segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O que é emerso pelo fluxo de consciência n’A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector? [texto acadêmico]


Universidade Federal da Bahia
Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura
Representação Literária / Prof.ª Dr.ª Lígia Telles






Diógenes Pereira da Silva



O que é emerso pelo fluxo de consciência n’A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector? 




Salvador, 
Outubro de 2012




O que é emerso pelo fluxo de consciência n’A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector?

            Ao longo deste ensaio, tenho como empreendimento a análise da narrativa romanesca A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector, me atentando ao fluxo de consciência nela presente, o qual exibe um eu confessional e (pós)moderno. Para tal, lanço mão do diálogo com o texto A Meia Marrom de Erich Auerbach – mas sem me aprofundar no segundo, pois o foco do presente texto é, justamente, o romance de Lispector.
            A Paixão segundo G.H. tem como narrador-personagem uma mulher, cujo nome é as iniciais G.H. Essa “dona” de posição sociocultural abastada relata, em primeira pessoa, a experiência vivenciada por si quando tem o impulso de adentrar e querer limpar o quarto de empregada de seu apartamento. Já no interior do aposento, se choca e se frustra com o que encontra: limpeza, vazio, brancura e luz. Esperava totalmente o inverso. Percorrendo o espaço, se depara com os riscos de uma mulher, um homem e um cão nus, feitos a carvão, gravados na parede pela sua ex-empregada, Janair. Mais adiante, no guarda-roubas, encontra uma velha barata, a qual esmaga (sem matar de imediato) na porta do móvel. E é a partir daí que, movida por “um misto de medo e ódio (...) [e] sob o fascínio da barata que a repugna e atrai” (NUNES, 1995, p. 58), G.H. expõe o horror e o gozo de um encontro no qual a êxtase fomenta toda a pulsão da narrativa, “absorvendo G.H. na continuidade alucinatória de uma vida envolvente, em que se vê sendo vista, esvaziando de sua vida pessoal” (idem).
            “Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi” (LISPECTOR, 1998, p. 11), assim se inicia o romance já dando pistas do que vem adiante em toda a narrativa: o desejo de comunicar e se comunicar, a necessidade de externar e compartilhar sua experiência de tormentos de toda uma viva a partir de um fato banal do cotidiano do narrador-personagem, G.H. E isso se dá por meio do fluxo de consciência, que é constante em toda obra.
            De acordo com Alfredo Coelho de Carvalho (1981), o fluxo de consciência é a apresentação do que ocorre na consciência do personagem; consciência essa que se manifesta num contínuo fluxo sem fragmentos nem ajuntes. N’A Paixão segundo G.H., esse fenômeno é desencadeado pelo encontro de G.H. com a barata e o ato de esmagamento do animal. Em diálogo, outro romance (pós)moderno, “To The Lighthouse” de Virginia Woolf, analisado por Erich Auerbach no ensaio A Meia Marrom, também exibe a narrativa sob forte orientação do fluxo de consciência, que é desatado a partir do “ato de medir o comprimento da meia” (AUERBACH, 1976, p. 477), que a personagem senhora Ramsay dará de presente ao filho do faroleiro.
            De início, uma das primeiras características da narrativa de A Paixão segundo G.H. a ser observada como produto resultante do fluxo de consciência é um esvaziamento do eu, promovido por sentimentos contraditórios de dúvida e certeza, medo e coragem, atração e repulsa, ódio e prazer, desorganização e reconstrução, desilusão e encantamento, deslocamento e assentamento e des-cobertas: “todo momento de achar é um perder-se a se próprio” (p. 16), “não sou uma pessoa inteira” (p. 18), “a verdade nunca me fez sentido” (p. 19), “perdi o medo do feio” (p. 20), “criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade” (p. 21), “o que os outros recebem de mim reflete-se então de volta para mim, e forma a atmosfera do que se chama: ‘eu’” (ps. 27-28), “eu me dedicava a cada detalhe do não” (p. 32); o que, segundo Nunes (1995), é a exibição de uma sabedoria paradoxal, que, por meio da perda, há o ganho num inteligente jogo dialético, filosófico e ontológico de negação de si mesma por G.H., mas que a eleva a sua realidade própria e verdadeira.
            O eu de A Paixão segundo G.H. tem a necessidade visceral de transbordar, falar de si e, ao falar de si, conta do outro, das coisas, do mundo, do ser não sendo e do não ser sendo em ato confessional. Isso abala as estruturas de verdade, traz o avesso à tona, busca o conhecer e o re-conhecer por via dos questionamentos, das afirmações complexas, confusas e contraditórias, das ilusões, das alusões, das alegorias e das metáforas. Discute, sem cerimônia num estado doce-acre e envolvente, a própria existência do ser (pós)moderno:
(...) mas impedir o quê?
(...) O mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico. Tudo em mim fora reivindicado pelo começo dos tempos e pelo meu próprio começo. Eu passara a um primeiro plano primário, estava no silêncio dos ventos e na era de estanho e cobre – na era primeira da vida.
Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos. (p. 69)

O que se comunica com a análise de Auerbach (1976) acerca das digressões de senhora Ramsay de Virginia Woolf em “To The Lighthouse”:
Trata-se, preponderantemente, de movimentos internos, isto é, de movimentos que se realizam na consciência das personagens; e não somente de personagens que participam do processo externo [o contato e esmago da barata ou o comprimento da meia, nos respectivos romances], mas também de não-participantes [sic], e até de personagens que, no momento, nem estão presentes: people, Mr. Bankes [e do interlocutor que G.H. cria e acredita dar as mãos]. (p. 477)

O contraditório nojo e fascínio que G.H. tem sobre a barata, quando, por exemplo, descrever esse inseto com tamanha verossimilhança, curiosidade, presteza e proximidade – como se fosse seu par ou a “outra” barata sobre a distância de quem vê sendo vista, que mais que observa; participa em experimento de ser estando –, denuncia uma característica recorrente às personagens de Clarice Lispector: são menos agentes que pacientes da experiência exterior em face da qual não há controle, permanecendo a forte paixão pela existência, se deixando envolver (NUNES, 1995):
Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grilos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real. (p. 55)

            Nunes (1995) destaca que outra característica importante das personagens Lispectorianas é a “violência represada dos sentimentos primários e destrutivos – cólera, ira, raiva, ódio – que subitamente explodem” (p. 102); fenômeno percebido claramente, por exemplo, ao longo do “capítulo” VI. Nessa parte da narrativa, G.H. deixa vazar, como vaza a matéria branca da barata, seus desejos e impulsos mais íntimos e intensos entre, durante e após o momento da vontade e da realização de matar a barata:
Sem nenhum pudor, comovida com minha entrega ao que é o mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que era eu (...). Essa mulher calma que eu sempre fora, ela enlouqueceu de prazer? Com os olhos ainda fechados eu tremia de júbilo. Ter matado – era maior que eu, era da altura daquele quarto indelimitado [sic]. (p. 53-54)

            O encontro com o inseto é o ponto de fratura do sistema no qual G.H. está emersa, indicando o experimento da personagem em (auto)conhecimento. Isso suscita sua introspectividade com força, desenhando sua realidade interior e profunda (NUNES, 1995). Com isso, há, sim, um momento de descoberta de si pelo outro; existe uma libertação; ocorre um gozo em face de uma vida repleta de “inércia”.
            Mais adiante no “capítulo” VII, a fluxo de consciência promove a digressão, que causa a ilusão, o devaneio: “abria-se em mim, com lentidão de portas de pedras, abria-se em mim a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada” (p. 58). E esse “silêncio” é justamente a resposta, a coisa pulsante em seu vazio que preenche a G.H. desumanizada, a mulher transpassada em (auto)transgressão pela agressividade da vida em vivendo. É outra experiência, é o se expandir metaforizado pela estada num deserto: “e na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama” (p.60). E, como num deserto amplo e vazio, há espaço, há a possibilidade de ocorrências. Surge, então, a insegurança e o medo inevitáveis aliados à vontade de prosseguir nessa empreitada de expulsar a matéria branca da barata que está em si também. Para tal, forja o interlocutor com quem compartilha a experiência vivida: “segura minha mão porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua” (p. 60). A vida em devir, insatisfeita, contraditória, metamórfica, em constante processo de trocas e rearranjos.
            Como todo texto é formado por um mosaico de textos (COMPAGNON, 1999), é inevitável o diálogo entre A Paixão segundo G.H. e “To The Lighthouse”. Muito que se diz sobre o segundo, por parte de Auerbach, é válido para o primeiro, portanto. Auerbach nos fala que o narrador (como aquele que lança voz sobre fatos objetivos) é suprimido quase que totalmente, pois tudo que está sendo dito na narrativa surge como reflexo na consciência dos personagens (1976). Assim como a senhora Ramsay transmite o que pensa e o que sente em relação aos objetos com os quais se confronta (o comprimento da meia, a conversa dos criados, o toque do telefone), similaridade ocorre com G.H. A personagem do romance de Lispector, quando se apropria da existência da barata e se confundindo com ela, demonstra, igualmente, o que pensa e sente: “eu, corpo neutro de barata, eu como uma vida que finalmente escapa pois enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz branca no reboco da parede” (p. 65). Ainda nesse trecho, ocorre a diluição das fronteiras em favor do continuum da existência (e, com ela, todas as peripécias e idiossincrasias de cada parte do “mosaico”: o quarto, o desenho na parede, a barata, a matéria fofa e branca que sai da barata, a G.H. desumanizada – num apanhado mais amplo sobre a obra).
            No “capítulo” IX, a questão existencial é outra vez posta em destaque. Numa trama dialética repleta de conexões e alegorias, o narrador-personagem, primeiramente já ciente de sua transformação a partir do contato e do ato no quarto da empregada, questiona em que pessoa se transformou: “e agora o que sou?” E a resposta vem em afirmação que conduz à negação: “sou: o que vi. Não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com os seus planetas e baratas” (p. 67). Será mesmo? Creio que G.H. aí tenta se defender inutilmente das possibilidades da existência (mais: da coexistência), mas ela é presa de seu próprio algoz: sua paixão. A paixão de se esvaziar da matéria branca de barata que a implode somada à necessidade da troca e da renovação com e pelo outro.
G.H. teme e anseia porque tudo está mudando, nada é fixo, nunca o foi, é o ciclo da existência forjando a realidade numa farsa criativa, e repetitivamente inteligente, e sedutora, e perigosa. Surpresas! Ela, outra vez, é tomada pela contradição do medo e do fascínio. Vacila em parar, mas segue porque a paixão de des-cobrir e comunicar, de des-vendar e se comunicar é maior que todos os riscos:
A vida se vingava de mim, e a vingança consistia apenas em voltar, nada mais. Todo caso de loucura é que alguma coisa voltou. Os processos, eles não são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta. Às vezes a vida volta. Se em mim tudo se quebrava à passagem da força, não é porque a função desta era a de quebrar: ela só precisava enfim passar pois já se tornara caudalosa demais para poder se conter ou contornar – ao passar ela cobria tudo. E depois, como após um dilúvio, sobrenadavam um armário, uma pessoa, uma janela solta, três maletas. (p. 70)

E o risco é real. Está aqui: no espaço-tempo confuso e pululante de G.H.: “e isso tudo me parecia o inferno, essa destruição de camadas e camadas arqueológicas humanas” (p.70), como num processo de erosão do solo, que, lentamente, remove estratos do solo e os leva, os depositando em outro lugar, formando outro solo do ponto de retirada ao ponto de descarga.
            Outra vez, o fluxo de consciência ganha fôlego na menção subliminar que há na estrutura da barata. Ela é formada por cascas, assim como o sujeito é constituído de máscaras e a sociedade é organizada por meio de convenções e costumes hipócritas em sua conveniência teatral, além da sobreposição da história que nos converte ora naquilo que cremos ser dos humanos (com nossa genialidade, sensibilidade e beleza), ora naquilo que pensamos estar nos limites das bestas (com nossa belicosidade, intolerância e maldades): “o resto, o que não se via, podia ser enorme, e dividia-se por milhares de cascas, atrás de coisas e armários. (...) Atrás da superfície de cascas – aquelas jóias [sic] embaçadas andando de rojo?” (p.70)
            Em “To The Lighthouse”, Auerbach nos revela que é uma tendência nos textos de Woolf se ater a acontecimentos pequenos, de pouca significância, de suposta escolha gratuita, como: a medição da meia, uma fração da conversa com a empregada, um telefonema. Similarmente, isso ocorre na narrativa de A Paixão segundo G.H. quando G.H se atém a barata, as formas do corpo da barata, a matéria branca que sai dela, o quarto com seu vazio inquietante. O apego a esses fatos diminutos é inversamente o propulsor da grandeza do texto. É a partir deles que o fluxo de consciência é permitido, sustentado e fomentado, o qual, por sua vez, traz toda riqueza dialética em diálogo com outros textos, experiências, suscitando a riqueza e beleza da introspectividade vivamente contraditória e inquietante da personagem.
            Nunes diz que “mesmo o pequeno, insignificante ou vil, oculta um enorme poder de existir” (1969, p. 122). Logo, não vejo n’A Paixão segundo G.H. a escolha ao acaso que Auerbach percebe no texto de Woolf. Muito pelo contrário! Na narrativa lispectoriana, os animais (a barata) e as coisas pequenas ou aparentemente sem importância (como o quarto vazio de empregada) têm uma significância muito profunda para a própria poética do romance, pois são o elo simbólico de toda magia, e enigma, e tensão do ser e da existência em interconexão com o humano em sua manifestação, em nuances, enquanto humano e não humano.
            “Vista de perto, a barata é um objeto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias [sic]. É toda rara, parece um único exemplar” (p. 71). No fragmento, a marca de pejorativo geralmente atribuída a insetos como a barata, que vive de lixo, restos e nos esgotos (entre outros tantos espaços possíveis para esse ente da natureza versátil, forte e adaptável), é apagado, alçando o imundo animal ao patamar glorioso de uma mulher em sua máxima plenitude: o estar noiva, ornada de joias. Ela, a barata de G.H., não é qualquer barata, pois; é especial, é singular e plural; é aquela que a fascina, apesar do nojo, da repulsa e do medo que ela provoca em G.H. É a “joia” que faz de G.H. uma mulher que transcende o humano, que se explode em sua implosão interna, desabafando, conhecendo a si em desabamento por meio do externo, a espera de um “marido”, como toda noiva – e, como noiva num casamento, orgulhosa, vaidosa e transbordante de si, celebrando a vida em gozos.
            “Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos (...). E por que o imundo era proibido? Eu fizera o ato proibido de tocar no imundo” (p. 71). Como é de se esperar, logo em seguida, G.H., contraditoriamente, volve ao seu posto de humano, superior à barata. A barata era imunda, e, como G.H. adentra no universo baratídico, também se torna impura, um inseto. Contudo, a experiência não trouxe proveitos? Sim, eis aí o porquê do questionamento das verdades estabelecidas quando ela questiona a razão de o impuro ser negado e rechaçado – a Bíblia aí entra como representação máxima desse mundo governado por leis castradoras e moralizantes, que orienta, conduz e condena e pune o infrator (G.H.).
            Voltando a atenção para o quarto de empregada, ele é o que Nunes chama de “verdadeira ampliação onírica do mundo” (1969, p. 115). Isso porque o quarto nada mais é que uma parte de um todo. Ele está inserido num espaço maior, o apartamento, que, por sua vez, está no condomínio, que faz parte da cidade, a qual está no Estado, o qual integra a União, localizada na América, pedaço do mundo, “satélite” do Sol, diminuto rincão da Via Láctea, fração do Universo. Em outras palavras, tudo está interligado, conectado, unido num único corpo; tudo é uma coisa só que se apresenta em particularidades de pedacinhos: G.H., a barata, o quarto.
É a partir dos pedacinhos que formam o todo que a paixão de G.H. escorre pela narrativa em direção à realidade e ao leitor, com o qual “dá as mãos”. E que paixão é essa que domina G.H.? É a paixão de ser; (e sendo) é transgredir, é questionar, é comunicar e se comunicar, é interagir, é chocar e se chocar, é trocar, é conhecer e se conhecer, é gozar:

Abri a boca espantada: era para pedir socorro. Por quê? Por que não queria eu me tronar imunda quanto a barata? Que ideal me prendia ao sentimento de uma idéia [sic]? Por que não me tornaria eu imunda, exatamente como eu toda me descobria? O que temia eu? Ficar imunda de quê? Ficar imunda de alegria. (p. 73)

O que também revela o caráter dramático (e, sobretudo, trágico) do romance (NUNES, 1969).
            A analisar o tempo de “To The Lighthouse”, Auerbach acredita que há uma clara e íntima relação entre a operação do tempo e a “representação da consciência pluripessoal” (1976, p. 487) uma vez que o processo de representar da consciência não se limita à experiência exterior aos domínios da mente. Ele conclui que a experiência exterior é apenas um suporte para o que de fato tem importância na narrativa; aquilo que é desenvolvido como reflexo dos fenômenos mentais em face do objeto real exterior.  Por isso, o tempo é outro tempo. É um tempo que não “corre” verossimilmente. Ele é o desdobrar de pequenos instantes (como o medir a meia) em longos momentos nos quais o fluxo de consciência ganha “corpo” e “voz”. Paralelamente, o mesmo se dá no texto de Lispector.
            “A barata me tocava toda com seu olhar negro, facetado, brilhante e neutro. E agora eu começava a deixá-la me tocar. Na verdade, eu havia lutado a vida toda contra o profundo desejo de me deixar ser tocada” (p. 88). Apesar de os verbos estarem em pretérito, o momento é narrado de tal forma que se confunde com o presente da leitura – note a presença do advérbio de tempo agora. – O que importa aí, portanto, não é o quando nem o quanto durou a experiência, mas, sim, a experiência em si e o que ela representa. G.H. cede à sua paixão. Num momento atemporal, repousado em outra realidade, a sua, e ela se permite à Permissibilidade. Suas fronteiras são evacuadas de (quase?) toda e qualquer proteção e o outro entra em si, fazendo de sua existência uma ponte entre a parte e o todo, e nisso há prazer, pois é corromper e transgredir com toda a forma ditadora e duradoura de ser em limitação. É outro momento; é libertação.
            Liberdade lembra o amor vivido, impedido ou aspirado. O amor está na paixão de G.H. Ela mais que o deseja; ela o sente em lembrança ou esperança. E, no sentir, exprime toda a tensão que é compartilhar o sentimento de amar junto com o outro, que forma o seu par: “(...) devagar beijara, e quando chegara o momento de beijar teus olhos – lembrei-me de que então eu havia sentido o sal na minha boca, e que o sal de lágrimas nos teus olhos era o meu amor por ti” (p. 89). E é na alegoria do “sal” da lágrima que está o sabor da experiência. Logo, É um amor dramático, talvez trágico, mas é uma forma de amar, sim, à maneira de G.H – e, como G.H. é um nome que remete a W possibilidades de vários nomes, também é a forma de amar de tantas(os) outras(os).
            Como aponta Nunes (1969), o estar em náusea é desempenhado ao extremo em A Paixão segundo G.H. juntamente com outros estares: medo, ódio, fascínio, repulsa, frustração, curiosidade, dúvida, gozo, alegria, amor. É a náusea, sobretudo, que escava o humano de G.H., a desumanizando, aflorando seu nu igualmente mais nu que o próprio nu, como o nu que há nas figuras riscadas a carvão no quarto de empregada. Inevitavelmente, a náusea levada ao limite faz aflorar todos os outros sentimentos que até então estavam trancados em seu mundo interior, e a paixão (de acordo com a G.H.) é permitida.
            No “capítulo” XIV: o medo é detalhado, exibindo a fragilidade do ser em face da grandiosidade da existência, mas em contraste com a grandeza da paixão que move G.H.; e o feminino e o masculino são marcados num certo embate, mas um se entrelaça no outro, são complementares. Ademais, são nos “capítulos” XV e XVI que um aspecto importante da narrativa é apresentado: o neutro. De que se trata esse neutro? É o “elemento vital que liga as coisas. Oh, não receio que compreendas, mas que eu me compreenda mal” (p.100). E o neutro está muito próximo do nada e do tudo; é o entre-lugar que dá forças à narrativa justamente porque é o motivo para que surjam as dúvidas e as perguntas, assim como cheguem a vontade pela transgressão e o desejo pela troca.
            O neutro é também a forma pela qual G.H. tenta explicar sua visão de realidade, aquela em que o nada e o ser se identificam, se confundem e se fundem (NUNES, 1969): “o neutro é inexplicável e vivo, procura me entender: assim como o protoplasma e o sêmen e a proteína são de um neutro vivo. E eu estava toda nova, como uma recém-iniciada” (LISPECTOR, 1998, p.102). Dessa forma, Clarice Lispector nega a linguagem numa fração de silêncio, que culmina na transcendência e repousa na revelação do ser (NUNES, 1969).
            Ademais, de acordo com Compagnon (1999), a mimèsis não é o simulacro de Platão, a mera cópia ou réplica; antes, é como é designado o conhecimento próprio ao ser humano e seu ethos e sua idiossincrasia. Ato contínuo, se valendo da mimèsis da experiência, G.H. explora seu interior labiríntico com o auxílio do outro (a barata, por exemplo, com sua matéria branca). Nesse jogo, se forma o ciclo e o eu é o mesmo, como num “armadilha” de espelhos no qual os objetos refletidos formar várias imagens numa só imagem.
            Por fim, o curioso é como a literatura, mesmo sendo autorreferencial – pois a literatura fala da literatura (COMPGNON, 1999) –, diz muito sobre o mundo (e tudo que está nele e além dele: a própria existência, que contém tudo). Assim, não é gratuito, portanto, que em A Paixão segundo G.H. a frase final de um “capítulo” seja exatamente o início de outro. Isso não seria apenas uma ferramenta para unir o discurso textual, tecendo uma ligação íntima e linguística entre as partes que formam o texto como um todo; além, é a comprovação de que a paixão de G.H. possui a lógica da unidade, ou seja, não há como transgredir sem agressão – o invadir, o adentrar, o devassar –, não há como chegar a si sem ir ao outro. Tudo está conectado, formando o neutro, o nada, a realidade, a Ocorrência, a Existência, a Paixão e A Paixão segundo G.H.

Referências:   

ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.

AUERBACH, Erich. A Meia Marrom. In: MIMESIS: a representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. rev. Sao Paulo: Perspectiva, 1976.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo & fluxo da consciência: questões de teoria literaria. São Paulo, SP: Pioneira, 1981.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da Teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo: (ou a polêmica em torno da ilusão). 10. ed São Paulo: Ática, 2001.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H: romance. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1998.

NUNES, Benedito. O dorso do tigre: ensaios. São Paulo, SP: Perspectiva, 1969.

_______________. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo, SP: Ática, 1995. 

PLATAO. A República. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1997.





Nenhum comentário:

Postar um comentário