Universidade
Federal da Bahia
Instituto
de Letras
Programa
de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (Mestrado)
Expressões
Contemporâneas da Americanidade
Docente:
Sérgio Cerqueda
Semestre:
2012.1
Americanidade
e Americanização:
Dialogismo entre a Narrativa Fílmica de Just Like the Movies e o Discurso
Acadêmico de Americanidade na Mídia
Por Diógenes Pereira
Salvador, 30 de abril de 2012
1.
Introdução
O presente ensaio se predispõe a discorrer acerca da
ideia de americanidade e da de americanização – sem pretender esgotar
os temas e/ou suscitar todas as nuances possíveis de observação, análise e
crítica desses –; antes, a empresa aqui vislumbrada se foca no devassamento da
narrativa fílmica de Just Like the Movies
(escrito, editado e dirigido por Michal Kosakowski) em diálogo com o
discurso crítico-acadêmico do texto de Ana Rosa Neves Ramos, Americanidade na Mídia.
2.
Americanidade
Mesmo com pesquisadores competentes e diligentes
debruçados sobre a imagem e imagens manifestadas (ou subtendidas, ou fossilizadas,
ou ainda ignoradas, desconhecidas) de americanidade
em sua ampla complexidade, é tarefa árdua pensar, analisar e discutir o seu
conceito e sua definição, assim como sua presença na estrutura social das
nações americanas e no imaginário dos sujeitos que as compõem.
Com vastas extensões des-ocupadas
(genocídio de autóctones) em favor do re-povoamento
forçoso (escravização de negros africanos) e/ou voluntário (europeus e
posteriormente asiáticos), ou da subjugação e da aculturação de povos
aborígenes indígenas, a América é construída e reconstruída como outra rede de
coletividade humana por meio do complexo e intricado processo de mestiçagem,
hibridização e/ou ajuntamento de etnias numa estrutura hierarquicamente rígida,
a qual coloca os descendentes dos brancos (sobretudo dos herdeiros dos líderes
coloniais, como ingleses, por exemplo) no stratus
mais alto da sociedade multicultural ou mestiça. Violência. O que,
inevitavelmente, suscitam a insatisfação, tensão, o mal-estar e o conflito em
meio às relações de forças no interior da disputa pelo poder, localizando e
determinando quem é quem ou quem é o que na sociedade.
Possuindo realidades socioculturais, político-econômicas e
históricas diversas, o continente americano se apresenta como uma América
multifacetada numa divisão tríade: América Anglo-Saxã – EUA e o Canadá Inglês –,
América Latina (do sul) – México, Caribe, América Central e do Sul – e América
Francófona (a latina do norte) – Quebéc. – Divisão que, por sua vez, já se emerge
problemática por juntar elementos dissonantes numa mesma categoria, citando: O
Haiti de base crioula francesa, a Jamaica de base crioula inglesa e o Suriname
de língua neerlandesa no universo da América latina, por exemplo.
Não é gratuito, então, inferir que é, no mínimo, delicada
a identificação, localização e devassamento da americanidade como fenômeno
transnacional para toda a América – isso se a americanidade existe mesmo como
tal; antes, há a possibilidade de americanidades
para uma América heterogênea e plural. A discussão sobre a existência de
americanidades em substituição da americanidade (ou o inverso), contudo, será
posta de lado aqui. É vez de pensar na possibilidade real de uma americanidade multifacetada
(uma americanidade diferenciada, em
nuance) em vista que dados fenomenais históricos a viabilizam, o que há de
comum para todas as nações do continente: o fato de todos terem surgidos como
Estados-nação a partir do processo colonial, da imigração voluntária e/ou forçosa
e do extermínio e/ou subjugação e aculturamento de povos autóctones; mais as
particularidades e singularidades espaço-temporais de cada coletividade das
Américas.
A partir da leitura de Neves Ramos, é possível trazer, no
mínimo, três possíveis perspectivas para a americanidade: a estadunidense, a
quebequense e a brasileira.
A americanidade estadunidense se repousaria na própria
apropriação do ser americano por
parte dos estadunidenses em detrimento das outras coletividades do continente.
Mais: americanidade estadunidense nega o compartilhamento de traços
identitários e de pertença em face do que é
ser americano com outras nações e coletividades do continente americano;
antes, ela seria o olhar para si a partir da crença na ideia da nação superior
justamente pela sua excepcionalidade, sua pujança e poderio. Assim, os EUA,
imersos em sua arrogância, presunção, convencimento e vaidade, se
autoprojetaram como A América, o
sonho de prosperidade e do sucesso calcados no código protestante e na
ideologia marcante da liberdade, liberalismo, livre-iniciativa e
individualismo, ou seja, independentes e superiores!
A americanidade quebequense é marcada pela tensão e pelo
mal-estar constantes entre se sentir abandonado por e, igualmente, presa a uma
França perdida no tempo e, ao mesmo tempo, presente na língua e nos traços
culturais mais marcantes somados à presença e à dominação (ou hoje em dia o
poder de voz política, econômica e ideológica duma maioria) do elemento
anglófono, com o qual compartilha o status
de canadense. Quebec, como a América Latina do Norte, ademais, não teria como
projeto “inventariar as múltiplas maneiras nacionais de estar na América e sim,
aquele de conceber, para alem das diferenças, um pertencimento ‘continental’”
(Neves Ramos).
E a americanidade brasileira, mais que compartilhar com
Quebec a “vontade” de pertencimento ao continente; uma vontade à brasileira, libertina,
egoísta (e até inconsciente?) de pertencimento continental, tecendo laços de
contato e união através do que há de comum entre os latinos da América, o
próprio passado histórico de colonização de matrizes ibéricas, as quais foram
atravessadas pela mestiçagem e pela hibridização e ainda pelo extermínio,
subjugação, aculturamento e marginalização de povos indígenas, se volta para si
mesmo em ampla vaidade e sentimento de distinção (e até superioridades em
relação ao resto da América Latina, o que o aproxima da americanidade
estadunidense), projetando sua americanidade em outra excepcionalidade: o fato
de o Brasil ser um grande em questões econômicas, culturais, políticas,
históricas, geográficas, com língua singular e processos históricos (sobretudo
de emancipação política da metrópole e o caminho percorridos pelas décadas
seguintes de seu poder central – o Império) distintos. Logo, há o desejo
contrário, aquele que pretende não se juntar a uma latinidade americana como
coletividade, pois isso tornaria o grande num pequeno, mais um elemento
constituinte de um todo; pelo contrário, a latinidade e americanidade do Brasil
se manifestariam pelos traços que fizeram e fazem do Brasil o Brasil.
Por fim, a narrativa fílmica de Just Like the Movies dialogaria com a Americanidade na Mídia por trazer a americanidade estadunidense
representada pelas imagens de modernidade, prosperidade e progresso da nação
que se autodenomina americana. Porém, uma “América” ameaçada pelo iminente
ameaça da tragédia e da catástrofe. Agora, o mais curioso do filme é,
justamente, sua predisposição em exibir essa americanidade estadunidense em
confusão com o fenômeno da americanização. Ideia que será mais bem desenvolvida
na próxima seção.
3.
Americanização
Na narrativa fílmica de Just Like de Movies, a colagem das cenas aponta para uma direção: o
que foi fantasiado por Hollywood se tornou realidade. Não é por menos que as
imagens tem destaque, trazendo a narrativa sob sua tutela. Logo, há toda uma metalinguagem (metacrítica,
metafílmica, metanarrativa) nela que suscita a discussão da espetacularização
da catástrofe e, com ela, os fenômenos da americanidade e da americanização (em
entrelace). E isso é permitido a partir da própria composição do filme, o
recorte e a colagem de cenas de outros filmes unidos pela dramatização auditiva
em uma sequência de imagens dinâmicas que fantasiavam a desgraça estadunidense,
prenunciando e remetendo o espectador ao atentado de 11 de setembro.
O dialogismo entre as cenas de distintos filmes
apocalípticos sobre os EUA que compõem o próprio drama narrativo de Just Like the Movies se comunica
diretamente com o que Neves Ramos destaca em seu texto: o processo de
americanização em imbricação com o se
fazer da americanidade diferenciada dos EUA, de Quebec e do Brasil.
Por sua vez, os Estados Unidos da América – uma nação sem
nome, como nos lembra Caetano Veloso – é a potência político-militar e
econômico-cultural da modernidade, que lança seus tentáculos sobre todo o mundo
ocidental, ocidentalizado, semiocidentalizado e aliciado pelo Ocidente. E uma
das formas de os EUA lançarem seu poderio, sua dominação e sua influência é
pela subjugação das culturas alheias às marcas de sua cultura. Eis aí o
fenômeno da americanização.
O não ser americano,
mas, sim, o estar americano
(estadunidense) é o solo no qual se sustenta a americanização, o que Neves Ramos
nos destaca diligentemente:
o certo é que, nesses tempos de globalização,
a cultura norte-americana, presente no mundo do cinema, da música pop, das
televisões a cabo, nos quais acrescento a internet, exerce uma atração cada vez
mais forte entre as pessoas, criando uma similaridade de valores para os jovens
[e também para os não jovens que estão
igualmente inseridos no processo global de produção e consumo] – acréscimo em
itálico meu.
E,
mais adiante, Neves Ramos salienta que “da mesma maneira, na opinião de Proulx, a expressão da ‘americanidade’
mobiliza um sistema de conotação cobrindo um estilo, maneiras de fazer, uma
escolha de ritmos nas produções, etc., que se atribui, certa ou erradamente,
aos Estados Unidos”. Inevitavelmente, há certa interferência da americanização
sobre a americanidade diferenciada (seja ela em soma ou subtração, ou ainda em
rasura), sobretudo do Quebec e do Brasil, alvos da análise de Neves Ramos.
Não
é por menos que a citação de Yvan Lamonde por Neves Ramos é oportuna para a
presente discussão somada a sua inferência, respectivamente:
a americanização do
Québec, conceito de resistência ou de recusa, é esse processo de aculturação
através do qual a cultura estadunidense influencia e domina a cultura, tanto
canadense quanto quebequense – e mundial –, enquanto que a americanidade, que
engloba tanto a América Latina quanto a América saxônica, é um conceito de
abertura e de mouvance, que traduz a sua filiação ao continente
Americano.
[E] essa vontade de fazer
do conceito de americanidade uma busca de similitudes, bem mais do que uma
compreensão dos percursos diferenciados conduz a análise a não distinguir
americanidade e americanização – se é que tal seja possível – e a confundir,
muitas vezes, os dois processos com a modernização.
Neves Ramos nos explica como
se manifesta a americanização, por meio do quê:
qualquer pessoa que
tenha lido um pouco sobre a história da televisão e, antes dela, a história do
cinema, associa americanização à dominação americana particularmente ao cinema.
(...) A americanização é também, simplesmente, a constatação atual de que os
americanos dominam ostensivamente o mercado internacional de audiovisual e que
trata-se (SIC), para eles, de um dos mais importantes setores de exportação (o
segundo, perdendo apenas para o setor da aeronáutica).
Focando na produção artística dos
EUA e de Quebec, Neves Ramos, primeiramente, distingue o fazer televisão comum aos estadunidenses em face do foco da TV
pública, a não comercial, aquela que pretende informar, educar e entreter, a
fim de dar suporte ao seu raciocínio acerca do processo de americanização
enquanto imbricação para com a americanidade:
A reflexão sobre a americanização deve então
levar em consideração o que se faz em nosso(s) país(es). O seu postulado é que
a americanização da televisão deve ser concebida de forma mais genérica que a
simples análise das consequências dos conteúdos das emissões americanas sobre
as culturas nacionais. (...) Quando duas concepções de televisão se opunham:
uma de serviço público (...) e outra comercial. (...) [Portanto,] não nos
esqueçamos que para os americanos fazer televisão significa fazer um negócio
como outro qualquer. [Mais:] a americanização da televisão poderia ser vista,
ainda, como um processo que nega gradualmente, para a televisão, a
possibilidade de ela desempenhar uma função outra do que aquela que lhe dita o
Mercado e as regras comerciais.
Em seguida, a autora de Americanidade na Mídia compara o perfil de dois apresentadores, um
dos EUA e outro do Canadá, Johnny Carson e Peter Gzowski, respectivamente,
apontando suas semelhanças e distinções a fim de contrabalançar as relações de
força entre americanidade e americanização:
e foi exatamente essa “personalidade
cultivada”, que permitiu a ambos [Carson e Gzowski] esse forte relacionamento
de intimidade com a sua audiência. Tal grau de intimidade implica, necessariamente
em responsabilidade porque, para além de celebridades, cada um deles é uma
figura nacional. Eles são vistos pelos outros como “representantes da alma do
seu país”, com uma responsabilidade mais pesada aqui, no Canadá, do que lá, nos
EUA. (...) Um é anti-intelectual, antes de tudo um comediante, e em seguida
entrevistador[Carson]; o outro [Gzowski] é cerebral, antes de tudo, um
escritor, e em seguida um entrevistador. (...) Um é conhecido por todo mundo no
Canadá; o outro não é conhecido por quase ninguém nos EUA. Carson e Gzowski,
Gzowski e Carson “vive la différence”.
Ato contínuo, a atenção de Americanidade na Mídia se volta para a
produção televisiva no Brasil, tomando como o exemplo Jô Soares como
apresentador, comediante e entrevistador, aquele que, segundo a perspectiva de
Neves Ramos, seria um híbrido de Carson e Gzowski fortemente americanizado:
“Jô Soares”, talvez nos forneça dicas para
identificação de como se processa a nossa “americanidade” na mídia. (...) Modelo
pioneiro no Brasil, o “Jô Onze e Meia” (horário de Carson/formato de Gzowski),
entrou para a história da televisão brasileira. De segunda a sexta, durante os onze
anos em que o programa entrou no ar, Jô Soares (o nome artístico completo aqui indicando
tanto o que deveria ser a imagem do “entrevistador” quanto o lado mercadológico),
Muniz Sodré explica que a verdadeira migração, quanto ao que acontece na tevê
brasileira ultimamente, não é de público, o de classe alta migrando para as
tevês a cabo, e sim do grotesco, para praticamente todos os tipos de programação
de tevê aberta, inclusive aqueles antes reputados como “de qualidade”. (...) [Portanto,]
num programa de entrevistas como o de Jô Soares, tido como de “alto nível”, predomina
o riso cruel. (...) Jô Soares [logo] é mais imagem do que símbolo. Imagem de
cultura, de bom gosto e do bon vivant que a sua charmosa, e sempre
elegante, imagem transparece, imagem de um certo Brasil, de um Brasil.
Por fim, Neves Ramos conclui sobre quem seria o maior
exemplo de americanização no talk-show
no Brasil, Silvio Santos:
(...) Acredito, assim, que a imagem que mais
falaria da “nossa americanidade” na tevê, seria a de Silvio Santos, que não é
um talk show e sim um apresentador de televisão e proprietário de um “império”,
no setor da comunicação.(...) a sua imagem seria aquela que melhor incorpora os
paradigmas de uma “americanidade brasileira”, na mídia.
4.
Conclusão
A partir da breve análise de Just Like de Movies juntamente com a da Americanidade na Mídia, foi possível discutir aqui os fenômenos da
americanidade e da americanização, ambos em plena e mútua interferência; o que
possibilitou entender melhor como essas se constroem e se manifestam no
imaginário de nações americanas com suas coletividades, sobretudo dos Estados
Unidos, do Canadá Quebequense e do Brasil, a partir do devassamento sucinto e
direcionado do campo do cinema e da televisão.
5.
Referências
Andrès, Bernard. Que latino-americanidade para o Quebec e o
Brasil?
Bahia, Márcio. Estratégias identitárias no continente
americano: “americanidad’, “americanité”, “americanidade” e a ausência de
“americanity”.
Bernd, Zilá. Identidades compositórias: escrituras
híbridas. UFRGS.
_________. Americanização e americanidade.
UFRGS/CNPQ.
Cairo, Luiz Roberto. Literatura brasileira, literatura
latino-americana? UNESP/CNPQ.
Kosakowski, Michal. Just Like the Movies (escrito, editado
e dirigido por).
Oliveira, Lúcia
lippi. Iberismo e Americanismo – um livro
em questão. Capítulo 11. In: Americanos: representações identidade nacional
no Brasil e nos EUA. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
Ramos, Ana Rosa Neves. Americanidade na Mídia.
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