domingo, 6 de março de 2016

De D a I em E [POEMA]

O chão parece ressequido, as árvores podem estar secas e chuva talvez não venha
Prenúncios de desgraça? Possivelmente apenas possibilidades...
Há muitas versões possíveis, as perspectivas são a verdade
E o aprendizado é como o último suspiro de um moribundo,
Jamais está conformado com o adeus.
Me arrisco por esses becos do produzir a si conhecimento
E percebo que nem fundo tenho, imagine o tacho!
A partir do outro que já sou eu a cada doação sua
Chego a quem o insólito toma a forma nua
O catar de coisas simples forjadas em criatividade e competência
A quem o poder de tornar o hodierno um banquete
Que veio por mérito do passo acertado
Como a rocha que não anseia se verter diamante, faz de seu caminho o feixe em delta
Regando para além de fronteiras que já não são mais nações,
É a selva belicamente ornada por aquilo que tanto se caça: amor!
E, amando, faz do fardo do dia, o prêmio desejado e reclamado
E, com sua posse, se realiza no agora entre as ilusões da poeira levantada
Das fileiras de palavras de onde as vozes que não se calam
A elevam à condição de especiaria: cara, rara e essencial ao sabor
O gosto de ser o que um estúpido errante, no desmanchar de sua soberbice e ignorância,
Alcança em pontaria feliz: outra flor, que não é a do Lácio,
Muito menos inculta e bela; sim, a flor do outro lado do oceano
Aquela, que bonita e sábia, exala de si a simpatia do sorriso de um eterno aprendiz!
E com o D a denuncio e com o I em E tentei, em fracasso, deixá-la em discrição.
Não posso, mesmo que quisesse, esconder o que você se tornou e se faz:
Os caminhos que se vão e que deitam na paixão de fazer vida pululante existência
De um Deus profano que surge do falsear do seu espelho.



Dedicado a quem ainda não encontrei par,
Denise, singela e maravilhosa, Denise


Dió. Ssa-Ba, 22/12/2014, às 0:48.
Confusão que não escolhi [POEMA]


Os olhos só podem falhar nestes momentos...

Eles, mesmo tentando, não conseguem

chegar nem sequer ao ar!

Antes, esbarram em visões confusas de vidas engolidas,

outras bebidas ou tantas apenas em emoções projetadas;

e o que vai em busca é a voz,

não a minha, aquela que vem de todas as direções:

uma melodia que escapa do corpo conhecido

através de pedaços de carnes sobre pratos...

restos dum jantar não compartilhado.

De volta, cai em cantos repletos de necessidades 

que não dão explicações.

(E, mesmo onde não existe espelho,

assisto a lágrimas rasgarem os caminhos ocultos do sangue.)

Retornando ao lugar que nunca foi minha partida,

sou esse que é feito condenado eterno:

aquele que possui, e deseja não ter

ou não tem, e quer muito possuir.

O que me resta nessa confusão que não escolhi para mim,

mas sou eu em intimidade constrangedora?

Tentar me jogar de uma janela

que está rente ao chão,

acreditando encontrar pontinhos de liberdades transitórias 

ou a oportunidade finita de descansar 

o peito junto a o calor

que não venha de mim.




Dió, ssa-ba, às 00:37 de 06-fev-2016

Dica: releia após e durante ouvir HALO  de Beyoncé interpretada por uma jovem africana [negra].

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Entre os espaços [poema]

entre os espaços do teclado,

ouço conversas mudas de palavras arriscadas

e, nos riscos de suas letras, 

o ditongo cede lugar ao hiato

enquanto o branco da tela parte pros’olhos

borrando toda ilusão do depois

ofuscado, não consigo ver nada mais que o tempo

e ele, no espaço dilatado do quarto que não dorme,

resgata algumas lágrimas 

que se recusam despencar para o esquecimento

e coração está em asfalto sob longa noite

como se amanhã não fosse tão certo 

quanto o fim de torta deliciosa

o que esperar dos lábios?

resignação subversiva é a sua língua

que não retorna a memórias,

e vai, sim, a sonhos ainda não encenados   


- Dió, 10/02/2016





segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Dito (poema)


vozes dizem: escrever é se esvaziar
pode até ser
sei que, me esgotando,
chego ao aparente fundo do poço
lago que nunca seca
de outros truques emancipados
onde mãos não têm firmeza pensada
seria eu mais um fetiche de fluxos e contracorrentes (pergunta)
ilha. talvez arquipélagos.
certeza, fragmentos.
cheio outra vez do inesvaziável
por palavras que não se esgotam
nem no governo do silêncio
olha o tempo de ditaduras de mim
e revolta de outros
sou nós, aquilo que se define
por coisas que arrisca conhecer
perguntas chamam respostas ansiosas
pelo por vir
que dia é hoje (pergunta)

Dió. ssa-ba, 04.01-2015 às 11h03min
Por dentro, o de fora (poema)


sou casa
dos vãos, apenas últimas colunas
e a borrada lembrança da cama
do gato, restam pêlos
Sol corre tudo
vento limpa que restou
vazio de plenitude que assusta e instiga
posso cair das beiradas
e até passar do teto sem lajes
se despedaçar é o infalível
se reajuntar é ameaça avisada
formigas seguem caminho
com tantas direções, vejo árvore
pelo verso

Dió, ssa-ba, 04.01.2016

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Simples assim? Não mesmo!

        Muitos dizem (ou diziam - inclusive eu) que todas as coisas da vida são simples, e que somos nós aqueles que as complicam. Hoje, literalmente hoje, eu discordo.
        Paremos, pensamos:  o que é a vida senão nós (eu, você, os outros e todas as coisas)? Sim, somos a Vida, a própria Vida! A Vida existe em cada um de nós, e juntos compomos um mosaico de Vidas, que, no final, forma apenas uma única imagem: a Vida, a Existência como um todo, um aglomerado em constante, insatisfeita e interminável intercomunicação e interdependência.
     Nós não somos pacientes; somos sempre agentes dos fenômenos nos quais nos envolvemos. Somos sempre vítimas e algozes em todas as circunstâncias. (Não nos esqueçamos nunca: só há um EU porque há um outro que não sou EU.)
       Não somos nós que dificultamos as coisas; são as coisas nas quais nos fazemos ser em estado transitório - pois é a vida, em si, efêmera - o resultado de como, quando, onde, quanto, com quem ou o quê agimos de acordo com nossas vontades, desejos, conveniências, medos, frustrações, limitações, mesquinharias e egoísmo. Inevitavelmente, onde há mais de um, com certeza, existem divergências, ocorrem atritos, tensões.
     Chego agora ao amor. Que sentimento mais narcísico que o Amor (que praticamos)! Quando amamos, amamos nossos sonhos; e nossos sonhos não são nossos de verdade. Eles são meus, são seus, são deles, ou seja, os sonhos é de cada um. Sempre será único e pertencente a uma pessoa apenas. Somos nós que fantasiamos, deliramos e passamos a acreditar que há como compartilhá-los. Olha aí a ilusão voluntária! Procuramos alguém com quem possamos nutrir a vontade da ilusão de unir a diferença de dois no comum de um (o casal). É, justamente, aí que complicamos tudo. É nessa atitude simplória, insana e mal-elaborada de juntar dois em um que forjamos o maior dos erros: ignorar que as diferenças não apenas existem, elas são essenciais e indissociáveis para a concepção de um EU!
     O EU, sufocado sob a ditadura de um nós, reclama, sempre, seu espaço, seu tempo, sua vez. Note aí as brigas. E quanto mais amamos, mais projetamos o Meu EU sobre o EU do outro. Erro fatal! Nunca o outro será o EU que não é de sua natureza. E por que tentamos, então, desse modo irracional e destrutivo? Porque somos egoístas demais para notar que existe um OUTRO.
      Hoje, depois de sentir meu amor egoísta, de devassar minhas vontades, percebi que negligencio o EU que há no OUTRO. Solução? Sim, existe. Acima de tudo, respeito. Todos merecem mais que respirar.  Cada EU precisa ser EU. E para sê-lo, tende ocorrer tolerância, paciência, boa vontade, confiança e, sobretudo, doação.
      Sim, não dá para se viver sozinho. Contudo, nós fazemos tudo ao contrário e acabamos solitários justamente porque não nos doamos (ou não o fazemos suficientemente).
     É muito fácil apontar o OUTRO como o responsável por todos os erros. Fazemos muito isso; é cômodo; é injusto! Às vezes, conseguimos tomar para si uma ou outra responsabilidade (raramente, além disso), mas personificar e botar para girar a ideia (em ações constantes) de que precisamos, acima de tudo, praticar, incansavelmente, o exercício infindável da descoberta do EU do OUTRO no OUTRO, e não em nosso EU. O Eu do OUTRO sempre será o do outro. Respeitemos isso. O EU não suporta uma invasão. Então, convidamos o EU do OUTRO para que entre e compartilhe de suas fantasias com as minhas, as suas, as dele. Eis aí o Amor simples, sincero: amar o EU do OUTRO como sendo do OUTRO, e não uma projeção frustrada de nosso EU.
     Amar, é se surpreender, sem se assustar, com a diferença do OUTRO, aceitando-o como está, tolerando-o e agregando-o ao nossos sonhos. Desse modo, sim, os dois sobrevivem em um; um UM que nunca deixou de ser dois: os sonhos cruzados, entrelaçados, em contato, com cumplicidade, mas nunca misturados e confundidos.
      Sob árduo e interminável exercício de doação, é que vamos nos permitir ao que tanto a nossa natureza nos exige: amar, amar com a presença difícil do OUTRO; sim, difícil, mas nunca impossível.
       Eu amo. Amo como nunca amei e sei o que é vivenciar a vontade de dois EUs distintos num suposto único sonho. Por isso, decidi pelo caminho certo: que o EU do OUTRO, que eu amo, seja o que ele é: o EU do OUTRO, e não uma projeção cansada, desgastada de meu EU. Que haja trocas, doações, cumplicidades, mas que nos mantenhamos cada um com seu EU.

Dió, SSA-BA, 06/12/2013 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Postagens no Facebook

O encontro é algo incerto; muita coisa conspira para que ele não ocorra, mas, se ele ocorre, já nasce fadado a um fim certo. É inevitável que um dia haja a separação. Tudo que começa, termina. Sempre foi assim; é assim, mas a gente ainda continua se chocando, se surpreendendo, se magoando, sofrendo muito quando essa verdade toma forma! Como ter paz é difícil! Abaixo, há uma das músicas que aflora confusão nos meus sentimentos...
http://www.youtube.com/watch?v=PVzljDmoPVs
http://www.youtube.com/watch?v=JRfuAukYTKg
http://www.youtube.com/watch?v=ErvgV4P6Fzc
[Dió, ssa-ba. 15.10.2013]

Poderia lançar inúmeras palavras, erguer efeitos de linguagem, montar todo um discurso elaborado, mas não! Não é necessário. A grandiosidade de se amar, amar e ser amado, por si, já traz toda a satisfação, todo o prazer e toda a paz do coração livre e em paz!
[Dió, ssa-ba. 21.08.2013]

Quantas vezes não nos sentimos potentes, exímios, excelsos, para não falar em inabaláveis, superiores? Tolices! Quanto mais escorrego no tempo, mais recebo a confirmação: somos vulneráveis, em nossa soberba, arrogância e intolerância narcísicas, e passivos em face dos mais remotos sentimentos, aos quais o consciente e a vigília plenas de lógica e razões vãs não possuem senha. E aí, filhote, retrocedo. Volvo ao embrião. ignorante do mundo e escravo de um destino certo: ou nascer, ou abortar. Na estrada, sem direito à escolha, cometo "um paço perdido no espaço" atrás do outro. E, desencontrado na confusão da solidão, sou eu o predador de mim mesmo!
[Dió, ssa-ba. 19.08.2013]

Uma vez uma pessoa disse que o espaço e o tempo são uma estrutura só, o espaço-tempo, no qual tudo que há no Universo está imerso nele. De "onde" essa magnífica mente tirou aquela ideia genial que, junto com outras tantas, revolucionou a física e o modus vivendi do humano? Sonho. Sonhos. Sonhando, na paciência buliçosa da genialidade, ele foi sendo permitido aos segredos da vida. Contudo, mesmo nos sonhos, há momentos de dor. E, com a dor, ele foi crendo, duvidando, se permitindo, desvendando, se aprimorando, crescendo, amadurecendo, vivendo e entendendo que tudo que nos chega em sentido não é obra da gratuidade. Tudo que há e ocorre acontece, justamente, para um fim; fim esse que nos permite sermos o que estamos: devir, contante estado de mudança e, com elas, interminável necessidade de trocas... Não se pode viver sozinho! O eu nada mais é que um punhado de cada outro com quem (e o quê) já esbarrou, esbarra, está esbarrando ou esbarrará em sua vida, pois é nos apertos de mão e nos tropeços que cada um vai montando seu repertório e entendendo o que é amar (a si, a outro, as coisas, a fantasia...). É isto: Sonhar e paciência... Ao tempo (e ao espaço) deito minhas ansiedades e angústias. Entre o jogo de sensações, há momento para agonia e paz. Revezando-se, elas marcam nossas horas. E, no tempo certo, o que falta (paz) chegará e o que sobra (agonia) cederá cena. Continuemos...
[Dió, ssa-ba. 18.08.2013]

OBS.: Não há algum tipo de alteração. 


domingo, 28 de abril de 2013

Veio! [poema]

Na busca pela novidade, 
é a própria fome pelo inédito
que me consome em implosão:
os restos, rebeldes, se expandem;
é o universo invocado e questionado incessantemente.
E agora que veste usurpar, que voz invocar, a que perfórmance ceder?
Indagações irritam as verdades e parem problemas desconcertantes, e distúrbios são as conexões!
E dessa vez não existe grito nem choro, nem o vazio por ora valiosamente útil; apenas a morna resignação...
Então, resgatado (da esperança sem vigor) - mas ainda solícita mesmo à beira da morte -, o sorriso dos olhos chegam ao coração e ensinam aos sentidos outras formas de se mirar em face do denunciador:
o reflexo (em infinitos espelhos aversos de si) que costura outra estrutura, por meio da qual desaba
toda a sorte da felicidade, e, finalmente, sinto o peso do encontro consumado na paz dos ombros operários.
E o calor se casa com o outro calor que se diz frio, essências são produzidas, 
o silêncio assume outra versão, o braile se apresenta firme e enérgico sobre matérias em confusão de êxtase!
Fui encontrado! Na derrota, a morte me coloca ao meu alcance do raramente saboreado:
a certeza mergulhada no improvável, o brilho dos lábios de um que já foi dois em múltiplos pedacinhos.  
Nunca vi tanta beleza nas erosões sinceras que as lágrimas deixam sobre um rosto em amando e amado!
Que vontade de sentar pertinho do Sol e procurar pela Lua, mas não com meu indicador,
porque o possessivo renunciou o singular. Tenho meu feijãocomarroz! E Yellow se achega...

Por BB, Salvador-ba, 28 de abril de 2013.

Dedicado.
E escrito aos ouvidos de: http://www.youtube.com/watch?v=lWA2pjMjpBs


segunda-feira, 25 de março de 2013

Boa Viagem [poema]

as batidas do coração acompanhavam
as passadas largas sobre o infinito
era Sol, era mar, era praia, era calçadão: calor
pouca gente, muito carro, vários prédios: todos os sons,
até a solidão bradava!
e a abundância de mim me caçava de dentro
e o predador: meus desejos...
mesmo assim o horizonte era mais
que o futuro de especulações;
foi a ansiedade que flechava a preza a todo custo
e o fim não tardou. Saudades... O retorno.

Por Dió. SSA-Ba, 25/03/2013.

ATENÇÃO:

Releia o poema ouvindo esta música:

http://www.youtube.com/watch?v=vJiPWBizp60

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sobre riscos [poema]

muitos dizem que você e eu não sabemos aproveitar a vida
que a tal vida escapole das mãos escorrendo pelos dedos
sobrando apenas uma vida repleta de "e se eu..." e arrependimentos
será mesmo? talvez todos ainda não notaram
que são justamente os "ses" juntos com os arrependimentos de uma
vida supostamente não vivida
que faz daqueles poucos os que percebem a satisfação
de cada gota de lágrima que cai sobre o solo sedento
o coração ansioso por experiências e transformações
porque o que vale é tentar, provar, se permitir
e verter o espelho em muitos ângulos possíveis (e até impensáveis)
mesmo que eles tragam em si queda, dor, frustração
só pelo fato de ter feito, ter saído do campo do meramente sonho e especulações
e mergulhado no palco de quem contracena em ação dramática
já é o suficiente para esboçar a carinha da Felicidade
numa folha de papel desejosa por sofrer abusos constantes do lápis
seguidos de rasgos de borracha sobre si
e a Alegria se faz em contornos exatamente na dança sofisticada
de cada nova tentativa incansável de se reinscrever no teatro da vida
e quando esse fenômeno deixa de se reproduzir
aí, sim, outro estado ganha a vez:
a morte e tudo que ocorre nela
(dúvidas)

por dió, ssa-ba, 14-02-2013

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Olá! [poema]

Sobre os contornos do suor,
produtos do labor do homem para o homem, 
O corpo, sou a indiferença simpática 
e a soberba alcançável.
Afinal, todo Rei tem como obrigação retribuir
as reverências aos insaciáveis súditos,
assim como toda Diva
deve aos seus admiradores
o bater suavemente ritmado de suas ancas tropicais:
- Olá! (Com beijo no ombro), a satisfação do olhar alheio
me motiva a ser o que estou:
a Alegria do queijinho e a Felicidade das "rêivis".
Tá caralho! Precisava? Desnecessário, nééé?
E chorem, chorem muito,
porque a superação ainda não chegou...
E, como todos têm o que merecem, eu quero mais, muito mais!
Mais que O corpo, 
sou o fôlego da amizade e a energia do amor. 
E, em minha serenidade, caminho lânguido com a humildade
daquele que sabe muito bem que a vida é simples
e apenas uma passagem - que, com idas e vindas,
precisa ser experimentada por todas as beiradas...
Que sejam bem-vindos os que portam ousadia, coragem e labor
próprio dos que são puros de coração em sua plena mundanidade!
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk




Dedicado.
E escrito ao som de Bethânia: "Reconvexo".

Por Dió. SSA-BA, 14/11/2012







segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O que é emerso pelo fluxo de consciência n’A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector? [texto acadêmico]


Universidade Federal da Bahia
Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura
Representação Literária / Prof.ª Dr.ª Lígia Telles






Diógenes Pereira da Silva



O que é emerso pelo fluxo de consciência n’A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector? 




Salvador, 
Outubro de 2012




O que é emerso pelo fluxo de consciência n’A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector?

            Ao longo deste ensaio, tenho como empreendimento a análise da narrativa romanesca A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector, me atentando ao fluxo de consciência nela presente, o qual exibe um eu confessional e (pós)moderno. Para tal, lanço mão do diálogo com o texto A Meia Marrom de Erich Auerbach – mas sem me aprofundar no segundo, pois o foco do presente texto é, justamente, o romance de Lispector.
            A Paixão segundo G.H. tem como narrador-personagem uma mulher, cujo nome é as iniciais G.H. Essa “dona” de posição sociocultural abastada relata, em primeira pessoa, a experiência vivenciada por si quando tem o impulso de adentrar e querer limpar o quarto de empregada de seu apartamento. Já no interior do aposento, se choca e se frustra com o que encontra: limpeza, vazio, brancura e luz. Esperava totalmente o inverso. Percorrendo o espaço, se depara com os riscos de uma mulher, um homem e um cão nus, feitos a carvão, gravados na parede pela sua ex-empregada, Janair. Mais adiante, no guarda-roubas, encontra uma velha barata, a qual esmaga (sem matar de imediato) na porta do móvel. E é a partir daí que, movida por “um misto de medo e ódio (...) [e] sob o fascínio da barata que a repugna e atrai” (NUNES, 1995, p. 58), G.H. expõe o horror e o gozo de um encontro no qual a êxtase fomenta toda a pulsão da narrativa, “absorvendo G.H. na continuidade alucinatória de uma vida envolvente, em que se vê sendo vista, esvaziando de sua vida pessoal” (idem).
            “Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi” (LISPECTOR, 1998, p. 11), assim se inicia o romance já dando pistas do que vem adiante em toda a narrativa: o desejo de comunicar e se comunicar, a necessidade de externar e compartilhar sua experiência de tormentos de toda uma viva a partir de um fato banal do cotidiano do narrador-personagem, G.H. E isso se dá por meio do fluxo de consciência, que é constante em toda obra.
            De acordo com Alfredo Coelho de Carvalho (1981), o fluxo de consciência é a apresentação do que ocorre na consciência do personagem; consciência essa que se manifesta num contínuo fluxo sem fragmentos nem ajuntes. N’A Paixão segundo G.H., esse fenômeno é desencadeado pelo encontro de G.H. com a barata e o ato de esmagamento do animal. Em diálogo, outro romance (pós)moderno, “To The Lighthouse” de Virginia Woolf, analisado por Erich Auerbach no ensaio A Meia Marrom, também exibe a narrativa sob forte orientação do fluxo de consciência, que é desatado a partir do “ato de medir o comprimento da meia” (AUERBACH, 1976, p. 477), que a personagem senhora Ramsay dará de presente ao filho do faroleiro.
            De início, uma das primeiras características da narrativa de A Paixão segundo G.H. a ser observada como produto resultante do fluxo de consciência é um esvaziamento do eu, promovido por sentimentos contraditórios de dúvida e certeza, medo e coragem, atração e repulsa, ódio e prazer, desorganização e reconstrução, desilusão e encantamento, deslocamento e assentamento e des-cobertas: “todo momento de achar é um perder-se a se próprio” (p. 16), “não sou uma pessoa inteira” (p. 18), “a verdade nunca me fez sentido” (p. 19), “perdi o medo do feio” (p. 20), “criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade” (p. 21), “o que os outros recebem de mim reflete-se então de volta para mim, e forma a atmosfera do que se chama: ‘eu’” (ps. 27-28), “eu me dedicava a cada detalhe do não” (p. 32); o que, segundo Nunes (1995), é a exibição de uma sabedoria paradoxal, que, por meio da perda, há o ganho num inteligente jogo dialético, filosófico e ontológico de negação de si mesma por G.H., mas que a eleva a sua realidade própria e verdadeira.
            O eu de A Paixão segundo G.H. tem a necessidade visceral de transbordar, falar de si e, ao falar de si, conta do outro, das coisas, do mundo, do ser não sendo e do não ser sendo em ato confessional. Isso abala as estruturas de verdade, traz o avesso à tona, busca o conhecer e o re-conhecer por via dos questionamentos, das afirmações complexas, confusas e contraditórias, das ilusões, das alusões, das alegorias e das metáforas. Discute, sem cerimônia num estado doce-acre e envolvente, a própria existência do ser (pós)moderno:
(...) mas impedir o quê?
(...) O mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico. Tudo em mim fora reivindicado pelo começo dos tempos e pelo meu próprio começo. Eu passara a um primeiro plano primário, estava no silêncio dos ventos e na era de estanho e cobre – na era primeira da vida.
Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos. (p. 69)

O que se comunica com a análise de Auerbach (1976) acerca das digressões de senhora Ramsay de Virginia Woolf em “To The Lighthouse”:
Trata-se, preponderantemente, de movimentos internos, isto é, de movimentos que se realizam na consciência das personagens; e não somente de personagens que participam do processo externo [o contato e esmago da barata ou o comprimento da meia, nos respectivos romances], mas também de não-participantes [sic], e até de personagens que, no momento, nem estão presentes: people, Mr. Bankes [e do interlocutor que G.H. cria e acredita dar as mãos]. (p. 477)

O contraditório nojo e fascínio que G.H. tem sobre a barata, quando, por exemplo, descrever esse inseto com tamanha verossimilhança, curiosidade, presteza e proximidade – como se fosse seu par ou a “outra” barata sobre a distância de quem vê sendo vista, que mais que observa; participa em experimento de ser estando –, denuncia uma característica recorrente às personagens de Clarice Lispector: são menos agentes que pacientes da experiência exterior em face da qual não há controle, permanecendo a forte paixão pela existência, se deixando envolver (NUNES, 1995):
Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grilos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real. (p. 55)

            Nunes (1995) destaca que outra característica importante das personagens Lispectorianas é a “violência represada dos sentimentos primários e destrutivos – cólera, ira, raiva, ódio – que subitamente explodem” (p. 102); fenômeno percebido claramente, por exemplo, ao longo do “capítulo” VI. Nessa parte da narrativa, G.H. deixa vazar, como vaza a matéria branca da barata, seus desejos e impulsos mais íntimos e intensos entre, durante e após o momento da vontade e da realização de matar a barata:
Sem nenhum pudor, comovida com minha entrega ao que é o mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que era eu (...). Essa mulher calma que eu sempre fora, ela enlouqueceu de prazer? Com os olhos ainda fechados eu tremia de júbilo. Ter matado – era maior que eu, era da altura daquele quarto indelimitado [sic]. (p. 53-54)

            O encontro com o inseto é o ponto de fratura do sistema no qual G.H. está emersa, indicando o experimento da personagem em (auto)conhecimento. Isso suscita sua introspectividade com força, desenhando sua realidade interior e profunda (NUNES, 1995). Com isso, há, sim, um momento de descoberta de si pelo outro; existe uma libertação; ocorre um gozo em face de uma vida repleta de “inércia”.
            Mais adiante no “capítulo” VII, a fluxo de consciência promove a digressão, que causa a ilusão, o devaneio: “abria-se em mim, com lentidão de portas de pedras, abria-se em mim a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada” (p. 58). E esse “silêncio” é justamente a resposta, a coisa pulsante em seu vazio que preenche a G.H. desumanizada, a mulher transpassada em (auto)transgressão pela agressividade da vida em vivendo. É outra experiência, é o se expandir metaforizado pela estada num deserto: “e na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama” (p.60). E, como num deserto amplo e vazio, há espaço, há a possibilidade de ocorrências. Surge, então, a insegurança e o medo inevitáveis aliados à vontade de prosseguir nessa empreitada de expulsar a matéria branca da barata que está em si também. Para tal, forja o interlocutor com quem compartilha a experiência vivida: “segura minha mão porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua” (p. 60). A vida em devir, insatisfeita, contraditória, metamórfica, em constante processo de trocas e rearranjos.
            Como todo texto é formado por um mosaico de textos (COMPAGNON, 1999), é inevitável o diálogo entre A Paixão segundo G.H. e “To The Lighthouse”. Muito que se diz sobre o segundo, por parte de Auerbach, é válido para o primeiro, portanto. Auerbach nos fala que o narrador (como aquele que lança voz sobre fatos objetivos) é suprimido quase que totalmente, pois tudo que está sendo dito na narrativa surge como reflexo na consciência dos personagens (1976). Assim como a senhora Ramsay transmite o que pensa e o que sente em relação aos objetos com os quais se confronta (o comprimento da meia, a conversa dos criados, o toque do telefone), similaridade ocorre com G.H. A personagem do romance de Lispector, quando se apropria da existência da barata e se confundindo com ela, demonstra, igualmente, o que pensa e sente: “eu, corpo neutro de barata, eu como uma vida que finalmente escapa pois enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz branca no reboco da parede” (p. 65). Ainda nesse trecho, ocorre a diluição das fronteiras em favor do continuum da existência (e, com ela, todas as peripécias e idiossincrasias de cada parte do “mosaico”: o quarto, o desenho na parede, a barata, a matéria fofa e branca que sai da barata, a G.H. desumanizada – num apanhado mais amplo sobre a obra).
            No “capítulo” IX, a questão existencial é outra vez posta em destaque. Numa trama dialética repleta de conexões e alegorias, o narrador-personagem, primeiramente já ciente de sua transformação a partir do contato e do ato no quarto da empregada, questiona em que pessoa se transformou: “e agora o que sou?” E a resposta vem em afirmação que conduz à negação: “sou: o que vi. Não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com os seus planetas e baratas” (p. 67). Será mesmo? Creio que G.H. aí tenta se defender inutilmente das possibilidades da existência (mais: da coexistência), mas ela é presa de seu próprio algoz: sua paixão. A paixão de se esvaziar da matéria branca de barata que a implode somada à necessidade da troca e da renovação com e pelo outro.
G.H. teme e anseia porque tudo está mudando, nada é fixo, nunca o foi, é o ciclo da existência forjando a realidade numa farsa criativa, e repetitivamente inteligente, e sedutora, e perigosa. Surpresas! Ela, outra vez, é tomada pela contradição do medo e do fascínio. Vacila em parar, mas segue porque a paixão de des-cobrir e comunicar, de des-vendar e se comunicar é maior que todos os riscos:
A vida se vingava de mim, e a vingança consistia apenas em voltar, nada mais. Todo caso de loucura é que alguma coisa voltou. Os processos, eles não são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta. Às vezes a vida volta. Se em mim tudo se quebrava à passagem da força, não é porque a função desta era a de quebrar: ela só precisava enfim passar pois já se tornara caudalosa demais para poder se conter ou contornar – ao passar ela cobria tudo. E depois, como após um dilúvio, sobrenadavam um armário, uma pessoa, uma janela solta, três maletas. (p. 70)

E o risco é real. Está aqui: no espaço-tempo confuso e pululante de G.H.: “e isso tudo me parecia o inferno, essa destruição de camadas e camadas arqueológicas humanas” (p.70), como num processo de erosão do solo, que, lentamente, remove estratos do solo e os leva, os depositando em outro lugar, formando outro solo do ponto de retirada ao ponto de descarga.
            Outra vez, o fluxo de consciência ganha fôlego na menção subliminar que há na estrutura da barata. Ela é formada por cascas, assim como o sujeito é constituído de máscaras e a sociedade é organizada por meio de convenções e costumes hipócritas em sua conveniência teatral, além da sobreposição da história que nos converte ora naquilo que cremos ser dos humanos (com nossa genialidade, sensibilidade e beleza), ora naquilo que pensamos estar nos limites das bestas (com nossa belicosidade, intolerância e maldades): “o resto, o que não se via, podia ser enorme, e dividia-se por milhares de cascas, atrás de coisas e armários. (...) Atrás da superfície de cascas – aquelas jóias [sic] embaçadas andando de rojo?” (p.70)
            Em “To The Lighthouse”, Auerbach nos revela que é uma tendência nos textos de Woolf se ater a acontecimentos pequenos, de pouca significância, de suposta escolha gratuita, como: a medição da meia, uma fração da conversa com a empregada, um telefonema. Similarmente, isso ocorre na narrativa de A Paixão segundo G.H. quando G.H se atém a barata, as formas do corpo da barata, a matéria branca que sai dela, o quarto com seu vazio inquietante. O apego a esses fatos diminutos é inversamente o propulsor da grandeza do texto. É a partir deles que o fluxo de consciência é permitido, sustentado e fomentado, o qual, por sua vez, traz toda riqueza dialética em diálogo com outros textos, experiências, suscitando a riqueza e beleza da introspectividade vivamente contraditória e inquietante da personagem.
            Nunes diz que “mesmo o pequeno, insignificante ou vil, oculta um enorme poder de existir” (1969, p. 122). Logo, não vejo n’A Paixão segundo G.H. a escolha ao acaso que Auerbach percebe no texto de Woolf. Muito pelo contrário! Na narrativa lispectoriana, os animais (a barata) e as coisas pequenas ou aparentemente sem importância (como o quarto vazio de empregada) têm uma significância muito profunda para a própria poética do romance, pois são o elo simbólico de toda magia, e enigma, e tensão do ser e da existência em interconexão com o humano em sua manifestação, em nuances, enquanto humano e não humano.
            “Vista de perto, a barata é um objeto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias [sic]. É toda rara, parece um único exemplar” (p. 71). No fragmento, a marca de pejorativo geralmente atribuída a insetos como a barata, que vive de lixo, restos e nos esgotos (entre outros tantos espaços possíveis para esse ente da natureza versátil, forte e adaptável), é apagado, alçando o imundo animal ao patamar glorioso de uma mulher em sua máxima plenitude: o estar noiva, ornada de joias. Ela, a barata de G.H., não é qualquer barata, pois; é especial, é singular e plural; é aquela que a fascina, apesar do nojo, da repulsa e do medo que ela provoca em G.H. É a “joia” que faz de G.H. uma mulher que transcende o humano, que se explode em sua implosão interna, desabafando, conhecendo a si em desabamento por meio do externo, a espera de um “marido”, como toda noiva – e, como noiva num casamento, orgulhosa, vaidosa e transbordante de si, celebrando a vida em gozos.
            “Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos (...). E por que o imundo era proibido? Eu fizera o ato proibido de tocar no imundo” (p. 71). Como é de se esperar, logo em seguida, G.H., contraditoriamente, volve ao seu posto de humano, superior à barata. A barata era imunda, e, como G.H. adentra no universo baratídico, também se torna impura, um inseto. Contudo, a experiência não trouxe proveitos? Sim, eis aí o porquê do questionamento das verdades estabelecidas quando ela questiona a razão de o impuro ser negado e rechaçado – a Bíblia aí entra como representação máxima desse mundo governado por leis castradoras e moralizantes, que orienta, conduz e condena e pune o infrator (G.H.).
            Voltando a atenção para o quarto de empregada, ele é o que Nunes chama de “verdadeira ampliação onírica do mundo” (1969, p. 115). Isso porque o quarto nada mais é que uma parte de um todo. Ele está inserido num espaço maior, o apartamento, que, por sua vez, está no condomínio, que faz parte da cidade, a qual está no Estado, o qual integra a União, localizada na América, pedaço do mundo, “satélite” do Sol, diminuto rincão da Via Láctea, fração do Universo. Em outras palavras, tudo está interligado, conectado, unido num único corpo; tudo é uma coisa só que se apresenta em particularidades de pedacinhos: G.H., a barata, o quarto.
É a partir dos pedacinhos que formam o todo que a paixão de G.H. escorre pela narrativa em direção à realidade e ao leitor, com o qual “dá as mãos”. E que paixão é essa que domina G.H.? É a paixão de ser; (e sendo) é transgredir, é questionar, é comunicar e se comunicar, é interagir, é chocar e se chocar, é trocar, é conhecer e se conhecer, é gozar:

Abri a boca espantada: era para pedir socorro. Por quê? Por que não queria eu me tronar imunda quanto a barata? Que ideal me prendia ao sentimento de uma idéia [sic]? Por que não me tornaria eu imunda, exatamente como eu toda me descobria? O que temia eu? Ficar imunda de quê? Ficar imunda de alegria. (p. 73)

O que também revela o caráter dramático (e, sobretudo, trágico) do romance (NUNES, 1969).
            A analisar o tempo de “To The Lighthouse”, Auerbach acredita que há uma clara e íntima relação entre a operação do tempo e a “representação da consciência pluripessoal” (1976, p. 487) uma vez que o processo de representar da consciência não se limita à experiência exterior aos domínios da mente. Ele conclui que a experiência exterior é apenas um suporte para o que de fato tem importância na narrativa; aquilo que é desenvolvido como reflexo dos fenômenos mentais em face do objeto real exterior.  Por isso, o tempo é outro tempo. É um tempo que não “corre” verossimilmente. Ele é o desdobrar de pequenos instantes (como o medir a meia) em longos momentos nos quais o fluxo de consciência ganha “corpo” e “voz”. Paralelamente, o mesmo se dá no texto de Lispector.
            “A barata me tocava toda com seu olhar negro, facetado, brilhante e neutro. E agora eu começava a deixá-la me tocar. Na verdade, eu havia lutado a vida toda contra o profundo desejo de me deixar ser tocada” (p. 88). Apesar de os verbos estarem em pretérito, o momento é narrado de tal forma que se confunde com o presente da leitura – note a presença do advérbio de tempo agora. – O que importa aí, portanto, não é o quando nem o quanto durou a experiência, mas, sim, a experiência em si e o que ela representa. G.H. cede à sua paixão. Num momento atemporal, repousado em outra realidade, a sua, e ela se permite à Permissibilidade. Suas fronteiras são evacuadas de (quase?) toda e qualquer proteção e o outro entra em si, fazendo de sua existência uma ponte entre a parte e o todo, e nisso há prazer, pois é corromper e transgredir com toda a forma ditadora e duradoura de ser em limitação. É outro momento; é libertação.
            Liberdade lembra o amor vivido, impedido ou aspirado. O amor está na paixão de G.H. Ela mais que o deseja; ela o sente em lembrança ou esperança. E, no sentir, exprime toda a tensão que é compartilhar o sentimento de amar junto com o outro, que forma o seu par: “(...) devagar beijara, e quando chegara o momento de beijar teus olhos – lembrei-me de que então eu havia sentido o sal na minha boca, e que o sal de lágrimas nos teus olhos era o meu amor por ti” (p. 89). E é na alegoria do “sal” da lágrima que está o sabor da experiência. Logo, É um amor dramático, talvez trágico, mas é uma forma de amar, sim, à maneira de G.H – e, como G.H. é um nome que remete a W possibilidades de vários nomes, também é a forma de amar de tantas(os) outras(os).
            Como aponta Nunes (1969), o estar em náusea é desempenhado ao extremo em A Paixão segundo G.H. juntamente com outros estares: medo, ódio, fascínio, repulsa, frustração, curiosidade, dúvida, gozo, alegria, amor. É a náusea, sobretudo, que escava o humano de G.H., a desumanizando, aflorando seu nu igualmente mais nu que o próprio nu, como o nu que há nas figuras riscadas a carvão no quarto de empregada. Inevitavelmente, a náusea levada ao limite faz aflorar todos os outros sentimentos que até então estavam trancados em seu mundo interior, e a paixão (de acordo com a G.H.) é permitida.
            No “capítulo” XIV: o medo é detalhado, exibindo a fragilidade do ser em face da grandiosidade da existência, mas em contraste com a grandeza da paixão que move G.H.; e o feminino e o masculino são marcados num certo embate, mas um se entrelaça no outro, são complementares. Ademais, são nos “capítulos” XV e XVI que um aspecto importante da narrativa é apresentado: o neutro. De que se trata esse neutro? É o “elemento vital que liga as coisas. Oh, não receio que compreendas, mas que eu me compreenda mal” (p.100). E o neutro está muito próximo do nada e do tudo; é o entre-lugar que dá forças à narrativa justamente porque é o motivo para que surjam as dúvidas e as perguntas, assim como cheguem a vontade pela transgressão e o desejo pela troca.
            O neutro é também a forma pela qual G.H. tenta explicar sua visão de realidade, aquela em que o nada e o ser se identificam, se confundem e se fundem (NUNES, 1969): “o neutro é inexplicável e vivo, procura me entender: assim como o protoplasma e o sêmen e a proteína são de um neutro vivo. E eu estava toda nova, como uma recém-iniciada” (LISPECTOR, 1998, p.102). Dessa forma, Clarice Lispector nega a linguagem numa fração de silêncio, que culmina na transcendência e repousa na revelação do ser (NUNES, 1969).
            Ademais, de acordo com Compagnon (1999), a mimèsis não é o simulacro de Platão, a mera cópia ou réplica; antes, é como é designado o conhecimento próprio ao ser humano e seu ethos e sua idiossincrasia. Ato contínuo, se valendo da mimèsis da experiência, G.H. explora seu interior labiríntico com o auxílio do outro (a barata, por exemplo, com sua matéria branca). Nesse jogo, se forma o ciclo e o eu é o mesmo, como num “armadilha” de espelhos no qual os objetos refletidos formar várias imagens numa só imagem.
            Por fim, o curioso é como a literatura, mesmo sendo autorreferencial – pois a literatura fala da literatura (COMPGNON, 1999) –, diz muito sobre o mundo (e tudo que está nele e além dele: a própria existência, que contém tudo). Assim, não é gratuito, portanto, que em A Paixão segundo G.H. a frase final de um “capítulo” seja exatamente o início de outro. Isso não seria apenas uma ferramenta para unir o discurso textual, tecendo uma ligação íntima e linguística entre as partes que formam o texto como um todo; além, é a comprovação de que a paixão de G.H. possui a lógica da unidade, ou seja, não há como transgredir sem agressão – o invadir, o adentrar, o devassar –, não há como chegar a si sem ir ao outro. Tudo está conectado, formando o neutro, o nada, a realidade, a Ocorrência, a Existência, a Paixão e A Paixão segundo G.H.

Referências:   

ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.

AUERBACH, Erich. A Meia Marrom. In: MIMESIS: a representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. rev. Sao Paulo: Perspectiva, 1976.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo & fluxo da consciência: questões de teoria literaria. São Paulo, SP: Pioneira, 1981.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da Teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo: (ou a polêmica em torno da ilusão). 10. ed São Paulo: Ática, 2001.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H: romance. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1998.

NUNES, Benedito. O dorso do tigre: ensaios. São Paulo, SP: Perspectiva, 1969.

_______________. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo, SP: Ática, 1995. 

PLATAO. A República. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1997.





domingo, 21 de outubro de 2012

Délícia!!! Rs [RELATO]


Numa dessas viagens, conheci uma pessoa que me disse algo que nunca saiu de minha cabeça: “a vida é feita de escolhas”. Aquelas palavras foram rasgando minhas resistências a partir de cada instante em que eu ia me alimentando de cada caloria de sua mensagem, assim como um bebê vai se arriscando e provando o que o tempo vai lhe dando a cada centímetro crescido.

Em outro momento, um gastroenterologista me disse mediante minhas queixas: “olhe, menino, você fala demais! Enxergue você mesmo, veja o mundo. Muita coisa que você acha complicada é muito mais simples que o ato de você andar, e outras tantas que, de verdade são complicadas, podem bem facilmente ser descomplicadas. Então descomplique e simplifique a vida! Você é bonito e especial em seu modo de ser  e pode ser assim eternamente, basta você nunca deixar de ousar e arriscar. Não tenha medo do Medo. Seja amigo dele. E vá, siga e pire mais sua cabeça.” Saí do consultório me sentindo o maior idiota do mundo! Como não ter percebido aquilo durante meus 28 anos! Era tudo: viver é se permitir de acordo com as escolhas rápidas em seu tempo e vagarosas na sua intensidade, mas sempre de acordo com o melhor para cada situação. Existir em vivendo era muito mais fácil que um bêbado pode devanear...

Pronto. De lá para cá, fui revendo os valores, os paradigmas, os preconceitos, as limitações, as intolerâncias, as vergonhas, os orgulhos, as minhas escolhas e decisões. Mudanças foram ocorrendo sob a trama de duras tentativas e erros em persistências contínuas. Parar jamais. Então, o que em mim já era uma característica natural foi se agigantando. Fui conseguido esboçar fugas da prisão sem muros na qual me fazia e faço algoz e vítima. E, em dia (e dias) inesperado, fugi daquilo que me acorrentava. Estava no asfalto...

De fugitivo a recapturado, fui colecionando atracações violentas com a Alegria e carícias pluridimensionais na Felicidade! Reciprocidade e correspondência. A física teórica nunca fez tanto sentido para mim como agora! O espelho não só sorria, ele chorava em sentir que os olhos não se limitavam a sua garagem, eram todos os dedos, assim como a boca era cada furinho da pele com sua língua que se alargava até onde a pele marca presença, o ouvido era todos os fios do corpo e o nariz, a própria mente ociosamente criativa com suas leis contraditórias: Quimera! E chorar é bom, bom porque você acaba de matar um SE em si para alimentar outro EU que ainda não tinha ganhado a chance de caminhar no calçadão de Ipanema.

E eu não posso – nem quero, nem devo, nem tenho o direito – de privar a história uma História: descobri que Boa Viagem é a Barra! Na eternidade de três dias, os limites de minha casa se confundiram com a vontade gozada em trocas. E mais que concordei: viver sozinho é possível, sim, mas viver com a diferença que não está em si, é muito mais maravilhoso; aprendi em aprendendo que a paixão não é o mais importante para uma união, e, sim, o que é melhor para si: a fluidez em estar bem, em paz e, ao mesmo tempo, preenchido pela presença de uma pessoa querida e conquistada sem a intervenção da paixão.

Inevitável! Hoje, provei o que todos desejam: o inédito de facto.

 Em casa outra vez, tenho a paz rememorante da saudade como companhia de cama. E o desejo de mais um abraço me encanta para o sonho... Que Délícia!!!!! Rs

Diógenes Pereira, SSA-BA, 21.10.2012

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Não, não foi um dia como outros! [Poema]

Não era mais um dia de Sol com céu azul e muito calor;
foi o dia em que sensibilidade foi insistente,
me apontando como é forte e cruel a ditadura
da felicidade a qualquer custo.
E todos embarcam nessa: vivem no déficit,
e pousam com sorrisos e abraços largos, calorosos;
e dentro de si a verdade, apenas a solidão
de mais uma entre tantas noites
sem o calor da presença sincera, voluntária e alheia de um par.

Dió. Ssa-Ba, 19.09.2012