do quê; mas que era, isso lá era, sim). – Dava vontade de ter ela pra mim. E olha que eu não guento ver inseto que logo quero pegar pra brincar. Largo só quando judio tanto até matar o bichinho (ririri). Com ela, não! Foi tudo diferente. Era outra a história e o caso. Ela, eu ia fazer de bonequinha de cabeceira de cama. Ter ela lá só p’admirar. Minha. Unicamente minha! – Olha, passado esse estágio de feitiço, raciocinei com o inconsciente: primeiro o choque que sua investida na chuva me causou, em seguida a catarse que sua beleza me proporcionou, depois foi a vez da suspensão onde eu fiquei me perguntando contorcivo: que misera essa coisinha lindamente delicada tava fazendo exposta num tempo tão ruim? Ela ia acabar se estragando, corroendo sua beleza e até podendo morrer mesmo. Isso não podia acontecer. Precisava dela, algo já me impunha isso. Especulava: será que não girava bem da cabeça? Ou tava desesperada por algo ou alguém? Ou alguma coisa muito ruim lhe aconteceu ao ponto de querer se suicidar? Tinha que ser alguma coisa. Eu tinha que descobrir e até ajudar a bichinha. Não sou tão escroto como posso parecer. Também sou altruísta; mesmo que esse altruísmo trabalhe a favor de meus caprichos. Bem, isso não importava. O que valia era que eu tava afim de ser amiguinho dela (rsrsrs). – Finalmente algo interessante pr’eu ocupar meu tempo.


No momento que ela tava bem pertinho, chamei ela e falei de modo bem amigável, como se já conhecesse ela, esbanjando simpatia. Ninha, ô ninha, vem cá. Me diga uma coisa, minha linda: por que a princesinha tá aí solta nesse tempo ruim, tomando chuva, comendo frio nesse vento? Não vê não que isso vai te prejudicar, menina? Pode quebrar uma asa sua, uma antena, uma patinha, deixar você doente ou quem sabe até lhe arrebentar toda, maluca; basta pra isso o tempo fechar de vez, e aí você vai ver o que é pau pra armar barraco! Sai daí, neguinha. Se protege dessa chuva. Vem pra cá. Aqui tá sequinho, seguro e quente. Vem, mãe, vem. É até bom que conversamos, batemos um papinho descontraído, matamos o tempo... Tô aqui sozim. Maior chatice. Fazemos companhia um ao outro. O que acha? Vi você sozinha, resolvi te chamar pra cá. Sou um ótimo indivíduo. Possuo estirpe nobre. Sou do bem. – Eu doido que ela viesse logo. Queria era agarrar ela, prender e ficar pra mim na primeira oportunidade, que não desperdiçaria jamais. – Contudo, entretanto, no entendo, todavia, porém ela não foi nem era besta como eu tinha pensado. Ao contrário, ela era muita da esperta. Maldou facilmente minha intenção verdadeira ficou bem ligada em meus movimentos e palavras. Quando estava falando com ela, ela tava próxima, em uma distância segura onde eu não poderia pegar ela sem gastar muito esforço, o que daria tempo dela fugir se caso eu tentasse algo. Meia que desconfidissimulada, ela foi saindo pela tangente, escorregando. Não, painho. Brigada mesmo, mas aqui tá bom pra mim. Não se ocupe comigo, não, tá? Seu que você é óóótimo ser e tá com as melhooores intenções comigo. Mas não precisa, não. Tá ótimo aqui. A retada perecia que tinha lido minha mente e descoberto tudo. Impossível. Eu deveria ter dado algum mole, sei lá, um olhar, tom de voz, ansiedade, insistência, alguma coisa fez ela desconfiar e notar tudinho. Danada! Retruquei de pronto. Oxe! Como já se viu, um clima desse, e você ainda diz que tá bom pra você! Lesou, foi? Acorda, Alice! Vem pra cá de vez. Espera passar a chuva e depois você vai pra onde você quiser ir, pra onde você já tava indo. Quem disse que ela comia meu H. Com temperamento docemente indiferente em sua afetação, permaneceu firme em sua posição. Poxa... Tanta gentileza sua em se preocupar comigo... Estou até lisonjeada. Nunca imaginaria que mereceria tamanha preocupação e nobres cuidados logo vindo de criatura tão eminente como a sua. Mas não dá mesmo. Tô de boa. Quero não. Brigada de verdade. Prefiro ficar aqui. Até gosto, sabia? Adoro dia como esse. A chuva me faz bem. Amo esse ventinho. Gosto do clima fresco de hoje. Faz bem pra minha carapaça. Me deixa mais jovem, fresca, saudável. Além de lembrar que dia assim, tudo fica mais tranquilo. Quase nenhuma confusão. Espaço livre, fico solta, à vontade, quase sem abuso ou ameaça dos outros. Dia de sol não. Dia ensolarado é o erro! Prefiro ficar recolhida. E como o céu tá pra raia, saí bem cedinho e tô curtindo meu dia maravilho. Acho que vocezinho poderia fazer o mesmo. Quer não? Vem, bem, vem (rsrsrs). A salafrária tava tirando comigo. Ela sabia que jamais iria sair de casa e ir pro tempo aberto me molhar e passar frio, nem morto! Sei quem sou, do gosto e o que repugno. Sai pra lá! Nada nesse mundo me faria submissão a esse absurdo que a transloucada me propunha num convite sarcasirônico. Raiai... Florzinha, acho que você me entendeu mal. Queria apenas ser gentil com você e te ajudar a..., disse fechando logo a cara e mudando o tom de voz. Irritado e já sem paciência estava por todo. Aliás, paciência, conversinha não é comigo. Que nada, nego, eu também tô sendo tão legal. Achou que eu ia desejar algo ruim pra você? Nunca, nunca, nunca, nunquinha mesmo. (Risos.) Nem te passe isso na mente. Sou gente boa, me cortou com aquele tom de voz irritante de quem tá sendo amável forçosamente, e sem esconder, sabe (o que é pior!)? Ela queria que eu soubesse mesmo que ela tava tirando onda com’inha cara. Ai... Fiquei fila da puta! Eu querendo fazer um de Irmã Dulce, e ela de Cabecinha Branca comigo, tirana. Esquentou meu sangue. Não poderia deixar barato. Fui logo pra grosseria. Venha cá, vei, colé a sua? Tá pensando que é assim, é? Chega macia e já vai se espalhando como se aqui fosse casa de amiguinho besta que não sabe dizer não pro oportunista do coleguinha explorador? Se liga, rapá! Se plante, que aqui as coisa se resolve de outro jeito. O plantão aqui é forte. Não como regue de ninguém, não, tá! Ah... Pra que fui dá um de miseravão. Ela se transformou. Alteração. Fiquei até sem ação, não esperava aquilo. Seu porra, você chega com essa conversinha de cudoce da misera, pensando que vai me levar nesse papinho de menino donzelo e ainda tá se achando mais macho que os’otro, é? Apesar de libélula e fêmea (e com muito orgulho!), tenho mais peito que você, seu bundão. Acorda pra vida, mimadinho! Tá vacilando, é? Não dá mole, não, seu Zé Ruela! Tá pensando que levo boa vida de mãezinha e paizinho como você? Dou duro, caralho! Ralo todo dia pra conseguir o que comer, sobreviver na real, e não em contodefadas. Não sou como você: como, bebe, dorme, arrota, bufa, caga, não! Enquanto você taí caçando mosquinha e pegando baratinha, eu tô na geral me fudendo. Sou atitude, maluco. Aqui mora a coragem, a ousadia, a persistência, a criatividade, o jogodecintura. Moleque, se eu contasse um tantinho que já passei ou vivo, você ia pirar. Aqui, sim, o plantão é duro. Não aí, na casinha de bonequinha. Fui entupido. A miserável me escrachou. Não tive mais reação. O que falaria depois daquela baixaria toda? O que ela tinha de danada, faltava em tamanho. Vagabunda! Eu não poderia deixar barato. Tinha que passar o troco. Não sou de ficar por baixo, nunca, senão não sou eu! Aí partir pra apelação. Olhe, serzinho inferior, repare bem pra mim, tá vendo, sou superior a você. Sou mamífero, tenho sangue quente, carnívoro, acima na cadeia alimentar, além de viver muito mais tempo que você. Aonde você é melhor que eu? Aonde? Vivo no luxo. Você, na dureza. Sou nobreza, véi. Vê lá como se dirige a mim. Breve silêncio. Estou afetada profundamente com tudo que você me falou. Parabéns. Aplausos para você – e batia palmas frígidas. – Você tem toda razão, Meu Sinhorzinho. Tenho que prestar mais que respeito ao Senhor, tenho é que lhe servir zelosamente. Eu inflava o peito e olhava com ar arrogante pra ela. Isso mesmo. Ainda bem que você sabe. Até que não é tão burra como eu pensava. Se ouviram altas gargalhadas. Kakaka! Aiaiai... Me poupe... Ó Minha Santa Goiabinha! Hoje tive certeza de que ironia e sacarmos só tocam os que têm capacidade cognitiva para absorvê-las, os inteligentes. Os topograficamente rasteiros estão além de margem de compreender as intempéries da sapiência. Clarice se espantaria com sua figura torpe, tosca, vil, perniciosamente arrogante, afetadamente estrangulada, superior em V-A-Z-I-O à coitadinha da Macabéa, ambos dignos de pena e cuidados. (Sorriso.) Sensibilidade, em você?Nem a quilômetro de distância! Eita animalzinho estupidamente ausente de nuances do Eu. Acho que a sua introspectividade se resume ao espelho ludibriador. Quanto à sua idiossincrasia, coitada, essa só deve conceber uma dimensão das coisas; sem falar que você nunca deve ter se permitido ao Prisma da Alteridade. De fato, você é superior a todos os seres. Mas em sua perspectiva Jactar-se, burramente reflexiva, a qual busca em si unicamente um Devir que nunca chega, e sabe por quê? Por que é desnutrida. Filhote, cria coragem e vai dar um passeiozinho pelo mundo, tá! Veja que há muito mais coisas que o seu rapo. Se jogue. Cresça. Se amplie nas experiências, se fortaleça nas trocas, se comunique, busque aos outros, quebre um pouca a cacholinha bobinha, bobinho. Você ainda tem jeito. Basta arregalar bem seus “porros” e deixar que a própria dinâmica das coisas vai lhe inundar de sensações muitas; e aí você vai saber o que é lamber instantes de Satisfação Plena, Catarse, e roçar em sexo a Felicidade. Bem, já tá na minha hora. Tchazinho, fofinho. Se cuida, tá! Foi um prazer enorrrme (rsrsrs). Beijos. A Libélula foi embora mais sublime que chegou. Eu, lá na janela, com a cara no ar outra vez. Não tinha entendido direito o que ela falava – na verdade, não compreendi porra nenhuma! – Só achava estranhamente chique e irritante.


Fiquei mais uma cara olhando pro ar, e sem ver nada. Eram as palavras dela que enchiam minha mente: permissão, devir, nuance, prisma de alteridade, topografia rasteira, experiências, idiossincrasia, lamber satisfação pra ter catarse, roçar felicidade... Ai! Era muito pra mim. Pra que falar tão difícil assim? Complicação. Exibida, isso que ela era. Se eu quisesse também faria o mesmo, senão muito melhor. Ela deveria ser mais humilde, isso sim. A vontade foi abocanhar ela ali mesmo de uma só vez e dar fim a tudo, escrota! Tentei esquecer o vexame e voltar para normalidade de meu mundinho. Ops! Foi isso mesmo que pensei: voltar para normalidade de MEU MUNDINHO. Não! Eu não sou desses de ter mundinho, melhor, de viver em um. Sou... Sim, sou... Não vinham predicativos. Minha mente tava vazia de conceitos, ideias. Eu estava numa sensação de esvaziamento muito incomodestranho. Olhava de um jeito torto pra mim mesmo. Percorria meu corpo com os olhos. Um olhar esquisito como se eu quisesse enxergar ao contrário: em vez de ser do olho pra fora, era uma tentativa de ver do olho pra dentro. Que maluquice. Nunca aconteceu aquilo comigo. Parecia que eu não era eu. Péra! Deixa explicar melhor. A sensação era outra, inédita. Tinha impressão que eu tinha me deslocado do corpo. Não! Mais: não apenas do corpo físico, também da identidade e da personalidade. O espírito parecia que estava em re-iniciação, e não reconhecia o lugar onde ele estava alojado há anos. Arrepio. Boca seca. Pensei: estou louco? Será que pirei de vez? Ainda tô vivo? Isto tudo não será um sonho? Não, não era alguma daquelas opções-questionamentos. Eu estava bem vivo, sadio e lúcido. Sim, em outra consciência. Melhor, agora posso notar que foi minha IN-CONS-CI-ÊN-CIA que tinha aflorado e tomado a voz. Ela que estava no palco agora, no fronte, sem máscaras, sem trejeitos. Ela era crua, nua, devassa, tirana, expostamente ela, denunciando meu ponto fraco, me levando pra crise. Desesperei! Mordi minha calda. Dor! Corri em círculos pelo quarto energicamente até faltar combustível. Cansei. Caí largado no chão – pra ser mais fiel, eu desabei mesmo, já não tinha controle sobre os músculos. – Um zumbi? Talvez. Ou quem sabe um híbrido dele e algo mais que foge da sapiência inata ou adquirida. Sei que estava em um tipo de transe (de transitoriedade) muito perturbador. Muitas coisas na cabeça ao mesmo tempo. Lembranças. Vozes. Sons. Imagens. Dor. A retrospectiva de minha existência caminhou pela mente em fleches, escorregando pelo resto do corpo. Entrei em convulsão de mim unicamente atuante no interno. Tremia. Me encolhia. Não era frio, e, sim, um calor estelar que me consumia por completo. Sim, eu estava queimando! Em breve, seria cinzas. E as cinzas não chegaram. As brasas queriam sua vez. Não foram embora. No chão, eu fui paralisia. Espaço-tempo deixou de ocorrer naquele instante. Eu estava deslocado do plano existencial normal para uma outra permissibilidade, um tipo medonho de ser-estar-ocorrer. É complicado descrever. Só vivenciando mesmo pra saber o que foi aquilo. Enfim, de repente, tudo se acalmou. Foi abrupto. Parecia que o coração e a respiração tinham parado. Não existia mais nada na mente. Fui silêncio completo, pleno. Sono me fez seu embrião que aguardava o final de sua gestação para se inaugurar num outro mundo. Eu estava preste a nascer outra vez.


Até onde me lembro, todas as vezes que dormia, mesmo que fosse um tênue cochilo, eu sonhava. Sonho bobo, sonho fantástico, pesadelo, sonho romântico. Sempre tinham sonhos. Mas daquela vez não. Eu dormi profundamente. Não tive sonho. Apenas ouvia numa altura estrondosa os ruídos do funcionamento de meu corpo. Era Vida. Talvez para me lembrar que ainda não era a vez da Morte. Não sei por quanto tempo. Certeza é que aquilo durou o bastante p’eu notar todo meu ser. Um notar outro; foi o interno que se foi buscado, exposto, escrutado. Conheci a mim, e neguei O Conhecer tecido pelos outros. Com certeza, uma das poucas vezes que conhecemos sem reconhecer. E, como se algo decidisse que já era o suficiente, fui arrebatado por uma força que, ao descarregar energia torrente, balançou minhas estruturas. Estava retornando pro externo. Primeiro foram os ouvidos. Eles foram rompidos de uma única vez. Ouvi todos os sons possíveis em conjunto. Era orquestra. Os músculos, antes rijos, passaram a relaxados. A circulação sanguínea há pouca lesma, assumiu o ritmo Axé com Bolsa Nova. A respiração saiu da cadeia e foi pro campo. Em seguida, foi a vez dos olhos. Eles se abriram lentamente, cada um em seu tempo, segundo vontade deles individualmente. A luz, fragmentada, entrava devagar, pedindo licença, carinhosa, beijando todo o tecido ocular e lhe presenteando com as cores, muitas, várias, alguns até então inéditas. Começaram a aparecer formas, contornos. Girava o olhar sem mexer a cabeça. Estava no quarto. Mas parecia outro, não porque tivesse mudado as coisas, e, sim, porque eu via de uma outra maneira. É como se eu antes não enxergasse o que tava na cara, e naquele momento eu me abraçava com eles. Nunca tinha achado o quarto legal. A paz me inundou. Era ali meu lar. Estava em casa. Segurança. De pronto, larguei olhar sobre mim. Tudo ali, não faltava nada, completo, inteiro, e, igualmente, diferente. As coisas que eu não gostava e até odiava em mim sumiram, não porque elas simplesmente desapareceram, e, sim, porque eu já não concebia elas como antes. Via outra beleza nelas. Eu me aceitava por todo e com tudo, respeitando a lógica de cada parte, percebendo e aquiescendo a diversidade que existe no mundo em mim. Foi belo. As pernas queriam ficar de pé. Levantei. Espichei o corpo. Acordado. Ativo. Lambi meus beço. O paladar tava aguçado. As pontas de minhas patas sentiam o frescor do chão calçado de porcelanato. Eles queria chão nu. Respirei fundo. Meus pulmões inflaro com o cheiro de terra molhada carregada de outros odores múltiplos e mesclados. O desejo foi único. Soltar para janela. Como vontade tem pressa, fiz logo. Da janela, a mesma vista que antes achava monótona e pobre, passou a ostentar outra agitação e riqueza. Era como se tudo fosse novo.


Sim, tudo era novidade, sim. Nada se apresentava para meus sentidos como anteriormente. Tudo e todos traziam em si surpresas. A cada fraçãozinha de tempo, eu era agraciado com algo. Provava tudo. Nada escapava. A idiossincrasia que se deleitaaava... O ventinho frio me roçava gostoooso... Deixava meus pelos úmidos, macios e sedosos. Conseguiu arrancar o sorriso de minha boca. Dé-lí-ci-á! Levantei os’ói pro céu. Que fantástico! Era lindo demais. Muitas nuvens, gigantescas, todas unidas como um infiniiito lençol oponentemente cinzanegro, pesado, cobrindo a todos cá em baixo, tornando o dia uma outra noite – a Noite é encantadora. Inspira os desejos mais desejosos e fomenta os sentimentos mais indomáveis. Agora, a Noite-Em-Dia, essa é singular em tuuudo. É dia, e é noite ao mesmo tempo. Os ânimos dos seres mudam. Existe o profundo senso de respeito. Todos ficam mais reservados e o estado de vigília se aguça. É a vez de ser espectador diligente. O teatro está prestes a começar. Todos em seus lugares. Voilà! – Trovões e Trovoadas iluminavam tudo, Raios riscavam o céu em rachaduras brilhanserpentes e faziam a comunicação entre céu e terra, e toda atmosfera se enchia de Pujança da Natureza: era o grito da Dança da Continuidade. Nada se cria, tudo se reconstrói numa farsa criativa. Ciclos intermináveis. Origens? Novo? Nada encontrado. Outros conceitos. O vento ia se fortalecendo. As plantas, nervosas, seguiam ele balançando seus cimos no sabor das torrentondas de ar. O solo, mesmo molhado, clamava por mais água, junto com todos os outros vegetais e seres (principalmente os minerais. Esses queriam reações de si e químicas entre vários). Insatisfação, por ora. A atmosfera se movimentava agilmente, se organizava, se arranjava, ia dar o que tanto queriam. Ela era o ceio cheio de leite pronto pra amamentar os famintos. Então, veio chuva. Generosidade. Gotas minúsculas se juntavam a outras até formarem aberrações aceitáveis e desejáveis. Quando chegavam no chão, se ouvia o estralo que elas faziam e se notava a satisfação do solo e dos que nele se firmavam. Caía com vontade, forte, rigorosamente bonita, soberba, poderosa. Em instantes, lagos cheios, rios transbordantes, planaltos escavados, planícies inundadas – é maravilindo ver as águas, com toda sua potência, arrastar e carregar tudo que está em sua frente. Nada resiste. Tudo é levado. Após sua passada, também muita coisa fica. Fertilização. Mudança. – Paisagens transformadas e em metamorfose. Destruição. Construção. Refazer. Horizonte era cortina acinzentada. Não dava pra ver mais nada. Tudo era um cinza de águas respeitando a gravidade. Eu, já transgredindo o encanto, me exigia Gozo. Queria passar de espectador a co-ator. O convite veio de cada celulazinha que me fazia Colônia Vida. Não demorei. Aceitei. E mergulhei naquele mundão de chuva.


Uiuiui... O que foi aquilo? Que coisa mais maravilhosa! Nada comparável com tomar banho de chuva. Sentir ela te tocar por todo, tomando você por completo, preenchendo todos os espaços secos. Naquele instante, não sabia o que era medo nem repugnância de água. Muito pelo contrário, quanto mais tinha ela em mim, mais desejava ela. Corria livre, desembestado. Subia telhados, escalava árvores, aportava em lajes. Ia ao ponto mais alto. Abri a boca. Deixei ela me alimentar. Confirmou o que já se sabe: sou líquido em maioria. Me reabasteceu! Que gostoooso... A água da chuva é muito saborosa. Mata de morte matada a sede, que ali foi outra. Estava em GOZANDO. Parado, na mais alta das lajes, curtia tudo que o dia chuvoso me ofertava farto. Eu, grato, me entregava inocente, abrindo todas as portas possíveis de minha ocorrência. Fiquei assim por um bom tempo, até a última surpresa chegar. Senti um forte baque em minhas costas. Corri a pata pra lá. Era alguma coisa grudada nela. Segurei e trouxe pra mim ligeiro. Queria saber logo o que era. Assim que botei meus olhos sobre a coisinha, completei a satisfação. Foi a Libélula que há um tempo atrás me ajudou a renascer. Ela tava exausta. Com ar de bêbada. Só se tirava dela risos de Alegria e soluços de Felicidade. Ela tava toda largada, aberta, satisfeita. Saci Pererê lhe fez visita. Eu contemplava ela em respeito máximo. Era toda realização de Vida. Nela, a Dinâmica já tinha completado sua jornada. E aí já não lhe restava mais nada. A Morte chegou inevitavelmente linda. Com ela, o Devir tornaria o corpo dela adubo de vida. Em minhas patas, antes, ela se despediu. Olá, meu lindãooo! Deu último sorriso. Essa foi a melhor imagem que já tive. Morreu à Oxum. Ela, sim, conseguiu ser a Felicidade. Eu, com ela, através dela, pude me conceber a tudo e, finalmente, entender o que tanto ela falou pra mim no nosso primeiro encontro. Só pude, então, lhe agradecer. Trouxe ela pra mais perto e lhe deu o Beijo de Amor e Amizade e Amizade e Amor. A lágrima escorregou de um dos olhos, e mais outra veio, e muitas chegaram. Saia chuva de mim também. Me unia a todo aquele espetáculo. Fui a parte do Continuum. Naquele agora, logrei tangenciar a satisfação, rocei a Felicidade. Fui elevado. Cheguei ao cume. Consegui, com êxito, me permitir aos outros e a experiências. Conquistas. O que um dia de chuva não faz! Nasci de novo. Renovado, ganhei o dia. Saciado, jamais! Sim, mais um! É o que está em mente desde o término daquele dia. Quero outros “dias chuvosos”, quero “outras chuvas”, porque sei que nenhum nem nenhuma serão como foi aquele e aquela. Cada um/uma trarão seus traços de intempéries e temperos. Que se faça o banquete! A vida pra mim ainda tem muito...


GLOSSÁRIO:

A preta de lá de casa: a empregada.
Alice: pessoa boba, ingênua.
Aff: interjeição.
Boaça: de boa, tranquilo, bem consigo e com os outros.
Bobe: bobeira.
Boresta: de bobeira, sem fazer nada, ocioso.
Brilhanserpente: brilhante e serpente.
Caralho: interjeição.
Colé: qual é?
Colortransparente: colorido e transparente.
Comer H: acreditar no que alguém fala/diz.
Comer regue: aceitar desaforo, afronta; temer ameaça ou ofensa de.
Cudoce: pessoa que fala demais, e nada faz; enrolada.
Danado: do verbo danar-se (irritar-se); retado; esperto, ágil, sagaz, traquino, abusado.
Da porra/ pra porra: modificador ou intensificador (bom ou ruim; muito, bastante).
Dar mole: vacilar, errar, cometer engano.
Dar sumiço: desaparecer(se), sumir, sumir com algo.
Dar uma geral: vasculhar tudo.
De boa: > boaça.
De graça: sem algum lucro; sem alguma intenção ou proveito.
Desconfidissimulado: desconfiado e dissimulado.
Desta: mesmo que deixa estar.
Dexa quéto: deixa estar.
Escrachar: ridicularizar.
Estar rebocado: fato, acontecimento, coisa mais que óbvia, clara, iminente.
Ficar fila da puta: irritar-se, danar-se, retar-se.
Filar a boia: comer da comida, geralmente sem ter contribuído com alguma coisa.
Fuder: prejudicar alguém ou algo (“pra fuder logo com cara”).
Incomodestranho: incomodar e estranho.
Interessemocionante: interessante e emocionante.
Juliano: como os soteropolitanos chamam um hospital psiquiátrico de Salvador.
Maravilindo: maravilhoso e lindo.
Mári: maresia; boresta.
Marrento: tirado, orgulhoso, pomposo, arrogante, chato.
Miseravão: espertalhão; forte; respeitado; temido; admirado; retado, danado; todo-todo.
Miserave: miserável.
Mole: > dar mole (“maior mole”).
Molhafrio: molhado e frio.
Na geral: no espaço livre, na rua, no campo, ao ar livre.
Não estar com saco/ não ter saco: não ter vontade, desejo de.
Neguin: neguinho < negrinho.
Num tapa: com rapidez, de imediato, logo.
O que há: o melhor, o mais belo.
Ops!: interjeição.
Os’ói: os olhos.
Papito: derivado de pai.
Passar de graça: > de graça; sem deixar vestígio ou marca; pouco ou nada notável.
Péra: espera.
Pertim: pertinho.
Porra!: interjeição.
Porradona: danado, retado, o que há.
Preju: prejuízo.
Rabo de olho: olhar de canto de olho; desconfiado; irritado.
Radim: radiozinho.
Raia: um tipo de pipa quadrangulada muito comum em Salvador.
Raiai: interjeição.
Rango: comida, geralmente almoço ou janta.
Renca: grupo, conjunto, galera, muita gente ou coisa juntas.
Retado: do verbo retar-se; ver danado.
Rsrsrs: risos; o mesmo que ririri.
Sacana: quem comete sacanagem; sacripanta.
Sacanear: cometer sacanagem; prejudicar; aproveitar-se ilicitamente.
Sarcasirônico: sarcástico e irônico.
Sozim: sozinho.
Tirar/ tirar onda: fazer alguém de besta.
Todo-todo: > o que há; danado; retado; porradona.
Torrentonda: torrente e ondas.
Traquimaldade: traquinagem e maldade.
Uma cara: há muito tempo.
Vacilo: mole; erro.
Vacilão: otário.
Vei: vocativo derivado de velho; cara.
Zé Ruela: pessoa besta; otário; vacilão.

DIÓGENES SILVA