quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Olá! [poema]

Sobre os contornos do suor,
produtos do labor do homem para o homem, 
O corpo, sou a indiferença simpática 
e a soberba alcançável.
Afinal, todo Rei tem como obrigação retribuir
as reverências aos insaciáveis súditos,
assim como toda Diva
deve aos seus admiradores
o bater suavemente ritmado de suas ancas tropicais:
- Olá! (Com beijo no ombro), a satisfação do olhar alheio
me motiva a ser o que estou:
a Alegria do queijinho e a Felicidade das "rêivis".
Tá caralho! Precisava? Desnecessário, nééé?
E chorem, chorem muito,
porque a superação ainda não chegou...
E, como todos têm o que merecem, eu quero mais, muito mais!
Mais que O corpo, 
sou o fôlego da amizade e a energia do amor. 
E, em minha serenidade, caminho lânguido com a humildade
daquele que sabe muito bem que a vida é simples
e apenas uma passagem - que, com idas e vindas,
precisa ser experimentada por todas as beiradas...
Que sejam bem-vindos os que portam ousadia, coragem e labor
próprio dos que são puros de coração em sua plena mundanidade!
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk




Dedicado.
E escrito ao som de Bethânia: "Reconvexo".

Por Dió. SSA-BA, 14/11/2012







segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O que é emerso pelo fluxo de consciência n’A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector? [texto acadêmico]


Universidade Federal da Bahia
Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura
Representação Literária / Prof.ª Dr.ª Lígia Telles






Diógenes Pereira da Silva



O que é emerso pelo fluxo de consciência n’A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector? 




Salvador, 
Outubro de 2012




O que é emerso pelo fluxo de consciência n’A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector?

            Ao longo deste ensaio, tenho como empreendimento a análise da narrativa romanesca A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector, me atentando ao fluxo de consciência nela presente, o qual exibe um eu confessional e (pós)moderno. Para tal, lanço mão do diálogo com o texto A Meia Marrom de Erich Auerbach – mas sem me aprofundar no segundo, pois o foco do presente texto é, justamente, o romance de Lispector.
            A Paixão segundo G.H. tem como narrador-personagem uma mulher, cujo nome é as iniciais G.H. Essa “dona” de posição sociocultural abastada relata, em primeira pessoa, a experiência vivenciada por si quando tem o impulso de adentrar e querer limpar o quarto de empregada de seu apartamento. Já no interior do aposento, se choca e se frustra com o que encontra: limpeza, vazio, brancura e luz. Esperava totalmente o inverso. Percorrendo o espaço, se depara com os riscos de uma mulher, um homem e um cão nus, feitos a carvão, gravados na parede pela sua ex-empregada, Janair. Mais adiante, no guarda-roubas, encontra uma velha barata, a qual esmaga (sem matar de imediato) na porta do móvel. E é a partir daí que, movida por “um misto de medo e ódio (...) [e] sob o fascínio da barata que a repugna e atrai” (NUNES, 1995, p. 58), G.H. expõe o horror e o gozo de um encontro no qual a êxtase fomenta toda a pulsão da narrativa, “absorvendo G.H. na continuidade alucinatória de uma vida envolvente, em que se vê sendo vista, esvaziando de sua vida pessoal” (idem).
            “Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi” (LISPECTOR, 1998, p. 11), assim se inicia o romance já dando pistas do que vem adiante em toda a narrativa: o desejo de comunicar e se comunicar, a necessidade de externar e compartilhar sua experiência de tormentos de toda uma viva a partir de um fato banal do cotidiano do narrador-personagem, G.H. E isso se dá por meio do fluxo de consciência, que é constante em toda obra.
            De acordo com Alfredo Coelho de Carvalho (1981), o fluxo de consciência é a apresentação do que ocorre na consciência do personagem; consciência essa que se manifesta num contínuo fluxo sem fragmentos nem ajuntes. N’A Paixão segundo G.H., esse fenômeno é desencadeado pelo encontro de G.H. com a barata e o ato de esmagamento do animal. Em diálogo, outro romance (pós)moderno, “To The Lighthouse” de Virginia Woolf, analisado por Erich Auerbach no ensaio A Meia Marrom, também exibe a narrativa sob forte orientação do fluxo de consciência, que é desatado a partir do “ato de medir o comprimento da meia” (AUERBACH, 1976, p. 477), que a personagem senhora Ramsay dará de presente ao filho do faroleiro.
            De início, uma das primeiras características da narrativa de A Paixão segundo G.H. a ser observada como produto resultante do fluxo de consciência é um esvaziamento do eu, promovido por sentimentos contraditórios de dúvida e certeza, medo e coragem, atração e repulsa, ódio e prazer, desorganização e reconstrução, desilusão e encantamento, deslocamento e assentamento e des-cobertas: “todo momento de achar é um perder-se a se próprio” (p. 16), “não sou uma pessoa inteira” (p. 18), “a verdade nunca me fez sentido” (p. 19), “perdi o medo do feio” (p. 20), “criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade” (p. 21), “o que os outros recebem de mim reflete-se então de volta para mim, e forma a atmosfera do que se chama: ‘eu’” (ps. 27-28), “eu me dedicava a cada detalhe do não” (p. 32); o que, segundo Nunes (1995), é a exibição de uma sabedoria paradoxal, que, por meio da perda, há o ganho num inteligente jogo dialético, filosófico e ontológico de negação de si mesma por G.H., mas que a eleva a sua realidade própria e verdadeira.
            O eu de A Paixão segundo G.H. tem a necessidade visceral de transbordar, falar de si e, ao falar de si, conta do outro, das coisas, do mundo, do ser não sendo e do não ser sendo em ato confessional. Isso abala as estruturas de verdade, traz o avesso à tona, busca o conhecer e o re-conhecer por via dos questionamentos, das afirmações complexas, confusas e contraditórias, das ilusões, das alusões, das alegorias e das metáforas. Discute, sem cerimônia num estado doce-acre e envolvente, a própria existência do ser (pós)moderno:
(...) mas impedir o quê?
(...) O mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico. Tudo em mim fora reivindicado pelo começo dos tempos e pelo meu próprio começo. Eu passara a um primeiro plano primário, estava no silêncio dos ventos e na era de estanho e cobre – na era primeira da vida.
Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos. (p. 69)

O que se comunica com a análise de Auerbach (1976) acerca das digressões de senhora Ramsay de Virginia Woolf em “To The Lighthouse”:
Trata-se, preponderantemente, de movimentos internos, isto é, de movimentos que se realizam na consciência das personagens; e não somente de personagens que participam do processo externo [o contato e esmago da barata ou o comprimento da meia, nos respectivos romances], mas também de não-participantes [sic], e até de personagens que, no momento, nem estão presentes: people, Mr. Bankes [e do interlocutor que G.H. cria e acredita dar as mãos]. (p. 477)

O contraditório nojo e fascínio que G.H. tem sobre a barata, quando, por exemplo, descrever esse inseto com tamanha verossimilhança, curiosidade, presteza e proximidade – como se fosse seu par ou a “outra” barata sobre a distância de quem vê sendo vista, que mais que observa; participa em experimento de ser estando –, denuncia uma característica recorrente às personagens de Clarice Lispector: são menos agentes que pacientes da experiência exterior em face da qual não há controle, permanecendo a forte paixão pela existência, se deixando envolver (NUNES, 1995):
Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grilos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real. (p. 55)

            Nunes (1995) destaca que outra característica importante das personagens Lispectorianas é a “violência represada dos sentimentos primários e destrutivos – cólera, ira, raiva, ódio – que subitamente explodem” (p. 102); fenômeno percebido claramente, por exemplo, ao longo do “capítulo” VI. Nessa parte da narrativa, G.H. deixa vazar, como vaza a matéria branca da barata, seus desejos e impulsos mais íntimos e intensos entre, durante e após o momento da vontade e da realização de matar a barata:
Sem nenhum pudor, comovida com minha entrega ao que é o mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que era eu (...). Essa mulher calma que eu sempre fora, ela enlouqueceu de prazer? Com os olhos ainda fechados eu tremia de júbilo. Ter matado – era maior que eu, era da altura daquele quarto indelimitado [sic]. (p. 53-54)

            O encontro com o inseto é o ponto de fratura do sistema no qual G.H. está emersa, indicando o experimento da personagem em (auto)conhecimento. Isso suscita sua introspectividade com força, desenhando sua realidade interior e profunda (NUNES, 1995). Com isso, há, sim, um momento de descoberta de si pelo outro; existe uma libertação; ocorre um gozo em face de uma vida repleta de “inércia”.
            Mais adiante no “capítulo” VII, a fluxo de consciência promove a digressão, que causa a ilusão, o devaneio: “abria-se em mim, com lentidão de portas de pedras, abria-se em mim a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada” (p. 58). E esse “silêncio” é justamente a resposta, a coisa pulsante em seu vazio que preenche a G.H. desumanizada, a mulher transpassada em (auto)transgressão pela agressividade da vida em vivendo. É outra experiência, é o se expandir metaforizado pela estada num deserto: “e na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama” (p.60). E, como num deserto amplo e vazio, há espaço, há a possibilidade de ocorrências. Surge, então, a insegurança e o medo inevitáveis aliados à vontade de prosseguir nessa empreitada de expulsar a matéria branca da barata que está em si também. Para tal, forja o interlocutor com quem compartilha a experiência vivida: “segura minha mão porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua” (p. 60). A vida em devir, insatisfeita, contraditória, metamórfica, em constante processo de trocas e rearranjos.
            Como todo texto é formado por um mosaico de textos (COMPAGNON, 1999), é inevitável o diálogo entre A Paixão segundo G.H. e “To The Lighthouse”. Muito que se diz sobre o segundo, por parte de Auerbach, é válido para o primeiro, portanto. Auerbach nos fala que o narrador (como aquele que lança voz sobre fatos objetivos) é suprimido quase que totalmente, pois tudo que está sendo dito na narrativa surge como reflexo na consciência dos personagens (1976). Assim como a senhora Ramsay transmite o que pensa e o que sente em relação aos objetos com os quais se confronta (o comprimento da meia, a conversa dos criados, o toque do telefone), similaridade ocorre com G.H. A personagem do romance de Lispector, quando se apropria da existência da barata e se confundindo com ela, demonstra, igualmente, o que pensa e sente: “eu, corpo neutro de barata, eu como uma vida que finalmente escapa pois enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz branca no reboco da parede” (p. 65). Ainda nesse trecho, ocorre a diluição das fronteiras em favor do continuum da existência (e, com ela, todas as peripécias e idiossincrasias de cada parte do “mosaico”: o quarto, o desenho na parede, a barata, a matéria fofa e branca que sai da barata, a G.H. desumanizada – num apanhado mais amplo sobre a obra).
            No “capítulo” IX, a questão existencial é outra vez posta em destaque. Numa trama dialética repleta de conexões e alegorias, o narrador-personagem, primeiramente já ciente de sua transformação a partir do contato e do ato no quarto da empregada, questiona em que pessoa se transformou: “e agora o que sou?” E a resposta vem em afirmação que conduz à negação: “sou: o que vi. Não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com os seus planetas e baratas” (p. 67). Será mesmo? Creio que G.H. aí tenta se defender inutilmente das possibilidades da existência (mais: da coexistência), mas ela é presa de seu próprio algoz: sua paixão. A paixão de se esvaziar da matéria branca de barata que a implode somada à necessidade da troca e da renovação com e pelo outro.
G.H. teme e anseia porque tudo está mudando, nada é fixo, nunca o foi, é o ciclo da existência forjando a realidade numa farsa criativa, e repetitivamente inteligente, e sedutora, e perigosa. Surpresas! Ela, outra vez, é tomada pela contradição do medo e do fascínio. Vacila em parar, mas segue porque a paixão de des-cobrir e comunicar, de des-vendar e se comunicar é maior que todos os riscos:
A vida se vingava de mim, e a vingança consistia apenas em voltar, nada mais. Todo caso de loucura é que alguma coisa voltou. Os processos, eles não são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta. Às vezes a vida volta. Se em mim tudo se quebrava à passagem da força, não é porque a função desta era a de quebrar: ela só precisava enfim passar pois já se tornara caudalosa demais para poder se conter ou contornar – ao passar ela cobria tudo. E depois, como após um dilúvio, sobrenadavam um armário, uma pessoa, uma janela solta, três maletas. (p. 70)

E o risco é real. Está aqui: no espaço-tempo confuso e pululante de G.H.: “e isso tudo me parecia o inferno, essa destruição de camadas e camadas arqueológicas humanas” (p.70), como num processo de erosão do solo, que, lentamente, remove estratos do solo e os leva, os depositando em outro lugar, formando outro solo do ponto de retirada ao ponto de descarga.
            Outra vez, o fluxo de consciência ganha fôlego na menção subliminar que há na estrutura da barata. Ela é formada por cascas, assim como o sujeito é constituído de máscaras e a sociedade é organizada por meio de convenções e costumes hipócritas em sua conveniência teatral, além da sobreposição da história que nos converte ora naquilo que cremos ser dos humanos (com nossa genialidade, sensibilidade e beleza), ora naquilo que pensamos estar nos limites das bestas (com nossa belicosidade, intolerância e maldades): “o resto, o que não se via, podia ser enorme, e dividia-se por milhares de cascas, atrás de coisas e armários. (...) Atrás da superfície de cascas – aquelas jóias [sic] embaçadas andando de rojo?” (p.70)
            Em “To The Lighthouse”, Auerbach nos revela que é uma tendência nos textos de Woolf se ater a acontecimentos pequenos, de pouca significância, de suposta escolha gratuita, como: a medição da meia, uma fração da conversa com a empregada, um telefonema. Similarmente, isso ocorre na narrativa de A Paixão segundo G.H. quando G.H se atém a barata, as formas do corpo da barata, a matéria branca que sai dela, o quarto com seu vazio inquietante. O apego a esses fatos diminutos é inversamente o propulsor da grandeza do texto. É a partir deles que o fluxo de consciência é permitido, sustentado e fomentado, o qual, por sua vez, traz toda riqueza dialética em diálogo com outros textos, experiências, suscitando a riqueza e beleza da introspectividade vivamente contraditória e inquietante da personagem.
            Nunes diz que “mesmo o pequeno, insignificante ou vil, oculta um enorme poder de existir” (1969, p. 122). Logo, não vejo n’A Paixão segundo G.H. a escolha ao acaso que Auerbach percebe no texto de Woolf. Muito pelo contrário! Na narrativa lispectoriana, os animais (a barata) e as coisas pequenas ou aparentemente sem importância (como o quarto vazio de empregada) têm uma significância muito profunda para a própria poética do romance, pois são o elo simbólico de toda magia, e enigma, e tensão do ser e da existência em interconexão com o humano em sua manifestação, em nuances, enquanto humano e não humano.
            “Vista de perto, a barata é um objeto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias [sic]. É toda rara, parece um único exemplar” (p. 71). No fragmento, a marca de pejorativo geralmente atribuída a insetos como a barata, que vive de lixo, restos e nos esgotos (entre outros tantos espaços possíveis para esse ente da natureza versátil, forte e adaptável), é apagado, alçando o imundo animal ao patamar glorioso de uma mulher em sua máxima plenitude: o estar noiva, ornada de joias. Ela, a barata de G.H., não é qualquer barata, pois; é especial, é singular e plural; é aquela que a fascina, apesar do nojo, da repulsa e do medo que ela provoca em G.H. É a “joia” que faz de G.H. uma mulher que transcende o humano, que se explode em sua implosão interna, desabafando, conhecendo a si em desabamento por meio do externo, a espera de um “marido”, como toda noiva – e, como noiva num casamento, orgulhosa, vaidosa e transbordante de si, celebrando a vida em gozos.
            “Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos (...). E por que o imundo era proibido? Eu fizera o ato proibido de tocar no imundo” (p. 71). Como é de se esperar, logo em seguida, G.H., contraditoriamente, volve ao seu posto de humano, superior à barata. A barata era imunda, e, como G.H. adentra no universo baratídico, também se torna impura, um inseto. Contudo, a experiência não trouxe proveitos? Sim, eis aí o porquê do questionamento das verdades estabelecidas quando ela questiona a razão de o impuro ser negado e rechaçado – a Bíblia aí entra como representação máxima desse mundo governado por leis castradoras e moralizantes, que orienta, conduz e condena e pune o infrator (G.H.).
            Voltando a atenção para o quarto de empregada, ele é o que Nunes chama de “verdadeira ampliação onírica do mundo” (1969, p. 115). Isso porque o quarto nada mais é que uma parte de um todo. Ele está inserido num espaço maior, o apartamento, que, por sua vez, está no condomínio, que faz parte da cidade, a qual está no Estado, o qual integra a União, localizada na América, pedaço do mundo, “satélite” do Sol, diminuto rincão da Via Láctea, fração do Universo. Em outras palavras, tudo está interligado, conectado, unido num único corpo; tudo é uma coisa só que se apresenta em particularidades de pedacinhos: G.H., a barata, o quarto.
É a partir dos pedacinhos que formam o todo que a paixão de G.H. escorre pela narrativa em direção à realidade e ao leitor, com o qual “dá as mãos”. E que paixão é essa que domina G.H.? É a paixão de ser; (e sendo) é transgredir, é questionar, é comunicar e se comunicar, é interagir, é chocar e se chocar, é trocar, é conhecer e se conhecer, é gozar:

Abri a boca espantada: era para pedir socorro. Por quê? Por que não queria eu me tronar imunda quanto a barata? Que ideal me prendia ao sentimento de uma idéia [sic]? Por que não me tornaria eu imunda, exatamente como eu toda me descobria? O que temia eu? Ficar imunda de quê? Ficar imunda de alegria. (p. 73)

O que também revela o caráter dramático (e, sobretudo, trágico) do romance (NUNES, 1969).
            A analisar o tempo de “To The Lighthouse”, Auerbach acredita que há uma clara e íntima relação entre a operação do tempo e a “representação da consciência pluripessoal” (1976, p. 487) uma vez que o processo de representar da consciência não se limita à experiência exterior aos domínios da mente. Ele conclui que a experiência exterior é apenas um suporte para o que de fato tem importância na narrativa; aquilo que é desenvolvido como reflexo dos fenômenos mentais em face do objeto real exterior.  Por isso, o tempo é outro tempo. É um tempo que não “corre” verossimilmente. Ele é o desdobrar de pequenos instantes (como o medir a meia) em longos momentos nos quais o fluxo de consciência ganha “corpo” e “voz”. Paralelamente, o mesmo se dá no texto de Lispector.
            “A barata me tocava toda com seu olhar negro, facetado, brilhante e neutro. E agora eu começava a deixá-la me tocar. Na verdade, eu havia lutado a vida toda contra o profundo desejo de me deixar ser tocada” (p. 88). Apesar de os verbos estarem em pretérito, o momento é narrado de tal forma que se confunde com o presente da leitura – note a presença do advérbio de tempo agora. – O que importa aí, portanto, não é o quando nem o quanto durou a experiência, mas, sim, a experiência em si e o que ela representa. G.H. cede à sua paixão. Num momento atemporal, repousado em outra realidade, a sua, e ela se permite à Permissibilidade. Suas fronteiras são evacuadas de (quase?) toda e qualquer proteção e o outro entra em si, fazendo de sua existência uma ponte entre a parte e o todo, e nisso há prazer, pois é corromper e transgredir com toda a forma ditadora e duradoura de ser em limitação. É outro momento; é libertação.
            Liberdade lembra o amor vivido, impedido ou aspirado. O amor está na paixão de G.H. Ela mais que o deseja; ela o sente em lembrança ou esperança. E, no sentir, exprime toda a tensão que é compartilhar o sentimento de amar junto com o outro, que forma o seu par: “(...) devagar beijara, e quando chegara o momento de beijar teus olhos – lembrei-me de que então eu havia sentido o sal na minha boca, e que o sal de lágrimas nos teus olhos era o meu amor por ti” (p. 89). E é na alegoria do “sal” da lágrima que está o sabor da experiência. Logo, É um amor dramático, talvez trágico, mas é uma forma de amar, sim, à maneira de G.H – e, como G.H. é um nome que remete a W possibilidades de vários nomes, também é a forma de amar de tantas(os) outras(os).
            Como aponta Nunes (1969), o estar em náusea é desempenhado ao extremo em A Paixão segundo G.H. juntamente com outros estares: medo, ódio, fascínio, repulsa, frustração, curiosidade, dúvida, gozo, alegria, amor. É a náusea, sobretudo, que escava o humano de G.H., a desumanizando, aflorando seu nu igualmente mais nu que o próprio nu, como o nu que há nas figuras riscadas a carvão no quarto de empregada. Inevitavelmente, a náusea levada ao limite faz aflorar todos os outros sentimentos que até então estavam trancados em seu mundo interior, e a paixão (de acordo com a G.H.) é permitida.
            No “capítulo” XIV: o medo é detalhado, exibindo a fragilidade do ser em face da grandiosidade da existência, mas em contraste com a grandeza da paixão que move G.H.; e o feminino e o masculino são marcados num certo embate, mas um se entrelaça no outro, são complementares. Ademais, são nos “capítulos” XV e XVI que um aspecto importante da narrativa é apresentado: o neutro. De que se trata esse neutro? É o “elemento vital que liga as coisas. Oh, não receio que compreendas, mas que eu me compreenda mal” (p.100). E o neutro está muito próximo do nada e do tudo; é o entre-lugar que dá forças à narrativa justamente porque é o motivo para que surjam as dúvidas e as perguntas, assim como cheguem a vontade pela transgressão e o desejo pela troca.
            O neutro é também a forma pela qual G.H. tenta explicar sua visão de realidade, aquela em que o nada e o ser se identificam, se confundem e se fundem (NUNES, 1969): “o neutro é inexplicável e vivo, procura me entender: assim como o protoplasma e o sêmen e a proteína são de um neutro vivo. E eu estava toda nova, como uma recém-iniciada” (LISPECTOR, 1998, p.102). Dessa forma, Clarice Lispector nega a linguagem numa fração de silêncio, que culmina na transcendência e repousa na revelação do ser (NUNES, 1969).
            Ademais, de acordo com Compagnon (1999), a mimèsis não é o simulacro de Platão, a mera cópia ou réplica; antes, é como é designado o conhecimento próprio ao ser humano e seu ethos e sua idiossincrasia. Ato contínuo, se valendo da mimèsis da experiência, G.H. explora seu interior labiríntico com o auxílio do outro (a barata, por exemplo, com sua matéria branca). Nesse jogo, se forma o ciclo e o eu é o mesmo, como num “armadilha” de espelhos no qual os objetos refletidos formar várias imagens numa só imagem.
            Por fim, o curioso é como a literatura, mesmo sendo autorreferencial – pois a literatura fala da literatura (COMPGNON, 1999) –, diz muito sobre o mundo (e tudo que está nele e além dele: a própria existência, que contém tudo). Assim, não é gratuito, portanto, que em A Paixão segundo G.H. a frase final de um “capítulo” seja exatamente o início de outro. Isso não seria apenas uma ferramenta para unir o discurso textual, tecendo uma ligação íntima e linguística entre as partes que formam o texto como um todo; além, é a comprovação de que a paixão de G.H. possui a lógica da unidade, ou seja, não há como transgredir sem agressão – o invadir, o adentrar, o devassar –, não há como chegar a si sem ir ao outro. Tudo está conectado, formando o neutro, o nada, a realidade, a Ocorrência, a Existência, a Paixão e A Paixão segundo G.H.

Referências:   

ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.

AUERBACH, Erich. A Meia Marrom. In: MIMESIS: a representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. rev. Sao Paulo: Perspectiva, 1976.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo & fluxo da consciência: questões de teoria literaria. São Paulo, SP: Pioneira, 1981.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da Teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo: (ou a polêmica em torno da ilusão). 10. ed São Paulo: Ática, 2001.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H: romance. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1998.

NUNES, Benedito. O dorso do tigre: ensaios. São Paulo, SP: Perspectiva, 1969.

_______________. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo, SP: Ática, 1995. 

PLATAO. A República. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1997.





domingo, 21 de outubro de 2012

Délícia!!! Rs [RELATO]


Numa dessas viagens, conheci uma pessoa que me disse algo que nunca saiu de minha cabeça: “a vida é feita de escolhas”. Aquelas palavras foram rasgando minhas resistências a partir de cada instante em que eu ia me alimentando de cada caloria de sua mensagem, assim como um bebê vai se arriscando e provando o que o tempo vai lhe dando a cada centímetro crescido.

Em outro momento, um gastroenterologista me disse mediante minhas queixas: “olhe, menino, você fala demais! Enxergue você mesmo, veja o mundo. Muita coisa que você acha complicada é muito mais simples que o ato de você andar, e outras tantas que, de verdade são complicadas, podem bem facilmente ser descomplicadas. Então descomplique e simplifique a vida! Você é bonito e especial em seu modo de ser  e pode ser assim eternamente, basta você nunca deixar de ousar e arriscar. Não tenha medo do Medo. Seja amigo dele. E vá, siga e pire mais sua cabeça.” Saí do consultório me sentindo o maior idiota do mundo! Como não ter percebido aquilo durante meus 28 anos! Era tudo: viver é se permitir de acordo com as escolhas rápidas em seu tempo e vagarosas na sua intensidade, mas sempre de acordo com o melhor para cada situação. Existir em vivendo era muito mais fácil que um bêbado pode devanear...

Pronto. De lá para cá, fui revendo os valores, os paradigmas, os preconceitos, as limitações, as intolerâncias, as vergonhas, os orgulhos, as minhas escolhas e decisões. Mudanças foram ocorrendo sob a trama de duras tentativas e erros em persistências contínuas. Parar jamais. Então, o que em mim já era uma característica natural foi se agigantando. Fui conseguido esboçar fugas da prisão sem muros na qual me fazia e faço algoz e vítima. E, em dia (e dias) inesperado, fugi daquilo que me acorrentava. Estava no asfalto...

De fugitivo a recapturado, fui colecionando atracações violentas com a Alegria e carícias pluridimensionais na Felicidade! Reciprocidade e correspondência. A física teórica nunca fez tanto sentido para mim como agora! O espelho não só sorria, ele chorava em sentir que os olhos não se limitavam a sua garagem, eram todos os dedos, assim como a boca era cada furinho da pele com sua língua que se alargava até onde a pele marca presença, o ouvido era todos os fios do corpo e o nariz, a própria mente ociosamente criativa com suas leis contraditórias: Quimera! E chorar é bom, bom porque você acaba de matar um SE em si para alimentar outro EU que ainda não tinha ganhado a chance de caminhar no calçadão de Ipanema.

E eu não posso – nem quero, nem devo, nem tenho o direito – de privar a história uma História: descobri que Boa Viagem é a Barra! Na eternidade de três dias, os limites de minha casa se confundiram com a vontade gozada em trocas. E mais que concordei: viver sozinho é possível, sim, mas viver com a diferença que não está em si, é muito mais maravilhoso; aprendi em aprendendo que a paixão não é o mais importante para uma união, e, sim, o que é melhor para si: a fluidez em estar bem, em paz e, ao mesmo tempo, preenchido pela presença de uma pessoa querida e conquistada sem a intervenção da paixão.

Inevitável! Hoje, provei o que todos desejam: o inédito de facto.

 Em casa outra vez, tenho a paz rememorante da saudade como companhia de cama. E o desejo de mais um abraço me encanta para o sonho... Que Délícia!!!!! Rs

Diógenes Pereira, SSA-BA, 21.10.2012

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Não, não foi um dia como outros! [Poema]

Não era mais um dia de Sol com céu azul e muito calor;
foi o dia em que sensibilidade foi insistente,
me apontando como é forte e cruel a ditadura
da felicidade a qualquer custo.
E todos embarcam nessa: vivem no déficit,
e pousam com sorrisos e abraços largos, calorosos;
e dentro de si a verdade, apenas a solidão
de mais uma entre tantas noites
sem o calor da presença sincera, voluntária e alheia de um par.

Dió. Ssa-Ba, 19.09.2012

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Pois é... [poema]

Adianta deixar as perguntas fazerem parte de pensamentos?
É bom deixar que indagações sejam 
o empreendedor de medos, covardia, desejo e paixões? 
Elas nunca chegam ao fim,
ora se contradizem, 
ora se confundem, ora se multiplicam
ora parem verdades prematuras
que, como fetos mal-formados, 
produzem a morte sem beleza
ou adotam mentiras que, como a chuva de maio,
arrasam com tudo,
e apenas destruição resta pelo caminho sem vistas à esperança. 
Mesmo assim, os avós, no tempo deles, 
sempre têm respostas para as nossas perguntas e as indagações,
e nunca escutamos porque preferimos a ignorância da experiência.
E dúvida faz da cama uma noite de sonhos que não coadunam
com a pressa do relógio do dia que não falha em vir bem cedinho. 
E assim vou me paradoxando, vai te afirmando, vai se negando, vão se isentando, vamos nos fixando...
Conflito! O corpo, que sem entender mente complicada, 
exige, como um recém-nascido, apenas o básico da vida: 
alegria, gozo, felicidade.
E essas nem sempre vêm ou, quando nos visitam, damos um jeito de não oferecer
um delicioso bolo de cenoura com um refrescante suco de abacaxi.
Dá pra entender porquê as lágrimas dos olhos eram o lugar e nunca caem?
Faça um teste, atire fogo na chuva.
Se for aquele que consegue o possível, deixará de ser humana
e outras dimensões farão parte de nossas loucuras...

Dió. SSA-Ba, 06/08/2012

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O sujeito [poema]


O sujeito é o Senhor de suas atitudes 
e o Algoz de suas debilidades,
numa farsa criativa 
na qual se versa a história em agora perpétuo, 
que, por sua vez, se ergue arrogante 
e tolo  sob os fetiches da liberdade assistida
e subalterna aos caprichos da liberdade tutoreada. 

O que você é senão um protetorado de vontades 
e desejos confinados numa prisão sem muros?

Será que o espelho consegue refletir sem destorcer?
Destorcer não é contar uma fatia de possibilidades?
E até quando e quanto o acesso é permitido?

A fome vem mesmo quando não tenho necessidade.
E a gula me arrasta outra vez para o banheiro
onde o cocô é o melhor de mim em volumoso desperdício!


Diógenes P. ssa-ba, 07.06.2012

sexta-feira, 11 de maio de 2012

parece que é geral [poema]

tanta gente 
várias pessoas 
e muita solidão
parece que é geral
só se escuta vozes
que apenas repetem o mesmo
o amor que tanto se anseia
e nunca chega 


o que está errado
como existe vontade em todos os cantos
e mesmo assim sobram risos constrangedores
de corpos ainda quentes
que sempre procuram e jamais encontram


e para o enrijecimento da tristeza 
a resposta vem certa no silêncio da madrugada
aquela que é fria até em noites de outono na face oeste da baía

Por Diógenes Pereira. Ssa-Ba, 11/05/2012

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Americanidade e Americanização: Dialogismo entre a Narrativa Fílmica de Just Like the Movies e o Discurso Acadêmico de Americanidade na Mídia [TEXTO ACADÊMICO: ENSAIO]


Universidade Federal da Bahia
Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (Mestrado)
Expressões Contemporâneas da Americanidade
Docente: Sérgio Cerqueda
Semestre: 2012.1







Americanidade e Americanização:
Dialogismo entre a Narrativa Fílmica de Just Like the Movies e o Discurso Acadêmico de Americanidade na Mídia






Por Diógenes Pereira





Salvador, 30 de abril de 2012




1.    Introdução

O presente ensaio se predispõe a discorrer acerca da ideia de americanidade e da de americanização – sem pretender esgotar os temas e/ou suscitar todas as nuances possíveis de observação, análise e crítica desses –; antes, a empresa aqui vislumbrada se foca no devassamento da narrativa fílmica de Just Like the Movies (escrito, editado e dirigido por Michal Kosakowski) em diálogo com o discurso crítico-acadêmico do texto de Ana Rosa Neves Ramos, Americanidade na Mídia.

2.    Americanidade

Mesmo com pesquisadores competentes e diligentes debruçados sobre a imagem e imagens manifestadas (ou subtendidas, ou fossilizadas, ou ainda ignoradas, desconhecidas) de americanidade em sua ampla complexidade, é tarefa árdua pensar, analisar e discutir o seu conceito e sua definição, assim como sua presença na estrutura social das nações americanas e no imaginário dos sujeitos que as compõem.
Com vastas extensões des-ocupadas (genocídio de autóctones) em favor do re-povoamento forçoso (escravização de negros africanos) e/ou voluntário (europeus e posteriormente asiáticos), ou da subjugação e da aculturação de povos aborígenes indígenas, a América é construída e reconstruída como outra rede de coletividade humana por meio do complexo e intricado processo de mestiçagem, hibridização e/ou ajuntamento de etnias numa estrutura hierarquicamente rígida, a qual coloca os descendentes dos brancos (sobretudo dos herdeiros dos líderes coloniais, como ingleses, por exemplo) no stratus mais alto da sociedade multicultural ou mestiça. Violência. O que, inevitavelmente, suscitam a insatisfação, tensão, o mal-estar e o conflito em meio às relações de forças no interior da disputa pelo poder, localizando e determinando quem é quem ou quem é o que na sociedade.
Possuindo realidades socioculturais, político-econômicas e históricas diversas, o continente americano se apresenta como uma América multifacetada numa divisão tríade: América Anglo-Saxã – EUA e o Canadá Inglês –, América Latina (do sul) – México, Caribe, América Central e do Sul – e América Francófona (a latina do norte) – Quebéc. – Divisão que, por sua vez, já se emerge problemática por juntar elementos dissonantes numa mesma categoria, citando: O Haiti de base crioula francesa, a Jamaica de base crioula inglesa e o Suriname de língua neerlandesa no universo da América latina, por exemplo.
Não é gratuito, então, inferir que é, no mínimo, delicada a identificação, localização e devassamento da americanidade como fenômeno transnacional para toda a América – isso se a americanidade existe mesmo como tal; antes, há a possibilidade de americanidades para uma América heterogênea e plural. A discussão sobre a existência de americanidades em substituição da americanidade (ou o inverso), contudo, será posta de lado aqui. É vez de pensar na possibilidade real de uma americanidade multifacetada (uma americanidade diferenciada, em nuance) em vista que dados fenomenais históricos a viabilizam, o que há de comum para todas as nações do continente: o fato de todos terem surgidos como Estados-nação a partir do processo colonial, da imigração voluntária e/ou forçosa e do extermínio e/ou subjugação e aculturamento de povos autóctones; mais as particularidades e singularidades espaço-temporais de cada coletividade das Américas.
A partir da leitura de Neves Ramos, é possível trazer, no mínimo, três possíveis perspectivas para a americanidade: a estadunidense, a quebequense e a brasileira.
A americanidade estadunidense se repousaria na própria apropriação do ser americano por parte dos estadunidenses em detrimento das outras coletividades do continente. Mais: americanidade estadunidense nega o compartilhamento de traços identitários e de pertença em face do que é ser americano com outras nações e coletividades do continente americano; antes, ela seria o olhar para si a partir da crença na ideia da nação superior justamente pela sua excepcionalidade, sua pujança e poderio. Assim, os EUA, imersos em sua arrogância, presunção, convencimento e vaidade, se autoprojetaram como A América, o sonho de prosperidade e do sucesso calcados no código protestante e na ideologia marcante da liberdade, liberalismo, livre-iniciativa e individualismo, ou seja, independentes e superiores!
A americanidade quebequense é marcada pela tensão e pelo mal-estar constantes entre se sentir abandonado por e, igualmente, presa a uma França perdida no tempo e, ao mesmo tempo, presente na língua e nos traços culturais mais marcantes somados à presença e à dominação (ou hoje em dia o poder de voz política, econômica e ideológica duma maioria) do elemento anglófono, com o qual compartilha o status de canadense. Quebec, como a América Latina do Norte, ademais, não teria como projeto “inventariar as múltiplas maneiras nacionais de estar na América e sim, aquele de conceber, para alem das diferenças, um pertencimento ‘continental’” (Neves Ramos).
E a americanidade brasileira, mais que compartilhar com Quebec a “vontade” de pertencimento ao continente; uma vontade à brasileira, libertina, egoísta (e até inconsciente?) de pertencimento continental, tecendo laços de contato e união através do que há de comum entre os latinos da América, o próprio passado histórico de colonização de matrizes ibéricas, as quais foram atravessadas pela mestiçagem e pela hibridização e ainda pelo extermínio, subjugação, aculturamento e marginalização de povos indígenas, se volta para si mesmo em ampla vaidade e sentimento de distinção (e até superioridades em relação ao resto da América Latina, o que o aproxima da americanidade estadunidense), projetando sua americanidade em outra excepcionalidade: o fato de o Brasil ser um grande em questões econômicas, culturais, políticas, históricas, geográficas, com língua singular e processos históricos (sobretudo de emancipação política da metrópole e o caminho percorridos pelas décadas seguintes de seu poder central – o Império) distintos. Logo, há o desejo contrário, aquele que pretende não se juntar a uma latinidade americana como coletividade, pois isso tornaria o grande num pequeno, mais um elemento constituinte de um todo; pelo contrário, a latinidade e americanidade do Brasil se manifestariam pelos traços que fizeram e fazem do Brasil o Brasil.
Por fim, a narrativa fílmica de Just Like the Movies dialogaria com a Americanidade na Mídia por trazer a americanidade estadunidense representada pelas imagens de modernidade, prosperidade e progresso da nação que se autodenomina americana. Porém, uma “América” ameaçada pelo iminente ameaça da tragédia e da catástrofe. Agora, o mais curioso do filme é, justamente, sua predisposição em exibir essa americanidade estadunidense em confusão com o fenômeno da americanização. Ideia que será mais bem desenvolvida na próxima seção.

3.    Americanização

Na narrativa fílmica de Just Like de Movies, a colagem das cenas aponta para uma direção: o que foi fantasiado por Hollywood se tornou realidade. Não é por menos que as imagens tem destaque, trazendo a narrativa sob sua tutela. Logo, há  toda uma metalinguagem (metacrítica, metafílmica, metanarrativa) nela que suscita a discussão da espetacularização da catástrofe e, com ela, os fenômenos da americanidade e da americanização (em entrelace). E isso é permitido a partir da própria composição do filme, o recorte e a colagem de cenas de outros filmes unidos pela dramatização auditiva em uma sequência de imagens dinâmicas que fantasiavam a desgraça estadunidense, prenunciando e remetendo o espectador ao atentado de 11 de setembro.
O dialogismo entre as cenas de distintos filmes apocalípticos sobre os EUA que compõem o próprio drama narrativo de Just Like the Movies se comunica diretamente com o que Neves Ramos destaca em seu texto: o processo de americanização em imbricação com o se fazer da americanidade diferenciada dos EUA, de Quebec e do Brasil.
Por sua vez, os Estados Unidos da América – uma nação sem nome, como nos lembra Caetano Veloso – é a potência político-militar e econômico-cultural da modernidade, que lança seus tentáculos sobre todo o mundo ocidental, ocidentalizado, semiocidentalizado e aliciado pelo Ocidente. E uma das formas de os EUA lançarem seu poderio, sua dominação e sua influência é pela subjugação das culturas alheias às marcas de sua cultura. Eis aí o fenômeno da americanização.
O não ser americano, mas, sim, o estar americano (estadunidense) é o solo no qual se sustenta a americanização, o que Neves Ramos nos destaca diligentemente:

o certo é que, nesses tempos de globalização, a cultura norte-americana, presente no mundo do cinema, da música pop, das televisões a cabo, nos quais acrescento a internet, exerce uma atração cada vez mais forte entre as pessoas, criando uma similaridade de valores para os jovens [e também para os não jovens que estão igualmente inseridos no processo global de produção e consumo] – acréscimo em itálico meu.

E, mais adiante, Neves Ramos salienta que “da mesma maneira, na opinião de Proulx, a expressão da ‘americanidade’ mobiliza um sistema de conotação cobrindo um estilo, maneiras de fazer, uma escolha de ritmos nas produções, etc., que se atribui, certa ou erradamente, aos Estados Unidos”. Inevitavelmente, há certa interferência da americanização sobre a americanidade diferenciada (seja ela em soma ou subtração, ou ainda em rasura), sobretudo do Quebec e do Brasil, alvos da análise de Neves Ramos.
            Não é por menos que a citação de Yvan Lamonde por Neves Ramos é oportuna para a presente discussão somada a sua inferência, respectivamente:

a americanização do Québec, conceito de resistência ou de recusa, é esse processo de aculturação através do qual a cultura estadunidense influencia e domina a cultura, tanto canadense quanto quebequense – e mundial –, enquanto que a americanidade, que engloba tanto a América Latina quanto a América saxônica, é um conceito de abertura e de mouvance, que traduz a sua filiação ao continente Americano.
[E] essa vontade de fazer do conceito de americanidade uma busca de similitudes, bem mais do que uma compreensão dos percursos diferenciados conduz a análise a não distinguir americanidade e americanização – se é que tal seja possível – e a confundir, muitas vezes, os dois processos com a modernização.

            Neves Ramos nos explica como se manifesta a americanização, por meio do quê:

qualquer pessoa que tenha lido um pouco sobre a história da televisão e, antes dela, a história do cinema, associa americanização à dominação americana particularmente ao cinema. (...) A americanização é também, simplesmente, a constatação atual de que os americanos dominam ostensivamente o mercado internacional de audiovisual e que trata-se (SIC), para eles, de um dos mais importantes setores de exportação (o segundo, perdendo apenas para o setor da aeronáutica).


            Focando na produção artística dos EUA e de Quebec, Neves Ramos, primeiramente, distingue o fazer televisão comum aos estadunidenses em face do foco da TV pública, a não comercial, aquela que pretende informar, educar e entreter, a fim de dar suporte ao seu raciocínio acerca do processo de americanização enquanto imbricação para com a americanidade:

A reflexão sobre a americanização deve então levar em consideração o que se faz em nosso(s) país(es). O seu postulado é que a americanização da televisão deve ser concebida de forma mais genérica que a simples análise das consequências dos conteúdos das emissões americanas sobre as culturas nacionais. (...) Quando duas concepções de televisão se opunham: uma de serviço público (...) e outra comercial. (...) [Portanto,] não nos esqueçamos que para os americanos fazer televisão significa fazer um negócio como outro qualquer. [Mais:] a americanização da televisão poderia ser vista, ainda, como um processo que nega gradualmente, para a televisão, a possibilidade de ela desempenhar uma função outra do que aquela que lhe dita o Mercado e as regras comerciais.

Em seguida, a autora de Americanidade na Mídia compara o perfil de dois apresentadores, um dos EUA e outro do Canadá, Johnny Carson e Peter Gzowski, respectivamente, apontando suas semelhanças e distinções a fim de contrabalançar as relações de força entre americanidade e americanização:

e foi exatamente essa “personalidade cultivada”, que permitiu a ambos [Carson e Gzowski] esse forte relacionamento de intimidade com a sua audiência. Tal grau de intimidade implica, necessariamente em responsabilidade porque, para além de celebridades, cada um deles é uma figura nacional. Eles são vistos pelos outros como “representantes da alma do seu país”, com uma responsabilidade mais pesada aqui, no Canadá, do que lá, nos EUA. (...) Um é anti-intelectual, antes de tudo um comediante, e em seguida entrevistador[Carson]; o outro [Gzowski] é cerebral, antes de tudo, um escritor, e em seguida um entrevistador. (...) Um é conhecido por todo mundo no Canadá; o outro não é conhecido por quase ninguém nos EUA. Carson e Gzowski, Gzowski e Carson “vive la différence”.

            Ato contínuo, a atenção de Americanidade na Mídia se volta para a produção televisiva no Brasil, tomando como o exemplo Jô Soares como apresentador, comediante e entrevistador, aquele que, segundo a perspectiva de Neves Ramos, seria um híbrido de Carson e Gzowski fortemente americanizado:

“Jô Soares”, talvez nos forneça dicas para identificação de como se processa a nossa “americanidade” na mídia. (...) Modelo pioneiro no Brasil, o “Jô Onze e Meia” (horário de Carson/formato de Gzowski), entrou para a história da televisão brasileira. De segunda a sexta, durante os onze anos em que o programa entrou no ar, Jô Soares (o nome artístico completo aqui indicando tanto o que deveria ser a imagem do “entrevistador” quanto o lado mercadológico), Muniz Sodré explica que a verdadeira migração, quanto ao que acontece na tevê brasileira ultimamente, não é de público, o de classe alta migrando para as tevês a cabo, e sim do grotesco, para praticamente todos os tipos de programação de tevê aberta, inclusive aqueles antes reputados como “de qualidade”. (...) [Portanto,] num programa de entrevistas como o de Jô Soares, tido como de “alto nível”, predomina o riso cruel. (...) Jô Soares [logo] é mais imagem do que símbolo. Imagem de cultura, de bom gosto e do bon vivant que a sua charmosa, e sempre elegante, imagem transparece, imagem de um certo Brasil, de um Brasil. 

Por fim, Neves Ramos conclui sobre quem seria o maior exemplo de americanização no talk-show no Brasil, Silvio Santos:

(...) Acredito, assim, que a imagem que mais falaria da “nossa americanidade” na tevê, seria a de Silvio Santos, que não é um talk show e sim um apresentador de televisão e proprietário de um “império”, no setor da comunicação.(...) a sua imagem seria aquela que melhor incorpora os paradigmas de uma “americanidade brasileira”, na mídia.


4.    Conclusão


A partir da breve análise de Just Like de Movies juntamente com a da Americanidade na Mídia, foi possível discutir aqui os fenômenos da americanidade e da americanização, ambos em plena e mútua interferência; o que possibilitou entender melhor como essas se constroem e se manifestam no imaginário de nações americanas com suas coletividades, sobretudo dos Estados Unidos, do Canadá Quebequense e do Brasil, a partir do devassamento sucinto e direcionado do campo do cinema e da televisão.

5.    Referências


Andrès, Bernard. Que latino-americanidade para o Quebec e o Brasil?

Bahia, Márcio. Estratégias identitárias no continente americano: “americanidad’, “americanité”, “americanidade” e a ausência de “americanity”.

Bernd, Zilá. Identidades compositórias: escrituras híbridas. UFRGS.

_________. Americanização e americanidade. UFRGS/CNPQ.

Cairo, Luiz Roberto. Literatura brasileira, literatura latino-americana? UNESP/CNPQ.

Kosakowski, Michal. Just Like the Movies (escrito, editado e dirigido por).
Oliveira, Lúcia lippi. Iberismo e Americanismo – um livro em questão. Capítulo 11. In: Americanos: representações identidade nacional no Brasil e nos EUA. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

Ramos, Ana Rosa Neves. Americanidade na Mídia.