domingo, 5 de dezembro de 2010

O SAUDOSISMO [TEXTO ACADÊMICO: RESENHA]

              Saudade: vocábulo mórfico constituído por sete fonemas, os quais criam o significante que é único em língua portuguesa apenas (não existe em alguma outra língua!), ou seja, idiotismo. Essa unidade lexical possui um significado que exprime muito o que fomos e o que somos como povo, cultura, civilização, desde os tempos remotos do antigo Condado Portucalenses ao grandioso e paradoxal Brasil de então, num continuum rasgado e marcado por muita dor e sangue, e também beleza e alegrias.

                Será mesmo que tudo isso é passível de representação por uma palavra somente: saudade? Óbvio que não! Mas é a partir dela que daremos um importante passo a fim de compreender como ocorre a idiossincrasia da Nação Portuguesa em face de sua própria gênese, como mais uma possibilidade de manifestação do humano, em nuances de permissibilidade criativa, multicor e pluriforme.

                 Segundo um dicionário brasileiro da língua portuguesa, o substantivo feminino saudade denota: lembrança nostálgica de pessoa, situação ou coisa distante, ausente ou extinta; sentimento de pesar pela ausência de um ser querido; e lembranças afetuosas ao objeto de desejo ausente [adaptado]. Logo, chegamos à conclusão de que Saudosismo não é um mero produto derivacional de saudade; mais que isso, é a própria cara de uma Nação que vê, em seu passado longínquo, a esperança reconstrutora para um país, hoje, mergulhado no oceano de esquecimento de seu anonimato angustiante. A saudade daquele Portugal de glórias acompanha toda a história do povo português até a contemporaneidade, portanto.

                   Contudo, o que me incumbe, aqui, é entender o que foi/é o Saudosismo – redundantemente – Português. Justamente, é ele isto: o passado como tentativa de reconfigurar o presente com a marca de mais positivo; é o Sebastianismo Fênix, sempre retornante; é o (re)cantar Portugal de outrora, inventado em Os Lusíadas de Camões; é o movimento socioliterário que se inicia nos primórdios do século XX, cujo precursor foi o Poeta e Pensador Teixeira Pascoais.

                     O citado movimento Socioliterário, igualmente conhecido por “Renascença Portuguesa”, cujo órgão oficial foi a revista “A Águia”, tem suas origens alicerçadas num tempo em que Portugal, sob o estigma do Ultimatum, sente-se inseguro e pessimista, emergindo, em seu seio, todo o sentimento saudosista. Em consequência, muitos portugueses, principalmente escritores e outros intelectuais, deprimidos frente ao Portugal do indegustável presente, refugiam-se no passado de virtudes, com o desígnio de reconstruir sua Pátria sob os moldes da potência imperialista quinhentista-seiscentista dos grandes, deslumbrantes e mistificados descobrimentos.

REFERÊNCIAS:

MOISÉS, Carlos Felipe. Roteiro de Leitura: Mensagem de Fernando Pessoa. P. 11 a 24. Ática: São Paulo, 1996.

XIMENES, Sérgio. Minidicionário Ediouro da Língua Portuguesa. Ediouro: São Paulo, 2000.

Por Diógenes Silva. Salvador-ba, 19 de novembro de 2006. Parte integrante do trabalho de Literatura Portuguesa II, semestre 2006.2. Letras- UFBa.

ONDE ESTÁ (POEMA)

Às vezes, a Solidão é carinhosa

Não causa medo, é bem-vinda

Há outros momentos em que ela

Devassa a intimidade sem pedir licença

Sem cerimônia alguma

E mostra mais que carência

Exibe aos tapas e cuspidas

Necessidade de permissibilidade

A experiências por meio do Outro

Não só nos agoras, além e aquém

Deixando o Inconsciente fazer do Amor

Pista pela qual sua Conveniência fará

Inúmeras travessuras sem consentimento

Ou complacência do Ser que habita

Isso não é problema...

Pelo contrário, torna o Drama do gostar e ser correspondido

Ainda mais delicioso de se assistir

Seja de camarote, seja como contracenador

O complicado é justamente o Outro

Melhor, onde o encontrar

Miséria, onde está o Outro?

E a pergunta volta com resposta...

A tristeza é a companhia no momento

Resta Sonhar pelo Desejo que balança

Entre a resignação e a rebeldia

E os dias ficam longos

E as noites, mais silenciosas

E esperança aqui, inquieta.

O Carteiro vem, cumpre seu ofício

Acaricia Blanc e se vai outra vez...

Lembrei do dia do primeiro beijo...

Voltei a Sonhar...

Que o Sol não chegue tão cedo



Diógenes silva. Ssa-ba, 1-12-2010.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

SIM, SENHOR:PUTA! [POEMA]

Entre encontros e desencontros,

Me firmei Cristina:

Mulher,

De cor indefinida graças às Divindades ou

À sacagem de Donas e Senhores e Coisas e Peças (?)

E Vontade Pestilência – destruir o máximo que puder.

Buceta! O desejo é o prazer...

A volúpia se esparrama sobre esse corpo

Que reclama criativo por gozadas.

Luxúria , apenas um de muitos apelidos

A que podem me cantar.

Puta. Puta, sim, Senhor!

E muitas que fazem do corpo (e da alma) o café-da-manhã,

O almoço, o jantar de cada dia,

Além dos trocados pros moleques das saidinhas e brincadeirinhas

E o agrado pras comadres de copo e janela.

Vê esta marca? Ela é uma de tantas que narram bafos e acontecimentos

Que por aqui, Dear, passaram felizes...

Viver? Isso não é nada!

Brincadeira é dançar sobre o sorriso largo da Desgraça,

E não se deixar adormecer sob os carinhos traiçoeiros da Morte.

Operária. Atriz. Empresária. Vencedora!

Às vezes, o drama é tanto que nem sei quando é sonho,

Pesadelo ou segunda-feira...

“Acorda, Alice de Cachoeira!”, digo eu todos os dias pra mim quando abro os olhos,

E dou adeusinhos às Quintas.

Preciso faturar! Vagina santinha e cu na espera não sobem em trio!

Ninha aqui nunca foi Barbie.

É na desilusão e na ardência e urgência do desconhecido(a)

Que me faço Presente.

E, embalada em cores vivas sobre cortes devassadores,

Me mostro rebeldia de menina que só quer brincar:

Possibilidades do absurdo!

Venha. Não se acanhe, Fio. Neguinha de cá só quer...

A gozada, Preta, é apenas o iniciar...

Diógenes Pereira. Ssa-ba, 29-11-2010.

ATENÇÃO:
                     Devido à ocorrência de fatos desagradáveis, constrangedores, DEIXO CLARO QUE O POEMA ACIMA NÃO FAZ REFERÊNCIA DIRETA OU INDIRETA A QUALQUER PESSOA QUE SEJA. Não se trata de um texto biográfico. Antes, é apenas um poema no qual o EULÍRICO assume a voz de um entre os tipos sociais: A PUTA (sem tecer traços de desdém), a fim de manifestar o poema...

PRISÃO SEM MUROS [ENSAIO]

I


       Passos rápidos. Pressa era a vez. O cheiro de comida maravilhosa me bombardeava todo. O Olfato me guiava corredor a dentro. Nada à mente de substancial. E quando finalmente a Ansiedade cedeu seu espaço, me deparei com o inacreditável: O Banquete; não um qualquer, mas de fato O Banquete, e todinho meu, só meu. Não. Minto. Meu e de minha Gula incontrolável.
      Sem pensar, já estava todo mergulhado naquelas maravilhas da arte culinária. Gozo, gozo, gozo!!! Todos os sentidos estavam voltados para o prazer de comer e beber. Contentamento, Felicidade e Paz estranhas me invadiam. Nada me perturbava ou me importava naquele agora. Até o momento em que eu... Uih!
        Iiiirrrrhhh... Foi o grito que me fez Paralisia total em Arrepios frios e acres! O Tempo parou. Congelado estava por completo. Não conseguia me mexer. O Medo já havia reivindicado minha identidade. Talvez, só meu corpo estivesse lá, pois a alma, esperta, já deveria estar bem longe. E pra piorar, veio o terrível silêncio logo em seguida. Nada se movia ou se ouvia; a não ser as batidas do coração aflito. Comecei a buscar aquilo que me atormentava apenas pelo giro de olhar e investidas dos ouvidos. Nada. Apreensão. Medo, terror, pavor... A fome morria, o prazer nem lembrança mais deixava. Tudo acabado. Não, ainda não. Faltava mais...
       Um passo, segundo passo, terceiro passo... No reflexo, me virei, e nada. Quando retorno, a Coisa já estava sobre a mesa, babando. Provavelmente, deliciando o que logo seria suas fezes. Saltei pra traz em defesa legítima! Jamais poderia me entregar àquela abominação. Corria, corria, corria. Sem olhar pra traz, só enxergava o pior! O bafo do monstro fazia carícia satírica em meu cangote. A qualquer momento eu já estaria sob o destino que ela me guardava.
        Ofegante, as forças iam me escapulindo aos pouquinhos pra alegria do horror. As pernas já não aguentavam mais. Até que parei e esperei resignado que o Terror me consumisse. Espera. Por que ela não me atacava logo e terminava tudo de uma vez? Não. Assim não teria graça. A Coisa também gostava de ter prazer. Ela gozava com minha aflição. Sua superioridade mediante minha impotência indefesa fazia de si a Realização da Glória. Então, me voltei e encarei a Coisa. Li nos olhos dela o que jamais imaginaria acontecer comigo. E, num único pulo, ela já estava sobre meu cadáver, dilacerando tudinho. Só a frieza de suas garras e dentes mais o calor de sua saliva me lembravam que ainda existia vida em mim. Vida que logo acabaria...
         E a morte veio infalível. Foi aí que abri os olhos sem pressa. Caminhei as mãos pelo corpo suado e ainda trêmulo. Estava no meu quarto todo iluminado. Era dia de muito sol a entrar pela janela aberta. Alívio. Foi apenas um pesadelo. Daquela eu havia escapado. Contudo, de outro monstro ainda pior, não. Desse outro eu ainda sou freguês fiel!

II

           Não há dúvidas de que aquele monstro do pesadelo é apenas um reflexo do que há dentro de mim e de cada um de nós todos. A cada instante, somos dilacerados por nós mesmo, numa ação canibal insaciável movida por aquele que é nosso maior inimigo: Nossos Problemas.
           Os problemas são muitos. Alguns escancarados, outros sutis, alguns tantos camuflados, outros praticamente invisíveis ou imperceptíveis. Vários detêm nossa aquiescência e conveniência, outros obtêm nossa complacência e tolerância, alguns gozam de nosso respeito, medo e submissão. Eles existem. Estão lá, fazendo de nosso ser um verdadeiro campo de batalhas onde quem geralmente perde é nosso Bem-estar.
           Quem, vez por outra, não se pega se sentindo impotente, incapaz, despreparado, indefeso em face de algum desafio, dificuldade, pensando logo em largar tudo, esquecer o que puder e fugir pra bem longe? Todos. Inevitavelmente, somos seres limitados que tendemos a nos atrofiar ainda mais. O irônico é que temos a incrível capacidade de aprender com os erros e a crescer a partir da dor; mesmo assim, o que vem primeiro à mente é a vontade de desistir e se refugiar na ilusão aconchegante e viciadora das instâncias da introspectividade – nem sempre sonhar é bom. Assim como o que distingue o remédio curador da droga nefasta, o que diferencia o desejo-sonho inspirador e motivador do desejo-fantasia ludibriador e ignominioso é justamente sua intensidade, duração, finalidade e eficiência. – E muitos de nós cedemos ao primeiro impulso por parecer mais fácil e cômodo, tornando-nos vítimas do nosso predador: a falta de coragem e atitude para encarar o desafio, escrutando-o, devassando-o, dessecando-o, compreendendo-o, tornando-nos íntimos de suas estruturas e vontades para que assim possamos superá-lo e podermos amadurecer a partir de cada conquista sofrida – apenas ideal para muitíssimos, e, como todo ideal, algo inalcançável!
          Quantos nunca desejaram algo, quiseram muito obter alguma coisa e por algum motivo (banal) não conseguiram, desistindo antes mesmo de tentar ou logo no início da busca? Ninguém escapa. O fracasso tem a direção voltada para frustração. E como se frustrar é vergonhoso, sofrido e humilhante, pois deflagra nossas fraquezas, a ordem é esconder o que dá e fingir que tudo anda como Papai Noel planejara. Viver sob máscaras é o dia-a-dia. Sorrir escondendo as lágrimas traz a falsa sensação de que somos menos medíocres. Contudo, o desejo foi adiado, o gozo foi abortado, e a frustração cresce vigorosa, impedindo que nos olhemos no espelho com a satisfação daquele que tem o dever cumprido: permitir-se às experiências, somando-as ao devir que é o nosso próprio ser.
          Quem não se envaidece de alguma qualidade que porta, até mesmo a supervalorizando a fim de se mostrar mais notável que os outros? Todos nós; claro, uns mais que outros, com mais frequência.Ter orgulho e vaidade de si não é coisa ruim. O problema está é quando se perde a noção de que somos iguais justamente em nossas diferenças. Fulano pode ser magnífico em algo, mas é imaturo em outra coisa. Cada um possui seu quinhão de glórias e bocados de ignorância. Utilizar-se de uma ou algumas das qualidades nobres para montar uma imagem magnífica e excelsa de si em detrimento do outro é mais que repugnante, é repudiar o que tanto a natureza prega: troca de fluidos, experiências, cruzar, interagir, habitar, coabitar, conviver. Infelizmente, o movimento de se tornar o Destaque só traz desprezo, ódio, rancor do outro para si e leva de si para o outro indiferença, soberba, arrogância, cindindo a solda que torna o humano a Sociedade: indivíduos solitários, vazios em suas riquezas, títulos, prestígios e glórias. O que adianta uma maravilhosa mariscada se você não tem com quem compartilhar? Nem o espelho tolera mais tanta nojentice.
        Quem insiste em não enxergar o belo, a razão, a inteligência, a criatividade, a argúcia, a sabedoria, a solução no diferente outro (apenas por ele ser apontado como tosco, burlesco e inadequado), fechando-se na mesquinhez de seu preconceito? Todos nós de acordo com a sede da conveniência. A cegueira maligna é certa para aqueles que se consideram superiores. Sua arrogância os torna obstinados na planície esburacada que é o seu modelo lacunar, aquele que, supostamente, emana unicamente a verdade. Não sabendo esses que a verdade é o convencimento. E seu convencimento nem sempre é o do outro, geralmente chocando com a idiossincrasia legítima daquele que não compartilha seu espaço. Outra vez não há diálogo; apenas, hostilidades. Danificada fica o canal pelo qual as partes poderiam transar e gerar a permuta que os fortaleceriam a partir da vivência e expectativa de ambos os lados, que necessariamente não precisam ser opostos e conflituosos, podem ser paralelos e harmônicos, entre outras possibilidades de ocorrer.
           A quem não podemos chamar de egoísta? Outra vez ninguém. Mesmo o indivíduo mais altruísta, opera a seu favor explicita ou tacitamente. Primeiro sou Eu, depois eu e eu outra vez. O outro só é lembrado quando esse faz parte de nosso inventário de desejos ou quando ele é uma potencial vantagem a nos servir. Até aí está tudo normal – normal aqui entendido como algo comum, que ocorre com frequência. – Mesmo vivendo em comunidade e precisando um do outro não só para usufruir de coisas do hodierno mas também das necessidades da carne e da psique, o indivíduo é uno, e como tal, tende a pensar e agir como Um, mesmo quando leva benefício e prazer ao outro. O prazer, o gozo, a satisfação do outro a quem se tem apresso nada mais é que uma de muitas formas possíveis de manifestar o inventário de desejos do Ser. Não é à toa que muitos se iludem ao acreditar que amam de forma gratuita alguém. Mentira. Não há gratuidade. O que ocorre é o mascaramento do interesse, voluntária ou involuntariamente, entorno de lances de efeito (carinho, atenção, afeto, prestatividade, solidariedade, compaixão, voluntariedade...). Creio que esse amor alterego não passe de uma parte do amor nuance do ego narciso. Vejo isso como fato inevitável pela simples razão de cada um ser um ente entre tantos; ente esse que é único, único em tudo, desde suas vontades e caprichos aos seus medos, limitações e frustrações. Portanto, o altruísmo é uma das mais fortes farsas que existem; em outras palavras, um dos mais pujantes ideais. Quem sabe mais uma fábula ou algo apenas realizável por seres perfeitos, como Jesus Cristos, por exemplo. Ademais, penso que o problema surge quando esse (diga-se) egoísmo inato e inevitável toma corpo a tal ponto que se torna egocentrismo. Esse, sim, é prejudicial, porque ele é a declaração sem cerimônias de que Eu sou mais importante que qualquer coisa. Isso magoa diretamente o ego narciso do outro, que vê toda uma imagem construída daquele que o fez e faz bem se desmantelar satiricamente frente seu estupor e suspensão. Incredulidade. Indignação. Revolta. Raiva. Ódio. Pavor. Abandono. Resignação. A separação é inevitável. O ser egocêntrico é extirpado do inventário de desejos do outro. O outro passa a vê-lo como chato, sem graça, repugnante. O saldo: solidão para aquele que adota o egocentrismo.

(1- Inventário de desejos: é toda e qualquer coisa – animada e inanimada, concreta ou ficcional, humana, semi-humana e não humana – que tem a real potência de trazer prazer, gozo, satisfação, bem-estar a um ser vivo, o qual, consciente e inconscientemente, vai somando e subtraindo elementos que faziam, fazem e farão parte de seu inventário de desejos. Exemplo: um indivíduo qualquer e alguns dos objetos que fazem partes de seu inventário de desejo: suco de manga, sua irmã caçula, fazer sexo oral, comer acarajé com mostarda, ir à praia, assistir filme de terror, ler romance policial, quebrar pratos.... O inventário de desejos sempre está em mutação e, na razão de soma e subtração, tende a crescer ao longo da vida do indivíduo. Alcança seu pico na fase de transição entre o final da vida adulta jovem –aventuras, descobertas, rebeldias... – e o início da vida adulta madura – responsabilidades, estabilidade econômica, formação de família... – Essa força só parece minar quando a velhice chega, mudando a razão soma e subtração do inventário de desejos, que passa a tender ao decréscimo – é justamente quando o indivíduo vê seu corpo em estágio avançado de deteriorização, os filhos já se foram, acredita que já não é mais útil à sociedade, vem a solidão, modorra e sedentarismo...; 2- elemento humano: toda e qualquer espécime que pertença à espécie homo sapiens sapiens, seja adulto ou criança, velho ou novo, mulher ou homem ou bissexual ou homossexual, macho ou fêmea, mais tudo que a psique humana produza em sua introspectividade, emanada apenas pela linguagem oral verbal ou corpo-gestual; 3- elemento semi-humano: todo e qualquer ser que não esteja dentro dos limites do humano, o qual passa por alguma transformação provocada pela vontade e criatividade de um indivíduo humano: pintura, escultura, papel, música reproduzida não pelo aparelho fonador humano, livros, casas, animais domésticos, estradas, comida não in natura e manipulada, cocô já excretado...; 4- elemento não humano: tudo que não está contido nos limites do humano e do semi-humano: animais selvagens, estrelas, florestas virgens, cadeias de montanhas inexploradas...; 5- amor nuance: é o amor total, o todo, formado por partes menores que se unem e compõem o todo. Ele é como o amor se mostra, em frações, nuances, partes do amor em muitas formas possíveis de realização, manifestação e materialização: amor fraternal, maternal, conjugal, material, sobrenatural...)

              Qual aquele que não possuiu, tem ou pretende manufaturar alguma maquinação maldosa contra algo ou alguém? Não há exceções. Em algum momento da vida (passado, presente e/ou futuro) cometemos, fazemos ou empreendemos alguma crueldade em face do outro. Por legítima defesa, por capricho, necessidade ou até mesmo mero prazer, sentimos certa catarse em não só ver a desgraça alheia, como babamos conjeturar e executar alguma crueldade; talvez em doses relâmpagos, ou homeopáticas e até mesmo sazonais. O que vale é fazer o mal e tirar algum proveito e/ou prazer disso – quem sabe um bobo esboçar de Riso Monalisa ou uma gargalhada Fafá de Belém. – A desgraça do outro também faz parte do inventário de desejos, ainda mais se o infeliz for algo ou alguém que nos desprezou, humilhou, agrediu, repudiou ou simplesmente rejeitou e nos legou indiferença – nada pior que a ignorância total e a indiferença ferrenha pra chocar o ego narciso e espatifar o espelho da vaidade. Antes o ódio do que a simples e trivial não tô nem aí pra você sincero, sem palavras, gestos, algum sinal. Isso não só mata a pessoa; corrói ela em perpetuidade. Antes a destruição total. Caso contrário, fica sempre algo inacabado para aquele que é ignorado; uma pendência que, muitas vezes com o passar do tempo, só aumento, ou, na melhor das hipóteses, cicatriza, mas deixa uma marca inesquecível. Outras vezes fazemos o mal por fazer, seja por descuido, seja por negligência, seja por falta de compromisso com o outro (esse outro pode ser tanto um amigo, um familiar, um inimigo ou um mero desconhecido). Até com pessoas queridas, cometemos bobagens e atrocidades. Parece instintivo causar assimetrias e distúrbios em qualquer tipo de relacionamento. Talvez isso, de alguma forma, contribua para reestruturar as relações, dando novo fôlego a ela ou abrindo novos caminhos para o que estar por vir – seja bom ou péssimo. Ao futuro cabe ler as cartas ou os búzios. – O fato indubitável é: temos um instinto cruel, num continuum de mais para menos e de menos para mais medido e dosado pelo espaço-tempo, intempéries do ser e conveniência. Não há dúvidas que em cada um de nós há um demônio que busca equilíbrio com uma santidade através de batalhas nada amigáveis – mas nada de demônios e santidades de acordo com os conceitos vulgares, cristãos, estabelecidos. Demônios e santidades aqui simplesmente entendidos como forças opostas que causam o equilíbrio (por meio do desequilíbrio; eis aí o paradoxo) entre as relações: ora fazer algo bom, ora fazer algo ruim. O problema está é justamente no ajuste individual em quando começar, dosar e parar o estar e ocorrer demônio ou santidade. Cada um leva uma carga maior de um em detrimento do outro, porém todos portam em si essa dicotomia conflituosa. Claro que isso não é sempre. Como disse, o espaço-tempo mais a conveniência do agora contribuem para relativizar essa lógica. Contudo, no geral, Sicrano tende a ser mais demônio que Beltrano em suas relações idiossincráticas. Isso não quer dizer que em situação W Sicrano não seja mais santidade que Beltrano. Conclusão: o domínio ou pelo menos o convívio harmônico entre essas forças é que fará de você uma pessoa mais amada que odiada ou mais temida e massacrada que cortejada e admirada.
              A quem a burrice nunca debruçou sobre a cama? Você conhece alguém que passa ao largo da estupidez e da falta de visão, perspectiva e sensatez? Creio que não. Volta e meia, emanamos alguma forma de burrice – estar burro é quando se comete alguma ação ou ato que traz prejuízo a outros e/ou a si sem deixar como saldo alguma espécie de benefício para si ou a terceiros, prejudicando a muitos ou a todos; ou ainda quando esse agente (o burro) simplesmente faz algo que prejudica apenas a si, além de não trazer benefício algum a terceiros. Em outras palavras, efeitos produzidos com intuito de barganhar vantagens e sucesso que simplesmente fracassa devido, sobretudo, à autoconfiança excessiva, subestimação dos obstáculos a se enfrentar, supervalorização do suposto potencial que possui, inexistência de autocrítica, obstinação inabalável, ausência de perspectivas, falta de estratégias, planos mal-elaborados e executados, ignorância em face de conselhos e advertências de outros. O burro sempre acha que pode tudo e um pouco mais. É um Super-homem ou uma Mulher Maravilha. Condenado à sua cegueira incólume, ele nunca desconfia que possa estar indo pro caminho errado e continua em sua empreitada com todo vigor. – Os efeitos produzidos pela burrice podem ser devastadores. Sobra no ambiente: constrangimento, aborrecimento, insatisfação, frustração, perda de confiança, respeito e credibilidade, baixaestima, rancor, raiva, ódio e até desprezo e indiferença tanto naquele que foi vítima do burro como no próprio burro. O clima fica feio e pesado. As relações ficam complicadíssimas e até insustentáveis. Burrice, portanto, pode até não matar, mas chega bem perto – isso quando não acontece uma tragédia magnânima recheada de sinistros, cadáveres. – Ela desmantela a vaidade de qualquer um, que não só fica de saiajusta, se encontra desarmado em zona de perigo, vulnerável a todo e qualquer tipo de retaliação. Isso sem falar na vítima, que perde, se não toda, boa parte de sua compreensão, compaixão, tolerância e paciência. O fim? Às vezes sim, às vezes muito perto disso.
               Quem nunca se deparou com a ignorância em alguma situação em que sua inteligência prática ou enciclopédica foi posta em xeque? Todos de novo, né? Isso é inevitável haja vista que Conhecimento é extremamente gigantesco, heterogêneo, mutante e eternamente elástico. Ninguém o acessa nem muito menos o detém por completo. Apenas frações dele são disponibilizadas de maneiras distintas a cada indivíduo, segundo sua realidade e conveniência, o qual possui seu inventário de conhecimentos único e inconfundível, confundindo-se com sua identidade e personalidade. Por isso que até o mais danado dos eruditos se aborrece mediante seu fracasso intelectual prático ou enciclopédico; coisa que não é apenas privilégio dos ditos e tidos como néscios, e estúpidos, e bárbaros.
               E quem jamais depositou certa quantidade de fé em algo ou alguém, de maneira até ingênua e inconsequente, e depois se sentiu lesado, ludibriado, enganado? Todos nós outra vez. Como a verdade é o convencimento e tendemos a acreditar naquilo que reforça as perspectivas de nosso inventário de desejos (acrescente aí sempre a vaidade e a conveniência), vira e mexe caímos no famoso conto da carochinha; claro, uns com mais frequências que outros. Isso detona qualquer um. E irrefutável é a pergunta: Como pude ser tão idiota a tal ponto? Sou mesmo um merda. Merecia era mais! Será? O certo é que para um talentoso sempre há outro ainda mais argucioso. O erro do enganador é achar que todos são bestas. Com isso, sua esperteza vai crescendo de um gatinho até um terrível Tiranossauro, que depois o engole. Mãodupla. Em algum agora somos as vítimas, em outro somos os algozes. Fato: lucrar na ingenuidade e boa-fé alheia parece fácil e muito prazeroso, deixando a falsa ideia que nunca se vai pagar pelo dano cometido. Puro engano. Por outro lado, é terrível se encontrar na desgraça daquele que é O Otário, mas o ditado popular é infalível, o mundo dá voltas. E nessa, sempre somos ora caças ora caçadores. Há esperteza, maldade e ingenuidade em todos nós.
          Alguém ainda não provou da inveja e usura? Muito provavelmente sim. Por reflexo, é comum sentirmos inveja de alguém que possui algo ou alguma qualidade que desejamos, e não detemos. É um sentimento que invade sem cerimônias. Basta se deparar com o objeto desejado e não obtido que logo se sente a inveja sobre aquele que o tem, e não o invejoso. A treva! Para o invejoso, o objeto desejado era para ser dele; é ele (e não mais alguém) o mais apto para tê-lo. Portanto, ele cria aversão e ojeriza em face daquele que supostamente tirou dele o seu bem, cerceando seu direito de posse e, por extensão, minando parte de seu inventário de desejos. Inevitavelmente, frustração, raiva, ódio, repúdio, indignação o controlam. O invejoso já não consegue perceber que toda e qualquer pessoa tem igual direito de possuir e usufruir de qualquer coisa com chances e oportunidades semelhantes a suas. Há espaço e vez para todos, só o invejoso que não vê isso com sua vaidade abalada. E o engraçado é que tanto podemos emanar a inveja para um ente querido, quanto para um inimigo ou ignorado, como para um desconhecido. Todos estão sujeitos à inveja e ao invejoso. Quanto à usura, ela anda abraçada com a inveja. Não esqueçamos que o que distingue um indivíduo de outros nas relações sociais é exatamente o quanto e como ele pode acessar o poder (econômico, político, cultural...) e, com ele, barganhar bens, obter vantagens, exercer influência, deliberar ordens, obtendo prestígio e status. Não é por descuido que quanto mais se tem mais se quer possuir. Acumular, juntar, agregar. Dividir jamais! Afinal, quem quer ser mais um entre tantos bilhões anônimos por aí? Pois é, a sorte está lançada – sorte ou estratégias de manutenção do sistema que marginaliza muitos, porém carrega poucos para o oásis dos abastados, Os Senhores e As Damas? – e o bolo está sobre a mesa. Quem tiver a maior espátula que arranque a maior fatia! O problema é ter a espátula...
                Qual aquele em que algum agora nunca sentiu vergonha de si ou de outrem, nunca se encontrou com a baixaestima e a depressão por motivos diversos? Todos. Motivos são muitos, contudo parece que o atual paradigma de estilo de vida ocidental(izado), o qual valoriza O Belo, Forte, Destemido, Criativoinovador, contribui para exaurir a pulsão do inventário de desejos de se expandir e se manifestar, causando baixaestima, sensação de fracasso e derrota, frustração outra vez e a inevitável depressão. Isso acaba por encaminhar o enfermo para os confins de sua introspectivade blindada, guarnecida de possíveis ataques externos – o difícil nessa fase é distinguir o que é de fato ataque de ajuda ou simplesmente experiência oriunda do incessante devir que é a vida! – E aí o bicho pega mesmo. Já fragilizado, o indivíduo Patinhofeio, num estado avançado de refúgio e exílio em si, acaba por desenvolver inúmeras patologias psiquicossociais, as quais o levam à morte em vida*.
            Quem não se curva vez por outra ou quase sempre a muitas convenções e leis sociais, à moral e à ética (ou a pelo menos parte delas), inibindo, podando, tapiando, adiando ou amenizando vontades vulcânicas de seu próprio ser, seja por temor, repressão, ignorância ou simples conveniência? Eu, você e ele. A todo momento, elementos que compõem e fazem a ordem e montam o maquinário da sociedade para que ela possa existir, sobreviver e autossuster-se abala, numa escala de forte a moderado e ao intenso, toda e qualquer pulsão por vida, consequentemente a manifestação da idiossincrasia por meio da manifestação do inventário de desejos. Infratores e colaboradores, todos nós somos de certa forma cidadãos e marginais ao mesmo tempo – diga-se de passagem que muitos não oscilam entre esses dois tipos, pois já foram localizados, escrutados, classificados e alojados no submundo do marginal.
                Há muitos outros problemas que poderiam ser apreciados neste texto, ampliando-o por mais 50 ou até cem páginas. Não, não faria isso nem com você nem comigo! Creio que o que foi abordado até o momento já dá uma dimensão do que é essa prisão sem muros: o nosso próprio ser, ou seja, a subjetividade, introspectividade e inconsciente que recheiam cada um de nós. Porém, a discussão não para por aqui, não.

III

                Compomos uma sociedade que valorizou e valoriza demasiadamente os Deuses, os super-heróis, os supra-humanos. Isso indica que mais que buscamos a perfeição, ambicionamo-na com afinco. Como ela é ideal, nunca a alcançamos; poucos, em fleches de agoras, a tangenciam. E ela continua sendo um horizonte querido com muitas e até todas as forças, o qual nunca chega; apenas se mostra ao longe nobre, solene, soberbo e indiferente. Portanto, já que não podemos ter a perfeição, forjamos o seu simulacro. Como tal, deve ser raro, sublime, insigne, notável e superior, não pode estar associada a qualquer um. Eis aí um dos porquês da construção dos supra-humanos. Por isso, não é gratuita a exibição, ostentação, o frenesi, a imitação, a idolatria frente gente singular: os ricos, os talentosos, os famosos, os poderosos, os belos, os excelsos. Logo, quem não deseja sair do anonimato e passar a fazer parte do rol das celebridades, provando de tudo que o mundo maravilhoso do-quem-pode-tudo? Não é à toa que existe jogo de azar, não é?
            Desde cedo, na infância, já começamos a criar a vontade de sermos diferentes. Na adolescência, esse desejo parece se radicalizar, explodindo em rebeldias e vontades que chocam, amedrontam e até trazem problemas. Chega a fase adulta e o desejo por se distinguir dos que estão a volta não cessa. Pelo contrário, ganha mais fôlego com a aquisição do conhecimento, a conquistas de bens e do direito legitimado de emitir ordem, emanar influência, causar carisma e inveja, ostentando prestígio e privilégios – nada mais que o acesso ao poder. – Por fim, O inventário de desejos convoca a Vaidade, que, acompanhada do Orgulho, ganha espaço, dimensão, forma, conteúdo, força e influência, passando a emitir vozes pelo indivíduo. Inevitavelmente, A Conveniência chama o Egoísmo, retrai a humildade e sufoca o altruísmo o máximo que puder. Irrompidas são a indiferença, intolerância, arrogância, soberba, sentimento de superioridade, sensação de inalcançável, de infalível e de intocável, nobreza. A insensibilidade reina plena. O egocentrismo passa a ser o caminho de tantos. E, inevitavelmente, a frustração vem forte, abraçada com a solidão. Daí o sucesso tem seu reflexo no espelho que sorri irônico e sarcástico: fracasso!
              Fracassados. Somos a derrota numa intensidade que varia de indivíduo a indivíduo, o qual, com mais talento ou mais tacanhice e mediocridade, disfarça a desgraça que faz brotar lágrimas ineolháveis de si. Felicidade? Utopia! Então, o jeito é simular, viver num teatro constante, no qual quem melhor finge, melhor vive. Ridículo.
              Tendemos unilateralmente a não ver a fraqueza, a derrota, a falha, o fracasso, a simplicidade com bons olhos. Pessoas frágeis, enfermas e deprimidas, então, são estigmatizadas. Inevitavelmente, vamos ao encontro da dissimulação. Como muitos não acreditam que podem aprender, amadurecer, se fortalecer, crescer através da dor, escondem seus pontos fracos e exaltam suas qualidades boas, super valorizando suas conquistas e vitórias. Talvez esteja aí uma das razões de muitos de nós possuirmos dificuldades de expor nossa intimidade, tronando-nos introspectivos, evitando o diálogo acolhedor, empurrando pro lado conselhos sábios. A ordem é esconder e fingir que tudo está bem. Pura aparência. Mentiras após mentiras. Somos fraudes diluídas nos discursos de verdade.
              Em consequência, surge o suicídio. Suicídio de fato, quando o indivíduo tira sua própria vida, e o suicídio em vida, quando o ser se refugia em si mesmo, se trancando, tendo aversão a muitas coisas do mundo externo. E a inter-relação fica abalada, a troca de informações e experiências se fragiliza, a amizade empobrece, o amor definha. Frustração, depressão, infelicidade, sensação de irrealização e incompletude inundam o indivíduo.
               No silêncio, muitos se sufocam. E a consciência pesa na culpa que ela exibe. Solidão, fracasso, ausência de amigos, família estilhaçada, insatisfação na vida profissional, angústias, medos, sensação de abandono e vazio, incertezas, vontade constante de fugir, falta de coragem e forças. Arrependimento vem só às vezes. O certo é o subjuntivo inquietante e irritante: e se eu pudesse... fizesse... Círculo vicioso, retroalimentador. Quanto mais se martiriza, mais doente se torna.

IV

                 Chegamos ao que foi afirmado no início desse texto: os nossos problemas – que são muitos e de variados gêneros, manifestados em nuances de formas, estados e intensidades – são os nossos predadores. É o nosso ser único a prisão sem muros – tudo aquilo que não nos agrada e não conseguimos nos desvencilhar – da qual nunca nos libertamos completamente, levando-nos ao conflito. Não é à toa que você leu várias vezes a palavra frustração aqui nesse texto.
                 Há um demônio em cada um de nós. Não o demônio de Dante ou dos cristãos, muçulmanos e judeus. Um outro demônio... O Demônio monstro que nos devora insaciavelmente a todo o agora. Em outras palavras, o mesmo monstro, A Coisa, que me perseguia e me devorou no sonho contado na primeira parte desse texto.
                Pare, pense, reflita. Tente alcançar o que é o drama. Você sabe que pode escapar de um lugar insalubre e terrível, onde só há sofrimento e dor, pois não há cercas, muros, paredes, fossas que impeçam a fuga. Mesmo assim você não escapa. Sabe por quê? Porque esse lugar hostil é seu ser. Essa prisão é o conflito hodierno que está na sua introspectividade, faz parte da sua identidade e personalidade; um universo forjado de dentro para fora e de fora para dentro, com seu auxílio e a vontade de terceiros.
               Ato contínuo, acredito que a única forma de se escapar dessa prisão sem muros é fazer algo extremamente difícil, quase impossível: reconhecer os erros e as falha de uma vida inteira; perdoar-se e perdoar; desejar ajuda; ansiar pela mudança; arquitetar a transformação; dar os primeiros passos, buscando a humildade, simplificando as coisas e o modo como leva a vida; treinar o altruísmo por meio da doação, ouvindo, escutando e assistindo ao outro, dando-lhe atenção e prestígio; exercitar o amor e a amizade todos os dias, sem cessar. A transformação vai demorar. Recaídas acontecerão. Vontade de desistir vai chegar. Porém, o certo não é fazer exatamente o certo; é almejá-lo, persegui-lo, fazendo por onde, marginalizando a modorra, a baixoestima e a perspectiva negativa. Perseverança. Persistir sempre na luta constante de se tornar alguém melhor para si e para o outro. As conquistas não tardarão a vir. Virão, sim, aos poucos, em dozes de recém-nascido, paulatinamente. E você conseguirá escapar da Coisa que governa o mundo desconhecido e enigmático do seu Inconsciente.

(*) Veja o texto O marginal é um desejo nosso, aqui mesmo neste blog.

Por Diógenes Silva. Salvador, 27 de novembro de 2010.







sábado, 13 de novembro de 2010

Cadê meu Blanc? [crônica]

Hoje já existe a triste resignação. Esperança já não tenho mais. Faz cerca de duas semanas que ele desapareceu. Nenhuma notícia. Apenas reinam a ignorância que perturba, a curiosidade inquieta que não cansa de perguntar o que pôde ter acontecido, especulações e a ausência que traz saudades...

Muitos dizem que ninguém não é insubstituível, a não ser nossas mães. Discordo em parte. Blanc também é insubstituível! Filho da tão linda e amada Broke Back, ele nasceu e cresceu aqui em casa. Acompanhei seu parto. Foi o último dos quatro filhotes; o único macho entre três fêmeas.

Caolho de nascença, era o mais lerdinho: o que menos mamava, aquele que apanhava de todos, o mais ingênuo. Possuía um temperamento tênue. Era extremamente manso, chegava a ser lerdo mesmo o bichinho em suas cores: amarelo-caramelo e o branco predominante – aí o porquê de seu nome Blanc.

Sem dúvidas, era mais um Pereira da Silva. Todos o amavam, principalmente quando minha mãe, em sua razão torpe, cometeu a loucura de jogar Broke Back fora, no mato mesmo, num local longe e desconhecido, abandonando a coitadinha à própria sorte com um barrigão prestes a vomitar gatinhos. Crueldade, mas uma maldade compreensível. Minha mãe é uma pessoa ignorante. Age muitas vezes por instinto e impulso. Vendo a casa encher de gatos, a primeira coisa que fez foi se desfazer de todos, um por um, a começar por aquela que gerou a todos. Todos os gatos foram jogados fora ou dados, menos Blanc, o único macho.

Reinando sozinho em casa, Blanc era nossa diversão. Com suas travessuras de felino, nos fazia rir. Ficávamos encantados com seus jeitos e trejeitos, além das manhas, caprichos, esquisitices. Muitos mimos. Era adorável.

Logo, veio a fase adulta. Ganhou a rua... Ia atrás das gatas. E a cada saída dele, voltava sujo, ferido, acabado. Deu foi muito trabalho pr’a gente.

Lembro como hoje a primeira vez que Blanc ficou 24h sem dar os bigodes em casa. Todos aqui inquietos: Cadê Doquinha? Doca ainda não apareceu hoje. Onde ele está? – Doca era como os demais daqui de casa chamavam Blanc. Como ninguém sabia pronunciar seu nome em francês, o renomearam carinhosamente de Doca devido ser caolho, lerdinho e muito manso. – Ficávamos todos preocupados, mas, pro nosso alívio, ele retornou logo cedinho no outro dia. E, assim, isso se tornou rotina: todas as noites ele passava fora de casa e, provavelmente quando encontrava alguma gata no cio, só voltava depois de um dia. Nunca ultrapassou essa marca. Era contado. Completava 24h, ele reaparecia faminto e miador.

Um dia tudo mudou... Doca ou Blanc saiu como de costume, e não mais voltou. Procuramos onde pudemos. Nada! Provavelmente, ele foi morto por algum gatocida inconsequnte, envenenado, atropelado, sei lá. O fato é que ele sumiu sem deixar vestígios. Duvido que alguém o sequestrou porque, apesar de ser bem cuidado, ele só andava acabado, cheio de arranhões e algumas feridas devido suas saídas. Creio mesmo que ele já está morto.

Quantas foram as vezes que acordei na esperança de rever meu Blanc na porta de casa! Pensava nele várias vezes, me perguntando o que teria acontecido, onde ele estava e por onde passou pela última vez. O que queria mesmo era reencontrar meu gatinho, pegar, colocar em meu colo, fazer cafuné, mas, a cada dia que se passava, eu já começava a aceitar qualquer resposta; até a de que ele de fato estava morto.

Um dia, acordei assustado e muito triste. Tinha sonhado que eu havia encontrado cadáver de Doca em decomposição no quintal. Dias depois, sonhei outra vez com ele. Sonho bom. Levantava e o via quietinho no canto da cozinha. Alisava meu Branquinho. Acordei com uma saudade imensa de meu filhote...

Uma sensação de vazio me preenchia. E a vontade de obter uma resposta só crescia. Queria ao menos encontrar o seu corpo. Agora sei como é a dor de quem perde um ente querido. Sei por quais sensações deitam aqueles que possuem um desaparecido em sua família.

Indubitavelmente, a dor provocada pela ignorância e dúvidas chega a ser maior do que a dor da perda certa, aquela em que você tem a certeza do que ocorreu, pois você enterrou quem amava, dando o último adeus e prestando as derradeiras homenagens. O Fim finalmente. Contudo, eu (e muitos por aí) não tive esse direito. Cassado foi esse privilégio de mim. A última lágrima foi roubada junto com o taco que se foi de mim, restando apenas uma ferida crônica.

Não sei se é por burrice ou por descuido, só sei da pior forma que acabamos por descobrir o quanto gostamos do ser amado e a importância que ele tem pra nós em nossas vidas justamente no agora em que o perdemos. No agora em que não dá mais pra se arrepender de alguma coisa, voltar atrás, fazer tudo que se queria, e não se fez. Por isso, demonstrar o que sentimos de bom a alguém é mais válido enquanto ele ainda está entre nós, porque depois restam muita impotência e o subjuntivo: e se eu tivesse... Terrível!


Adicionar legenda
 Blanc ou Doca nos surpreendeu até no seu adeus mudo. Única lembrança da querida Brokeke, sua ausência me remodela e a saudade que ele me legou me faz ter mais apego, cuidado, atenção e amor com aqueles que nos fazem rir e chorar nas instâncias do Amor. Amar é bom; até mesmo quando as lágrimas são cegas.



Diógenes Pereira. Salvador, BA 03/11/2010

sábado, 2 de outubro de 2010

Há tempos imemoráveis (CONTO CURTO)


No início, mas bem no comecinho mesmo, só existiam criaturinhas extraordinariamente minúsculas habitando todo o oceano vasto, profundo e hostil. Elas, cheias de energia, não paravam quietas. E cada vez mais se multiplicavam incessantemente em cópias... Todas praticamente iguais e perfeitas em plena harmonia e paz. Quase todas!

Entre elas, se destacavam apenas duas: Itaparica e Itapuã, que possuíam beleza incomum. Difícil era achar quem não se rendia a tanta graciosidade! Contudo, a dupla não se conteve mediante tanto sucesso e se inflou na sua própria vaidade. Arrogância, Soberba, Indiferença domaram o seu ser por completo. Em pouco tempo, elas passaram a se isolar das demais, porque tinham a certeza ignorante de serem melhores e superiores a qualquer uma que fosse. E isso as conduzia a práticas detestáveis: zombavam e desdenhavam das outras criaturas, as humilhando escrachadamente.

O clima desagradável ficou insuportável. Irritadas, as demais criaturinhas tomaram uma atitude radical: isolar por completo Itaparica e Itapuã, que passaram a viver em exílio. Consequência: nasce o Rancor, o Ódio e a vontade desenfreada de Vingança.

Enfurecidas, Itaparica e Itapuã planejam um plano mesquinho e vil. Já que aquelas sem-noção não desejam mais nossa presença, vamos dar a elas o que elas merecem! O mundo será só nosso. Faremos dele um lugar onde só tenham criaturas como nós. A beleza vai reinar, e elas desaparecer!

De forma exageradamente humilde, Itaparica e Itapuã voltaram para as outras criaturinhas. Pediram desculpas. Clamaram para serem perdoadas e aceitas outra vez. E como prova de seu sincero arrependimento, convidaram todas para irem a um lugar lindo, novo e desconhecido, onde estaria uma grande e maravilhosa surpresa. Todo mundo acreditou e, ingenuamente, foram felizes, transbordando de carinho, amor e expectativas...

Itaparica e Itapuã, pediram que todas fossem na frente, porque precisam resolver algumas coisinhas antes para que a surpresa ficasse realmente fantástica. Assim que todas foram para grande fossa, onde havia um vulcão faminto, do alto, Itaparica e Itapuã empurraram uma gigantesca pedra que caiu sobre todas as criaturinhas que estavam lá em baixo. Não houve sequer uma sobrevivente. Todas morreram engolidas pelo vulcão.

Finalmente sós, Itaparica e Itapuã deram continuidade ao plano. Começaram a se reproduzir infinitamente. Entretanto, um dia elas desfizeram a união. Uma achava que era mais bela e melhor que a outra. Pararam de se reproduzir em reciprocidade. Passaram a se automultiplicar. Esse foi o grande erro. Cada vez que faziam cópia de si, a cópia não era perfeita. Imperfeições foram surgindo nos descendentes. As novas criaturinhas que nasciam eram frágeis, possuíam características cada vez mais estranhas e diferentes das de Itaparica e Itapuã. Até que quando surgiam, eram belas e formosas, mas, à medida que o tempo passava, elas iam se enfraquecendo, perdendo beleza, envelheciam e morriam murchas.

Sem saber, Itaparica e Itapuã introduziram a Velhice, a Doença e a Morte até então inexistentes no mundo. Esse foi o saldo que tiveram por desejar perpetuar um padrão de beleza e existência, ignorando a permuta saudável e necessária entre dois indivíduos.

Desde a época de Itaparica e Itapuã até hoje, todo ser vivo nasce belo, cresce forte e cheio de energia, mas o tempo vai lhe roubando a vida, trazendo doenças, envelhecendo e, por fim, a morte.

Itaparica e Itapuã só existem em nós enquanto há juventude! Depois disso, só nos resta usufruir as consequências de uma grande burrice e maldade inicial, ocorridas em tempos imemoráveis...



Diógenes Pereira. Ssa-ba, 24.09.2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

CAI NOITE, SURGEM BRILHOS! [crônica]

Muita gente vive dizendo que domingo à noite não tem nada que fazer a não ser ver TV e esperar melancolicamente a chata segundafeira de trabalho e/ou estudos. Puro engano!

Euzinho aqui tava acabado do sábado de regue e da tarde praiesca de domingo; quase indo pra casa. Então, um amigo muito bem intencionado (risos), me chama pra ir conhecer um lugar nada convencional na Periferia efervescentemente criativa e sensual de Salvador: São Caetano!

Início de noite. Saímos do Porto da Barra e fomos direto pro GS Bar, no Largo da Geral, São Caetano, terra de Xandinho. Barzinho simples no primeiro andar de um prédio construído sobre a orientação da sabedoria dos engenheiro sem diploma (os pedreiro), que predominam e dominam as laje e os puxadinho das periferia. De início, vazio e tímido. Logo, chegam gente e gentes. Deu de tudo: homem, mulher, ladrão, bofinho, bichinha, intelectual e nós. A zoada toma conta do ambiente. Mesmo assim, o show se inicia com a voz massa dum negão, acompanhado dum violãozin rouco dum magrelão... E entre alguns goles, rimos, gargalhamos, olhamos, fomos notados. Como um amigo meu sempre diz, o lugar é bafo!

Quando a noite já tava quase visitando a madrugada, começa o espetáculo feijoada da casa! Entra uma bicha esquisitérrima, magra que só ela, com seu olhar soberbo desnudador, e anuncia a entrada da primeira Drag Queen.

Linda, toda montada em seu look negro touchscreen, rastejando pelo chão, sendo puxada a correntes prum negão saradééérrrimo, ela vai até o palco. Nele, agaaarrra o microfone como se aquilo fosse algo tão inato como é pros gatos cagar e enterrar a sua bosta. A mulé cantou (melhor, dublou) performaticamente bafônica! Mesmo apresentando as curvas dos 40 anos, escandalizou a plateia com seu retorcer de bunda, pernas, coxas, braços e pescoço, jogo de olhares, atiçar de beços! Ela foi mais que um simples simulacro de Beyoncé; era toda Bioncê, se é que você me alcança, né, Dear?!

Mal tentava me recuperar do drama, chega outra ainda mais Shine in sexy! Uma verdadeira Lady Gaga aloirada em sua magreza sensual. Uma mulher! Travesti que um dia será transexual, basta rolar grana. Não tinha um único olho que não a lambia ávido! Ela era todinha wonderfull... Sonho de consumo de qualquer machão, seja homem, seja Maria Sapatão. Mas beleza à parte, ela mostrou pra que estava lá. Bate cabelo, ela barbarizou sobre o palco, que se tornou mesinha diante do salto 15 cm! Encantou a todos. Rancou de nós o que tanto queria: submissão diante de tanta beleza e ousadia. A traveca fedia deliciosamente a sexo. Irritava luxuriosamente nossa imaginação. Aí já sabe, né! Não teve uma calça e bermuda sequer que ficasse quietinha...

Pra finalizar a noite, volta à cena do GS Bar outro transformista. Saída de Valéria, a bichinha nos convidou a metralhar ela de risos... Era a personificação do burlesco! Toda montada no look Brega Oncinha mais Peruca Cabana de Praia de Piatã, lá vai ela se sentindo Toda-Toda, A Bala que matou o presidente Kennedy, com sua maquiagem La Petite Mort. Assim, tronchinha e desajeitada, tentava dar vida a uma personagem indecifrável por si só. Babado! Uma outra Tiririca! Escolha perfeita para fechar nossa noite!

E assim, depois de nos encantarmos, nos excitarmos e nos deleitarmos sobre o tapete do belo, a mesa do prazer e a cama do cômico, acaba nossa noite já na madrugada da temida segundafeira! Satisfeito, retorno pra casa pensando que Deus de fato é maravilhoso. Como eu poderia morrer sem conhecer o GS Bar?! Mais uma experiência daquelas que a gente nunca esquece porque está mais que registrada na mente, foi anexada ao ser que me construo e sou montado a cada dia.
Bafo!

Diógenes Pereira. Salvador, 16 de setembro de 2010.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

NA BASE DO SUSTO [CRÔNICA]

Como de costume, cheguei cedo na escola, saudei a todos, peguei o jornal do dia, me sentei no sofá, cruzei as pernas e mergulhei no discurso informativo. Compenetrado, lia detidamente página por página do diário, selecionando aquilo que reclamava minha atenção imediata. Estava quase que indiferente ao mundo circunvizinho. Quase!

Entre gritos e muitas outras algazarras de alunos passantes pelo corredor, um menino de seus 12 anos entrou na sala dos professores escoltado pelo vice-diretor esbaforido, extremamente exaltado. Falava alto, repetidas vezes, sem cessar entre soluços e lágrimas: Eu vô pegá eles! Vô mandá os cara lá matá eles tudo. Eles vai vê. Vô mandá matá. Vô, sim! Na base do susto, mediante aquela cena no mínimo incômoda, fui atirado involuntariamente no problema. Comecei a assistir tudo atentamente. Grudei os’ói e os’ovido no garoto.

Curioso, logo quis saber o que havia ocorrido. Sem perder um detalhe, escutava o resumo dos fatos. O menino foi vítima de violência física (bullying) de colegas mais velhos que ele, os quais queriam tomar seu boné. Inconformado, ele só deseja vingança. Vingança através de morte! E quanto mais os educadores tentavam acalmá-lo de forma repressivamente inadequada, mostrando-lhe que aquela forma de pensar dele era inaceitável, mais ele repetia a única coisa que acreditava cega e inconsequentemente ser justiça: mandar matar o quanto antes.

Podia mais que enxergar o ódio no garoto, eu sentia sua ira esbarrar e ameaçar a paz – se é que ela já existiu, existe ou poderá existir! – Seu semblante denunciava a falta de consciência e respeito pela vida. Ao passo que minha face vomitava desaprovação, choque, torpor, horror, agonia, indigestão. Me perguntava indignado e perplexo como um jovem poderia estar tão contaminado pelo ódio e violência. O que seria dele? No que ele estava se transformando? O que seria de nós? Como toleramos esse atentado contra um ser que ainda está provando de suas primeiras experiências e moldando sua base? Irrefutavelmente, era levado pelas circunstâncias a prever mais um cruel marginal em formação diante de mim! O fracasso da humanidade estava em minha frente. Tive medo. A vontade era abandonar tudo, fugir, me refugiar. Aonde ir? Não sabia. Para onde se vá, haverá outro como esse rapazinho e piores. Seria a condenação? Não. Esperança é que nem viado guloso, vai longe por um bofe!

É certo: à mediada que ingeria aquilo, mais assustado eu ficava! Mesmo assim, não desgrudava a atenção no garoto. Ele percebia que eu o perseguia. Contudo, não havia intimidação nele; apenas arrogância, soberba, destemor, incredulidade e a certeza de impunidade. Afinal, menor pode tudo no Brasil, e quem morre que prede a vida infelizmente. Também não deixei que percebesse minha fraqueza. Não podia nem queria me entregar. Sabia que eu poderia fazer algo. Resolvi construir a diferença. Afastei a arrogância, o orgulho e a indiferença e enfrentei o mostro que todos nós (de muitas formas, seja por omissão ou ação) criamos nos outros e em nós mesmos. Busquei forças nos desejos e sonhos, apelei pro amor e enfrentei o problemão.

Perguntei o nome do garoto. Chamei-o serenamente para perto de mim. Disse quem eu era brevemente. Em seguida, quis saber sinceramente do que ele gostava, com quê ele se divertia, quais as coisas que desejava e sonhava. Precisava encontrar uma forma de lograr a atenção e aprovação dele. O menino precisava ver em mim um amigo, e, não, mais um que queria reprimi-lo. Ele tinha que ficar à vontade. O caminho que escolhi para isso foi conhecer e entender o mundo dele.

Assim que obtive as informações necessárias, comecei a trabalhar o imaginário de desejos do garoto. Ele havia me dito que queria ser um grande capoeirista. Em resposta, disse a ele que capoeiristas bons podem ir morar fora do país, ganhar muito dinheiro, ser conhecido e reconhecido, fazer sucesso com mulheres, conhecer o mundo, ter e provar de muita coisa. O menino esboçou sorrisos e risos em face de um mundo de oportunidades que brotava diante de si.

(Peço desculpa pela minha cretinice. Sou um dos primeiros a levantar voz contra a idealização de um mundo maravilhoso fora de nossa realidade brasileira, ao acúmulo de capital exagerado, sucesso e prestígio exacerbados, machismo e fome incessante pelo novo e diferente. Entretanto, fui demasiado frágil e me deixei levar pelo caminho mais fácil. De forma sutil e também diferente, acabei contribuindo para o fomento de algumas coisas que tento negar. Acho que o medo, a situação de emergência, que exigia atitudes rápidas, e a passagem da prática para experiência – em minha inexperiência –, relaxaram minha crítica, argúcia, inteligência, sensibilidade, me conduzindo ao erro. Certo que um erro que estava tentando corrigir outro – óia a ironia!)

Aproveitei a animação do garoto e sua confiança em mim pra lhe dizer, de outra forma (uma menos agressiva) que a maneira como ele estava encarando a infração de seus colegas era inaceitável, sim. Inconcebível não apenas porque era a potencialização da bestialidade em face do outro, mas igualmente um atentado à sua própria vida! Ato contínuo, quis saber se ele gostaria de perder alguma pessoa que ama, como sua mãe, seu pai e sua irmã, se tornando órfão e indo morar com estranhos num lar que não é Lar: o orfanato. Resposta: não. Continuei. Abri os olhos dele para outra possível consequência da besteira que ele queria fazer. Assim como ele tem pessoas que se importam com ele e podem fazer o trabalho pútrido para ele, os garotos que desejava ver morto também teriam. Inevitavelmente, ele seria um dos responsáveis por um terrível conflito na Valéria, uma chacina, que demoraria a cessar. Você quer ser o ser da guerra, do sangue derramado e da morte? Não. Lhe perguntei secamente se ele era marginal-vagabundo-delinquente. Resposta: não. Você deseja conviver entre forasdalei, passar anos de sua vida num presídio insalubre e massacrante? Ele não titubeou. Disse, com cabeça baixa e voz tímida, que não. Então aproveitei a chance e dei o último golpe; não o de misericórdia, mas o de fraternidade.

Se você quiser ser um grande capoeirista e usufruir de muitas coisas boas do mundo, sendo uma pessoa de bem, precisa tirar essas coisas da cabeça, se dedicar aos estudos e batalhar muito por aquilo que tanto quer. Você é jovem, bonito, saudável. Existem muitas pessoas que se importam com você, que querem ver seu sucesso. Eu sou uma delas! Não decepcione eles, nem eu, nem a si mesmo. São as coisas que você faz hoje que conduzirão você a apenas um caminho: ou o da glória e do sucesso daqueles que ousam amar incondicionalmente, ou o da marginalização, criminalidade, ódio e instabilidade dos que agarram a violência. A escolha também é sua. Agora que está calmo, pense mais um pouquinho. Acredito em você. Sei que vai fazer a coisa certa.

Apertei a mão do garoto olhando bem nos dele, o saudei e fui embora pensando por mais algumas horas naquilo tudo. Acho que fiz minha parte; pelo menos um pouquinho. Certo alívio. Afinal, meu dia apenas estava começando... E que começo, heim?

Dió. Salvador-ba, 21 de julho de 2010.

domingo, 18 de julho de 2010

PROPOSTA INDECENTE [CONTO CURTO]

            Depois de um baba com amigos, todos resolveram passar na casa de Jorge. Jorge era um cara muito popular no bairro. Conhecia muita gente, falava com deus e mundo. E sempre tinha novidades lá na casa dele.
            Jorge nos recebeu com muita animação, como era de costume. Entre palhaçadas e papo-reto, Jorge ia mostrando pra gente o que ele havia trazido da última viagem que fizera a São Paulo: celular, microcomputador, câmera digital, Tv de plasma; tudo de última geração. Todo mundo estava muito animado com aquilo tudo. Afinal, era novidade pra todos. Realidade que estava bem distante da nossa. Contudo, a grande surpresa vinha por aí.
            Jorge, percebendo que todos estavam eufóricos com suas novidades, foi no quarto dos fundos e voltou com um pequeno embrulho. Quando abriu, nos mostrou umas pedrinhas esbranquiçadas. Deu o nome de Crystal pra elas. Falou que o crystal deixava a gente muito bem. Mentira! Eu tinha visto na TV que aquela coisa era uma droga pior que o crack, que viciava rapidão, acabando com o usuário. Pulei fora na hora. Droga comigo não rola de jeito nenhum! Minha onda é bater meu baba, estudar e trocar uns beijinhos com as pire. Quero ter muita história boa pra contar ainda. E pra isso, tenho que ter saúde. Com droga, não se vive. Fico esperto. Ninguém me engana. Sempre digo não às drogas!

Dió. Ssa-ba, 18 de julho de 2010.

MORTE DA VIUVINHA [CRÔNICA]



            Tomei banho rápido, vesti roupas num tapa, comi bem ligeiro, escovei dentes num instante, saí picado de casa. Desci o laderão do fimdelinha vuado e subi o da Fazenda Grande no pique!  Pronto, já tava no outro fimdelinha a espera do busão. Fiz tudo economizando um tempo retado. Afinal, era O Jogo do Brasil das Oitavas de Final na Copa da África – imperdííível. -– Precisava chegar na Barra antes do espetrácu começar. Eis aí o motivo, a razão, o porquê de tanta pressa!
            Como fiz tudo bem ligeirin, acho que tive queda de pressão. Logo que sentei no banco da pracinha, comecei a ficar meio tonto e lerdo. Nem enxergava direito – também, além de míope, porto astigmatismo. Não se deve esperar muito dum indivíduo assim, né? – Sei que a cabeça tava devagarzinha pra variar, com pensamentos bobos, meio que pairado num espaço-tempo maconha. Sabe quando você fica Caetano Veloso na marcha ré num dia de chuva bem forte sem ver nadinha? Pois é, é por aí mesmo... Só sei que via o mundo além dos’ói num outro jeitinho.
            Entre uma caminhada e outra pela minha introspectividade buliçosamente maresia, senti uma pancadinha minúscula na coxa esquerda. Foi instintivo. Passei a mão com rapidez e brutalidade a fim de arrancar aquilo que invadiu o território de meu ser (naquele momento privado, restritíssimo). Prak! No chão. Curiosidade logo chamou os’ói. Botei minha vigília completééérrima sobre aquilo que havia me incomodado. Surpresa: não era aquele, e, sim, aquela, a viuvinha.
            Bizoiei um bocadin. A bichinha ainda tava viva apesar da agressividade de minha ignorância e da bestialidade de minha intolerância – sem citar a cretinice da conveniência. Babado! – Fiz como criança, peguei logo o animal e coloquei sobre a palmadamão carrasca. A viuvinha me olhava indiferente. Nem passava em si que eu era o responsável de sua desgraça. Ela tentava apenas se recompor da violência sofrida, retomar as forças e sair voando no seu voo suicida. Labor em vão. Assisti, por alguns minutos, como a morte lentamente ia ganhando da vida.
Primeiro, as asas da viuvinha começaram a parar de se mover. Segundo: as patas dela foram perdendo aderência sobre minha palmadamão. Ela ia cambaleando, sem estabilidade até não se aguentar mais em pé. Despencou sem cerimônia. Por fim, as patinhas da coitada começaram a recuar. A viuvinha encolheu todinha pra dentro. Cessou todo e qualquer movimento. O silêncio era o anúncio irrefutável de que não havia mais vida ali. Morte, simplesmente Morte.
Engoli no seco. Assassino! Tinha acabado de matar uma viuvinha inocente. Uma torrente de culpa me invadiu. Fui dominado pela compaixão. Senti tanta pena da criatura. Sentia a dor duma perda. Era menos uma vida que deixava de idiossincratizar a existência. E toda a culpa era minha. Aquele serzinho havia arrebatado mais que minha simpatia. Só me restava a confortante imagem de uma viuvinha livre e a execução de um funeral digno para ela. Lágrimas na consciência...
Sabe aqueles raros momentos em que você fica bem sensível, repleto de benignidade, altruísmo e até amor? Era o dia. O cruzar entre eu e a viuvinha trouxe o fim para ela e o reiniciar pa mim. Como nada é gratuito, creio que o sacrifício do animal foi uma forma através da qual a Ocorrência achou para me abrir os poros de fome por vida outra vez. Triste alegoria em sua beleza terreal.
Por dias, lembrava daquela situação em detalhes e nuances inéditos, entupidos de significados vários. A partir dali, minha história passou a ser contada sobre a marca temporal A.V. e D.V. (Antes da Viuvinha e Depois da Viuvinha). E que outros encontros se façam!

Dió. Salvador, 18 de julho de 2010. 

quinta-feira, 17 de junho de 2010

SOBRE A FRAGILIDADE DE OSSOS [POEMA]

Não há vez para arbítrio livre
Aceitas já são ordens em detrimento da conveniência
Vontades são outras
Arrogância quer buscar além de sua beleza
Não dá mais para tolerar o conhecido e o reconhecível
São claras as regras
Voz deve ir, e não pode voltar sem retorno
Algo inigualável e coisa sublime precisa trazer consigo
A estirpe requerida não é nobreza
É mais: sensibilidade que saiba transgredir
Se nota aí o porquê de tanta dificuldade com incumbência lançada
Não é a qualquer um que modificador desse porte se faz respiração
A espera é longa e ainda pode durar mais
Paciência não casou com eternidade
Idade já pede companhia
Basta de sonhos vadios
Necessidades inéditas exigem outras extravagâncias
A ambição que se firma em mim não tem pernas
Ela desliza ampla
E excitada pela introspectividade devassa
Aspira domínio de si em outrem
Vastidão a se encher continuidade:
Fluxos, mais que meras experiências.
Agora sou posse à mercê de Senhor
Prêmio exposto sob as vestes do ócio
Sobre a fragilidade de ossos, finco residência
Renunciando liberdade de expansão, me torno limites.

Dió. Salvador-ba, 13 de agosto de 2009, às 22h e 24min.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

De olhos abertos [poema]

Depois dum dia cheio e estressante
Finalmente chegou a Noite
Com ela, o sono deitou sobre o cansaço
E me levou pra outros lugares...


Vastos campos onde a Natureza era cortesã luxuriosa de si
Embriagada de Beleza, expelia formosura:
Fabulosos jardins, fontes fantásticas,
cercas de montanhas sempre-vivas
Pássaros cantores e árvores dançarinas
Não existia fim. Tudo era gigantesco e belo
E os olhos corriam alegres
Eram meninos levados outra vez

O ar não pesava, gostoso de respirar
Sem calor nem frio, o espírito se acalmava
Em outro tempo que não conhecia pressa
E paz entrava vitoriosa e triunfante no satisfeito vencido
Era o paraíso? Não. Ainda não
Era apenas uma amostra de parte do que
Os desejos manifestados em realização
Podem desfrutar àquele que Ousa
E lá estava Ele sob a proteção da varanda de sua mansão
Que espécime humano! Causava inveja benigna a qualquer um
Pois Ele não era qualquer um
Era a materialização da Conquista em sua melhor forma e aparência

Aí veio a manhã
O Sol fazia dengo no meu rosto
Me trazendo outra vida
Logo tive um assalto de sorriso e risos soltos, livres, travessos
Tudo tinha sido sonho...
Como é maravilhoso sonhar!
E que venham as noites com seus sonhos
Mesmo quando ainda for dia

Diógenes Pereira da Silva. Salvador-ba, 10 de junho de 2010.