Muitos dizem que ninguém não é insubstituível, a não ser nossas mães. Discordo em parte. Blanc também é insubstituível! Filho da tão linda e amada Broke Back, ele nasceu e cresceu aqui em casa. Acompanhei seu parto. Foi o último dos quatro filhotes; o único macho entre três fêmeas.
Caolho de nascença, era o mais lerdinho: o que menos mamava, aquele que apanhava de todos, o mais ingênuo. Possuía um temperamento tênue. Era extremamente manso, chegava a ser lerdo mesmo o bichinho em suas cores: amarelo-caramelo e o branco predominante – aí o porquê de seu nome Blanc.
Sem dúvidas, era mais um Pereira da Silva. Todos o amavam, principalmente quando minha mãe, em sua razão torpe, cometeu a loucura de jogar Broke Back fora, no mato mesmo, num local longe e desconhecido, abandonando a coitadinha à própria sorte com um barrigão prestes a vomitar gatinhos. Crueldade, mas uma maldade compreensível. Minha mãe é uma pessoa ignorante. Age muitas vezes por instinto e impulso. Vendo a casa encher de gatos, a primeira coisa que fez foi se desfazer de todos, um por um, a começar por aquela que gerou a todos. Todos os gatos foram jogados fora ou dados, menos Blanc, o único macho.
Reinando sozinho em casa, Blanc era nossa diversão. Com suas travessuras de felino, nos fazia rir. Ficávamos encantados com seus jeitos e trejeitos, além das manhas, caprichos, esquisitices. Muitos mimos. Era adorável.
Logo, veio a fase adulta. Ganhou a rua... Ia atrás das gatas. E a cada saída dele, voltava sujo, ferido, acabado. Deu foi muito trabalho pr’a gente.
Lembro como hoje a primeira vez que Blanc ficou 24h sem dar os bigodes em casa. Todos aqui inquietos: Cadê Doquinha? Doca ainda não apareceu hoje. Onde ele está? – Doca era como os demais daqui de casa chamavam Blanc. Como ninguém sabia pronunciar seu nome em francês, o renomearam carinhosamente de Doca devido ser caolho, lerdinho e muito manso. – Ficávamos todos preocupados, mas, pro nosso alívio, ele retornou logo cedinho no outro dia. E, assim, isso se tornou rotina: todas as noites ele passava fora de casa e, provavelmente quando encontrava alguma gata no cio, só voltava depois de um dia. Nunca ultrapassou essa marca. Era contado. Completava 24h, ele reaparecia faminto e miador.
Um dia tudo mudou... Doca ou Blanc saiu como de costume, e não mais voltou. Procuramos onde pudemos. Nada! Provavelmente, ele foi morto por algum gatocida inconsequnte, envenenado, atropelado, sei lá. O fato é que ele sumiu sem deixar vestígios. Duvido que alguém o sequestrou porque, apesar de ser bem cuidado, ele só andava acabado, cheio de arranhões e algumas feridas devido suas saídas. Creio mesmo que ele já está morto.
Quantas foram as vezes que acordei na esperança de rever meu Blanc na porta de casa! Pensava nele várias vezes, me perguntando o que teria acontecido, onde ele estava e por onde passou pela última vez. O que queria mesmo era reencontrar meu gatinho, pegar, colocar em meu colo, fazer cafuné, mas, a cada dia que se passava, eu já começava a aceitar qualquer resposta; até a de que ele de fato estava morto.
Um dia, acordei assustado e muito triste. Tinha sonhado que eu havia encontrado cadáver de Doca em decomposição no quintal. Dias depois, sonhei outra vez com ele. Sonho bom. Levantava e o via quietinho no canto da cozinha. Alisava meu Branquinho. Acordei com uma saudade imensa de meu filhote...
Uma sensação de vazio me preenchia. E a vontade de obter uma resposta só crescia. Queria ao menos encontrar o seu corpo. Agora sei como é a dor de quem perde um ente querido. Sei por quais sensações deitam aqueles que possuem um desaparecido em sua família.
Indubitavelmente, a dor provocada pela ignorância e dúvidas chega a ser maior do que a dor da perda certa, aquela em que você tem a certeza do que ocorreu, pois você enterrou quem amava, dando o último adeus e prestando as derradeiras homenagens. O Fim finalmente. Contudo, eu (e muitos por aí) não tive esse direito. Cassado foi esse privilégio de mim. A última lágrima foi roubada junto com o taco que se foi de mim, restando apenas uma ferida crônica.
Não sei se é por burrice ou por descuido, só sei da pior forma que acabamos por descobrir o quanto gostamos do ser amado e a importância que ele tem pra nós em nossas vidas justamente no agora em que o perdemos. No agora em que não dá mais pra se arrepender de alguma coisa, voltar atrás, fazer tudo que se queria, e não se fez. Por isso, demonstrar o que sentimos de bom a alguém é mais válido enquanto ele ainda está entre nós, porque depois restam muita impotência e o subjuntivo: e se eu tivesse... Terrível!
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Diógenes Pereira. Salvador, BA 03/11/2010
De fato, agora o campo visual do Blog me parece um complemento onírico do que a tua literatura costuma instigar no nosso inconsciente: susto e inquietação. Brotações de um eu inacabado... (Marcos Coimbra - Mestre em Literatura Comparada e Cinema pela UFRJ).
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