quarta-feira, 21 de julho de 2010

NA BASE DO SUSTO [CRÔNICA]

Como de costume, cheguei cedo na escola, saudei a todos, peguei o jornal do dia, me sentei no sofá, cruzei as pernas e mergulhei no discurso informativo. Compenetrado, lia detidamente página por página do diário, selecionando aquilo que reclamava minha atenção imediata. Estava quase que indiferente ao mundo circunvizinho. Quase!

Entre gritos e muitas outras algazarras de alunos passantes pelo corredor, um menino de seus 12 anos entrou na sala dos professores escoltado pelo vice-diretor esbaforido, extremamente exaltado. Falava alto, repetidas vezes, sem cessar entre soluços e lágrimas: Eu vô pegá eles! Vô mandá os cara lá matá eles tudo. Eles vai vê. Vô mandá matá. Vô, sim! Na base do susto, mediante aquela cena no mínimo incômoda, fui atirado involuntariamente no problema. Comecei a assistir tudo atentamente. Grudei os’ói e os’ovido no garoto.

Curioso, logo quis saber o que havia ocorrido. Sem perder um detalhe, escutava o resumo dos fatos. O menino foi vítima de violência física (bullying) de colegas mais velhos que ele, os quais queriam tomar seu boné. Inconformado, ele só deseja vingança. Vingança através de morte! E quanto mais os educadores tentavam acalmá-lo de forma repressivamente inadequada, mostrando-lhe que aquela forma de pensar dele era inaceitável, mais ele repetia a única coisa que acreditava cega e inconsequentemente ser justiça: mandar matar o quanto antes.

Podia mais que enxergar o ódio no garoto, eu sentia sua ira esbarrar e ameaçar a paz – se é que ela já existiu, existe ou poderá existir! – Seu semblante denunciava a falta de consciência e respeito pela vida. Ao passo que minha face vomitava desaprovação, choque, torpor, horror, agonia, indigestão. Me perguntava indignado e perplexo como um jovem poderia estar tão contaminado pelo ódio e violência. O que seria dele? No que ele estava se transformando? O que seria de nós? Como toleramos esse atentado contra um ser que ainda está provando de suas primeiras experiências e moldando sua base? Irrefutavelmente, era levado pelas circunstâncias a prever mais um cruel marginal em formação diante de mim! O fracasso da humanidade estava em minha frente. Tive medo. A vontade era abandonar tudo, fugir, me refugiar. Aonde ir? Não sabia. Para onde se vá, haverá outro como esse rapazinho e piores. Seria a condenação? Não. Esperança é que nem viado guloso, vai longe por um bofe!

É certo: à mediada que ingeria aquilo, mais assustado eu ficava! Mesmo assim, não desgrudava a atenção no garoto. Ele percebia que eu o perseguia. Contudo, não havia intimidação nele; apenas arrogância, soberba, destemor, incredulidade e a certeza de impunidade. Afinal, menor pode tudo no Brasil, e quem morre que prede a vida infelizmente. Também não deixei que percebesse minha fraqueza. Não podia nem queria me entregar. Sabia que eu poderia fazer algo. Resolvi construir a diferença. Afastei a arrogância, o orgulho e a indiferença e enfrentei o mostro que todos nós (de muitas formas, seja por omissão ou ação) criamos nos outros e em nós mesmos. Busquei forças nos desejos e sonhos, apelei pro amor e enfrentei o problemão.

Perguntei o nome do garoto. Chamei-o serenamente para perto de mim. Disse quem eu era brevemente. Em seguida, quis saber sinceramente do que ele gostava, com quê ele se divertia, quais as coisas que desejava e sonhava. Precisava encontrar uma forma de lograr a atenção e aprovação dele. O menino precisava ver em mim um amigo, e, não, mais um que queria reprimi-lo. Ele tinha que ficar à vontade. O caminho que escolhi para isso foi conhecer e entender o mundo dele.

Assim que obtive as informações necessárias, comecei a trabalhar o imaginário de desejos do garoto. Ele havia me dito que queria ser um grande capoeirista. Em resposta, disse a ele que capoeiristas bons podem ir morar fora do país, ganhar muito dinheiro, ser conhecido e reconhecido, fazer sucesso com mulheres, conhecer o mundo, ter e provar de muita coisa. O menino esboçou sorrisos e risos em face de um mundo de oportunidades que brotava diante de si.

(Peço desculpa pela minha cretinice. Sou um dos primeiros a levantar voz contra a idealização de um mundo maravilhoso fora de nossa realidade brasileira, ao acúmulo de capital exagerado, sucesso e prestígio exacerbados, machismo e fome incessante pelo novo e diferente. Entretanto, fui demasiado frágil e me deixei levar pelo caminho mais fácil. De forma sutil e também diferente, acabei contribuindo para o fomento de algumas coisas que tento negar. Acho que o medo, a situação de emergência, que exigia atitudes rápidas, e a passagem da prática para experiência – em minha inexperiência –, relaxaram minha crítica, argúcia, inteligência, sensibilidade, me conduzindo ao erro. Certo que um erro que estava tentando corrigir outro – óia a ironia!)

Aproveitei a animação do garoto e sua confiança em mim pra lhe dizer, de outra forma (uma menos agressiva) que a maneira como ele estava encarando a infração de seus colegas era inaceitável, sim. Inconcebível não apenas porque era a potencialização da bestialidade em face do outro, mas igualmente um atentado à sua própria vida! Ato contínuo, quis saber se ele gostaria de perder alguma pessoa que ama, como sua mãe, seu pai e sua irmã, se tornando órfão e indo morar com estranhos num lar que não é Lar: o orfanato. Resposta: não. Continuei. Abri os olhos dele para outra possível consequência da besteira que ele queria fazer. Assim como ele tem pessoas que se importam com ele e podem fazer o trabalho pútrido para ele, os garotos que desejava ver morto também teriam. Inevitavelmente, ele seria um dos responsáveis por um terrível conflito na Valéria, uma chacina, que demoraria a cessar. Você quer ser o ser da guerra, do sangue derramado e da morte? Não. Lhe perguntei secamente se ele era marginal-vagabundo-delinquente. Resposta: não. Você deseja conviver entre forasdalei, passar anos de sua vida num presídio insalubre e massacrante? Ele não titubeou. Disse, com cabeça baixa e voz tímida, que não. Então aproveitei a chance e dei o último golpe; não o de misericórdia, mas o de fraternidade.

Se você quiser ser um grande capoeirista e usufruir de muitas coisas boas do mundo, sendo uma pessoa de bem, precisa tirar essas coisas da cabeça, se dedicar aos estudos e batalhar muito por aquilo que tanto quer. Você é jovem, bonito, saudável. Existem muitas pessoas que se importam com você, que querem ver seu sucesso. Eu sou uma delas! Não decepcione eles, nem eu, nem a si mesmo. São as coisas que você faz hoje que conduzirão você a apenas um caminho: ou o da glória e do sucesso daqueles que ousam amar incondicionalmente, ou o da marginalização, criminalidade, ódio e instabilidade dos que agarram a violência. A escolha também é sua. Agora que está calmo, pense mais um pouquinho. Acredito em você. Sei que vai fazer a coisa certa.

Apertei a mão do garoto olhando bem nos dele, o saudei e fui embora pensando por mais algumas horas naquilo tudo. Acho que fiz minha parte; pelo menos um pouquinho. Certo alívio. Afinal, meu dia apenas estava começando... E que começo, heim?

Dió. Salvador-ba, 21 de julho de 2010.

Um comentário:

  1. Rapaz, mas o visual do Blog tá massa, hein! Tá de parabéns, como sempre, porque os textos vêem sendo ótimos já de longa data... (Marcos Coimbra - Mestre em Literatura Comparada e Cinema pela UFRJ).

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