quinta-feira, 10 de junho de 2010

A MENINA DOS'ÓI [CONTO]

Foi outra a vez, muito anterior a nossa – num momento tão longínquo que mente nem coragem nem capacidade tem de tentar tangenciá-lo –, tudo era tão absurdamente diferente do que há... Eram outros Universos em Dimensão outra regida por diretrizes próprias e singulares. Nesses Universos, não eram três, e, sim, duas as dimensões onde o que dominava era a Antimatéria em face da Matéria. Leis Físicas totalmente divergentes e até esquisitas para os padrões conhecidos. Espaço-tempo em distinta razão. Formas, densidades, forças, interações totalmente estranhas. Os corpos celestes que havia lá também possuíam sua inusitez juntamente com os seres que os criaram, governavam, cuidavam, visitavam e habitavam, numa correlação de poder que fugia, muitas vezes, à nossa idiossincrasia – mas não totalmente.


Num desses Universos, o Ente então poderoso foi Permissibilidade, que dava ou não sua aquiescência a tudo, tornando algo possível ou impossível de ocorrer. Tudo em sua perfeita ordem. Nada transgredia alguma lei. Uma coisa, contudo, foi demasiada desgastante para sapiência, governança e paciência do eminente líder: a relação explosivo-corrosiva que envolvia as entidades Beleza e Pujança, de um lado, e Vaidade, do outro.

Pujança e Beleza, admiradas por vários, se estimavam infinitamente ao ponto de suscitar muitas sensações agradáveis em muitos, menos em Vaidade – e alguns outros –, que as detestava petrificadamente. A união delas produzia prazer, instituía paz e trazia bem-estar. A Alegria se alargava ao encontrá-las e Felicidade se animava ao observá-las em trocas de carrinhos e cuidados. Vaidade, por outro lado, em máximo mal-estar, empreitava, conjunturada com a Inveja, a Raiva, o Rancor e o Ódio – e mais alguns –, o desmantelamento daquela união. Ela não aceitava de hipótese alguma que Beleza e Pujança se curtissem em permutas, detendo atenção de todos e (pior!) sendo responsáveis por criar, nos outros, o que só a ela era de direito a realização – assim ela pensava obtusamente. – Vaidade desejava de forma obstinada ser a única em potente manifestação de Prazer, de Completude, de Satisfação. Não poderia haver outra, jamais! Imagine a união de dois em um, nunca!!! Isso lhe tornava possessa. A Loucura lhe fazia visitas constantes; já a Ponderação lhe havia abandonado de vez. O conflito era fato em ação nervosa e exponencialmente agigantante. O equilíbrio de toda Existência era abalo. A Harmonia foi adormecida, e, em seu lugar, surgiu a razão bipolar entre todos: aqueles que apoiavam o relacionamento entre Beleza e Pujança, e aqueles outros que o condenavam. Ninguém escapava da mudança incômoda de suas rotinas após o advento da nova Realidade que os envolvia, atravessava e desgastava. Inevitavelmente, Permissibilidade, sem descanso, era procurada ora por Beleza, ora por Pujança, ora por ambas, ora por Vaidade, ora por outro, ora por muitos, que levavam suas queixas elucidadas e argumentadas sobre seus porquês. Sem dúvidas, algo deveria ser feito logo para se retornar à normalidade.

Permissibilidade, então, decidiu reunir todos em uma inédita assembléia geral, na qual se ouviram ambas as partes, com critérios, normas, deveres e direitos afins, de modo que daí se extraísse uma sentença justa e satisfatória para dar término a todo problema e restaurar a ordem perdida. E assim foi. Cada lado lançou mão de artífices dos mais criativos e contornativos que puderam forjar meticulosamente sob a frieza do planejamento ou sobre sede escaldante da improvisação, com o desígnio de sustentar suas posições e convencer a todos acerca de suas respectivas veracidades, logrando, assim, os voto que consagrariam apenas uma das partes, punindo exemplar e severamente a outra.

Foi um embate ferrenho, nervoso, exaltado, violento, emocionante, excitante, longo, exaustivo, de mestres, de gigantes, inesquecível, marcante! Envolveu todos. Muitas coisas foram levantadas, vários pontos foram expostos. Muitos falaram. Provas foram abundâncias oriundas de cada lado. O público ficou balançado, o júri dividido. Cabia a cada uma das partes dar seu último lance. Não fizemos nada de errado. Não limitamos ou cerceamos o direito de alguém nem diminuímos ou eximimos os deveres de quem quer que fosse, muito menos os nossos. Apenas nos desejamos em mútua liberdade e correspondência, cônscias, exportando sanidade, sem o fim de ofender a quem quer que fosse. Qual o mal em ter a vontade de ter alguém perto, em carinho, com cuidados? Será que devemos ser condenadas por simplesmente termos tido o pleno desejo espontânea de se completar e se ampliar nas experiências do próximo, apenas o querendo bem? Inferia inflamada de emoção Beleza; à qual Pujança completa firme de si. Se alguém aqui nunca teve um desejo, uma vontade, um sonho, um simples capricho que fosse (não existindo algum tipo de maldade neles) e não os quis transportar do ficcional para o manifestado, se erga agora mesmo e brade a voz. Aponte-nos como mentirosas, excitadoras do caos ditador e desmedido. Breve pausa e profundo silêncio. Ouvem? Não. Não ouvimos coisa alguma porque todos os senhores e as senhoras são nossos companheiros e nossas companheiras em cumplicidade. Se o que fizemos é contra lei, então nós todos aqui, sem exceção, nesta solene congregação, estamos condenados à culpa dos traidores, dos usurpadores, dos corruptos, dos desonestos, dos marginais, e não deve haver alguma faísca de compaixão para conosco. Mas não os somos. Somos, eu e Beleza, apenas aquelas que tiveram a coragem de ousar e dar continuidade ao Devir que nunca se estagna e busca sempre a metamorfose através de arranjos e rearrumações. Todos nós nada mais somos que um pouquinho de cada um reunido de forma distinta e manifestada de maneira única, precisando se alimentar constantemente da vivência do outro, dos outros. E é isso que fazemos a cada instante em que nos cumprimentamos, nos relacionamos, nos encontramos, nos debatemos, como o é caso agora. Experiências nos permeiam, nos nutrem, nos sustentam, nos constroem. Não nos condenem por sermos sinceros no que de natural é a todos nós: a Ânsia de conhecer, provar, expandir-se. Não levem consigo acre Culpa da má-interpretação e da Injustiça. Lembrem-se: temos de igual justamente nossas diferenças e necessidades. Eu e Beleza estamos em todos e todos aqui estão em nós. Nos ferindo, estarão ferindo a si. Ponderem. Se permitam à análise detida e cuidadosa. Todos os senhores e senhoras são sábios e sábias, estão ao alcance pleno da compreensão e concepção do que foi e está sendo o que dispensamos uma a outra. Nunca fizemos mal algum a alguém. Não tornem o fruto saudável um veneno forçosamente amargurado de sua desgraça gratuita. Cabe aos senhores e senhoras decidirem se haverá pranto mudo ou lagrimes de riso. Já não há mais palavras para descrever nossa inocência. Que ocorra o que deve haver. Nada é gratuito. Se assim está sendo, assim o fazemos e dessa forma será, em breve, passado. Outro silêncio se fez, mais longo que o primeiro. Emoção foi o que dominava. E a vez foi passada para Vaidade. Confesso que as nobres e doces palavras de minhas colegas conseguiram arrancar lágrimas sofridas de meu humilde e compreensivo ser. Quase me levando à crença indubitável de que é nelas que reside verdade. Isso se eu não fosse íntima dos fatos e me encontrasse em desonestidade comigo e com todos que aqui nos ouvem e periciam diligentemente. Preciso restringir minha compaixão e pôr à frente meu dever de convocar Justiça, mesmo sabendo que estou sacrificando a estima que tenho por duas de minhas similares, para as quais concedia imensurável respeito e admiração. Chega ser um tanto duro, mas preciso debelar a todos que estas duas são, sim, transgressoras e, mais, teatralmente perniciosas. Lança olhar recriminador sobre Beleza e Pujança. Tomemos as próprias palavras infelizes delas. Detenhamo-nos no que disse Beleza ao afirmar convicta e maliciosamente que não infringiram a estrutura direito-dever. Será mesmo? No momento em que tomaram e executaram sozinhas, em conchavo de dupla, a vontade de se unir e gozar uma a outra de modo independente, sem prévia consulta e aprovação dos demais, e, obviamente, sob o parecer final de Permissibilidade, nossa atual líder, elas se eximiram, SIM, do dever de cumprimento e responsabilidade para com as regras pré-estabelecidas, aceitas e acatadas por todos nós, além de faltarem com o mínimo de respeito e consideração, que deveriam ter, pelos os outros, e ampliaram seu direito de decisão no momento em que se apoderaram dele, o qual pertence, já sabemos, à Permissibilidade, a única que pode dar o aval FINAL sobre qualquer coisa, permitindo-lhe ser-estar algo, alguma coisa ou de algum modo, ou não. Logo: de cara, infratoras, corrompedoras, causadoras da desordem, ladras, dissimuladas. E não para por aqui. Lembremos que Beleza continua ao levantar a hipótese de que não há mal em se dedicar a alguém, expondo isso como se fosse algo simplório e inofensivo. Mas omite a relevância que, ao fazer isso, planta e colhe importância demasiada, que ultrapassa àquela que cede aos demais. Sendo cristalizada, a posteriori, pela sua comparsa. Pujança se infla e se envolve de seriedade para confirmar que essa é uma necessidade (digamos) “indomável” por ser intrínseca à nossa estrutura. Olhe que cinismo mais descarado! É sabido de todos que ninguém pode ser tratado com distinção nem para mais nem para menos. Somos todos iguais em nossas diferenças e necessidades, parafraseando minha nobre colega Pujança. Então, por que se tratarem de modo excepcional, distinguindo-se dos demais, como se fossem melhores, superiores e ainda usando como argumento a necessidade de ampliar-se nas experiências da outra, como se já não fizéssemos isso ordinariamente sem maiores esforços, além de colocar o inocente e nobre colega Devir no meio dessa trama vil toda, o que poderia vir a lhe prejudicar? Isso, por si, não já seria um insulto grave, sem contar com a tentativa de envolver um inocente colega? Sim. Não tenhamos dúvidas! Mas os senhores crêem que Pujança se satisfez? Não. Ela ainda se vale da compaixão e dos sentimentos de todos nós num golpe frio e funesto, demonstrando sua força cognitiva que trama unilateralmente para o mal. Meus parabéns. Beleza pode até ter um filete de ingenuidade, para não usar tolice, burrice mesmo, mas Pujança... Ah, esta é uma mestre! Suas habilidades para destorcer, remodelar os acontecimentos são fantásticas. Sem se falar na sua capacidade de ir até nossas introspectividades e abalar nossos íntimos sentimentos, com o medonho intuito de nos fragilizar, comover e afastar a culpa que há em si e em sua comparsa. Risos. Alguns passos. Rosto ríspido. Tenta nos aproximar de seu perfil corrompido a fim de buscar semelhanças e apoio ao seu erro gravíssimo. Com seu tom de voz que reclama pena, faz de si e de sua companheira supostas vítimas, coitadinhas, “claramente honestas”. Tenta nos encaminhar para o lado distorcido das coisas, onde a Dúvida nos cega e nos faz acreditar que o que fizeram é apenas uma inovação produto da natural transformação a qual está submetida à Existência. Nos poupem! Estamos cansados de tanta falácia e crueldade. Tenham mais respeito ao nosso bom senso, inteligência e bondade. Ofensa! Como puderam e podem agir desse modo com todos nós que sempre as tratamos como a nós mesmos? Quanto aos fatos não há nada que as salve. São mais dignas da mais severa pena, para que sirvam de exemplo e paguem o saldo do seu desvio degenerante. Se quisermos que a boa ordem anterior retorne, precisamos extirpar o agente que a afastou: Beleza e Pujança. Está na decisão dos senhores o bem-estar de toda existência na qual fomos e nos possibilitamos Ocorrência e ocorrências. Portanto, se há ainda bom senso, senso de justiça, coragem, dignidade e cuidado consigo e carrinho pelo outro, peço a condenação dessas duas criaturazinhas malignas ad infinitum. Que se dê a forca para aqueles que a reclamam em sorriso zombador. Outra vez silêncio, mas desta vez um bem diferente e ainda mais demorado. Os olhares se cruzavam em total mudez e até mesmo constrangimento. Aflito, cada um ali tentava de sua forma buscar quem detinha a Verdade ou a Mentira. Insucesso. Como se buscassem uma resposta para a Dúvida, todos olhavam para Sabedoria, que também estava atônita.

Acabada a exposição das partes e acalmado os ânimos de todos, um por vez, cada um dos presentes depositaram seu voto numa urna – muitos ainda inseguros e incertos sobre sua decisão que poderia trazer justiça aspirada ou desgraça irremediável. – Ao fim, os votos foram contados e Permissibilidade teceu o veredicto consoante à vontade da maioria. De acordo com a apuração dos votos de todos aqui presentes, informo que foram consideradas culpadas Beleza e Pujança por diferença mínima, confirmando o que já sabíamos acerca desse debate: a imensa dificuldade para depurar, avaliar e julgar o caso em questão. Ato contínuo, cabe a esta Assembléia erguer e aplicar uma coerente e adequada resolução ao mal-estar que se instaurou. Portanto, faço saber a sentença: Beleza e Pujança são consideradas réis e culpadas pelos crimes expostos; e como tais são condenadas ao banimento perpétuo e irreversível, o qual se fará por meio do surgimento de uma nova Dimensão e Universo, paralelos e isolados do Nosso, e inversamente caracterizado. Está encerada a sessão. E que se cumpra a determinação de imediato.

A face de Vaidade era só contentação. De si era possível ver facilmente o leve sorriso zombador, além de se perceber sua postura ereta triunfantemente soberba e afetada de si. Espelho. Era vaidade em sua máxima manifestação! Também, ela havia logrado, com êxito, sua empreitada maligna movida pela Inveja abissal contra Pujança e Beleza num desgastante e histórico julgamento equilibradíssimo. As condenadas, por seu turno, só irradiavam, resignadas, a desolação daqueles que não possuem amparo, a não ser o da miséria e incerteza que as aguarda sobre a claridade ofuscante da injustiça. E Beleza chegou a baixar a cabeça devido monstruosa Desolação que sentia, mas Pujança lhe erguei logo em seguida, pois ela tinha certeza de que não havia motivos para elas demonstrarem vergonha, submissão ou qualquer outra coisa que lhe rotulassem como culpadas. Derrotadas, sim; jamais culpadas por um crime que não cometeram; além, vítimas duma maquinal trama movidas contra elas pela Conveniência de bobo e banal capricho.

Sem mais demora, assim que a última frase de Permissibilidade foi dita, seu olhar correu a assembleia e o martelo bateu com força sobre o disco que estava em cima da mesa, ecoando estrondo, brotou no Cosmos uma nova dimensão totalmente diferente daquela a qual pertenciam Beleza e Pujança, e para onde elas iriam. Nela, em vez de duas, há três dimensões, outra razão espaço-tempo e princípios, leis governantes totalmente exóticas às conhecidas delas. Em seguida, irrompeu-se grande, inédita e potente explosão no espaço. Surge o Big Bang. E começa a expansão que não para. A matéria submete a antimatéria. Nascem novos e totalmente diferentes corpos celestes, em número incalculável, agrupados em galáxias, aglomerados, ou isolados, todos numa lógica: formar um indestrutível, confuso e constantemente mutante labirinto, onde nada pode ser encontrado, ou resgatado, ou se achar. Tudo pensado para ser a cadeia ideal, inabalável.

Pujança e Beleza foram alojadas num canto desse novo universo, o qual possui distâncias brutais para todas as direções, a galáxia Via-láctea, perdida entre outras incontáveis, num vasto espaço que não cessa de se expandir e afastar um corpo do outro. E, num local estratégico dela, se criou a sela, meticulosamente arquitetada: o sistema solar, dominado pela grande estrela amarelada e orbitada por alguns e distintos planetas e outros astros.

No terceiro planeta, um rochoso, árido e estéril, Beleza foi convertida em água doce congelada e represada em altas cadeias montanhosas dispersas por grandes e equidistantes expansões de terras completamente desertas, os continentes e ilhas, além dos polos, onde ficava boa parte de seu corpo. Em seu entorno, havia gases em equilíbrio a fim de contribuir para manutenção da temperatura do planeta. A água doce tinha que permanecer gelo, isolada e presa em seu estado imóvel. Tudo era parado. A atmosfera não se movia. Era tóxica. Não existia vento. O clima era sempre o mesmo, mesmo com o movimento de rotação do planeta. Noites e dias eram similares. Não existiam estações do ano. A Terra não possuía seu eixo inclinado nem sua órbita oblíqua. Não podiam ocorrer variações. As coisas se arranjavam de tal forma que tudo tinha de ficar como estava: estanque.

Pujança foi vertida em água salgada e líquida, presa em vastas expansões de águas contínuas, mares e oceanos, e alguns lagos retidos no interior dos continentes. Todos sem movimento nem vida. Não havia correntes. Era água parada e igualmente salgada em todos os cantos, lados e profundidades. Lua não fazia maré. Como não tinha vento, não havia ondas nem praias. A razão de Pujança ter sido tornada água salgada se devia ao fato de se acreditar que ela era a mais torpe entre as duas, portanto deveria sentir sempre o sabor salgado e acre e o ardor do sal em si para que nunca esquecesse de sua maldade; água líquida para se distinguir de Beleza; e continentes, emersos sobre águas, para servir de muro separador entre elas. E mesmo onde gelo tocava em mar, como nos polos, não havia de fato toque. Era tudo imóvel. De todos os lugares do planeta, esse era o pior. Estavam bem perto uma da outra; na verdade rentes, mas não tinham como se comunicar. Não havia ação e movimento, nem algum intercontato, e igualmente próximas. Mudez. Isolamento total: Pujança e Beleza, condenadas ao banimento eterno e ao autoexílio de si para todos, entre si e de si mesmas, como castigo maior.

O porquê da formação dos Andes, Montanhas Rochosas, Alpes, Atlas, Himalaia e outras, além dos Polos Antártico e Ártico se justifica como sela para Beleza, assim como se explicam as grandes depressões do leito marinho ante Pujança. E para manter tudo nesse estado, foi criado criteriosamente o Sol, que cede calor necessário ao planeta; a sua atmosfera gasosa, que conserva em si parte desse calor recebido; os dias e as noites, equilibrando a temperatura; e mais toda dinâmica que há no sistema solar, na galáxia e, por extensão, no universo, ditada por suas leis bucólicas, jacosas, ímpares, a fim de manter água doce (Beleza) em estado sólido e água salgada (Pujança) em estado líquido e sempre separadas. Punidas pela divergência que causaram e castigadas pela ruína que instituíram, eternamente, sem cessar, sem descanso, elas foram. Eis a primeira aparição do Medo, o qual despertava muitas reações inesperadas e descontroladas.

No pacote da condenação, o mais terrível era o constante castigo de ambas veem uma a outra sem puder se tocar, se comunicar, trocar carícias. Isso as corroía. Dor foi concebida. Lembravam, cada uma em si, separadas, os momentos em que eram satisfação juntas. Rememoravam cada instante. Suspiravam ao notar a outra logo ali e ao mesmo tempo tão distante. O silêncio judiava delas. Durante um tempo, elas estavam Solidão e Tristeza. Choro. Pranto. Depressão. Não havia sorriso. Mas a vontade de existir era maior! Nasce Saudade a partir de vontade avassaladora de retomar o passado em presente, de dar continuidade ao que se iniciou, e então é vedado. Elas ansiavam uma a outra. O que mais queriam era um simples contato, estar unidas em permuta de devoção. Saudade foi se agigantando nelas, deixando-as mais inquietas e angustiadas. Nervosas e agitadas, elas não paravam de pensar como foram injustiçadas e como poderiam rever tudo, consertar o erro cometido e voltar ao colo seguro de sua relação. Coisa praticamente impossível. Praticamente. Tudo foi arranjado de tal maneira para rechaçar qualquer possibilidade de relaxamento ou isenção da pena. Perdidas. Não restava mais nada a elas a não ser aceitar situação. Deveriam se resignar. Deveriam? Bem, não foi isso que ocorreu.

Domadas pela Ousadia e impulsionadas pela Saudade, Beleza e Pujança transcenderam o Bom Senso, o Racional, a Lógica. Se entregaram ao sentimento. Construíram Esperança; sentimento que nunca se abala por nada, que jamais morre, que toma cada partezinha do ser, convocando-lhe para a luta, gritando-lhe que não pode haver desistência nem muito menos derrota. A ordem era tentar, e tentar, e tentar sempre, exaustivamente. Não podia ter limites. Os Sonhos são permitidos.

Desejar era tão natural como se é respirar para a vaca. Esperança já nasceu vigorosa. Foi crescendo linda e saudável. Cheia de manhas e dengos, queria o que pretendia a todo custo. Faria o alcançável e o impodível. Obstinada é sua essência. Já havia esboço de riso em Pujança e Beleza. Mesmo sem saber ainda como, elas já pressentiam a volta de uma para a outra. Isso não tardaria.
E não tardou mesmo. A agitação de Beleza e Pujança, de certa forma, interferiu em todo o sistema prisional: o universo criado exclusivamente para ser a detenção delas. Todas as leis físicas e elementos que foram forjados para corroborar, colaborar e manter sua pena passaram a sofrer uma espécie de “pane”. Primeiro foi o Sol que passou a ser mais ativo enviando mais calor; depois foi a Terra que se inclinou no seu eixo em 23° e mudou sua órbita para elíptica. Surgem as estações do ano. O clima do planeta passa a variar. Dias quentes, dias frios, noites menos amenas, noites mais cálidas, meses mais tórridos, meses mais gelados. A atmosfera ganha movimento: ventos. Ondas no mar, praias nas costas. Lua interage com oceano. passa a existir marés e correntes marítimas. Pela primeira vez Pujança roça Beleza: ondas do mar se chocam contra placas de gelo. Que satisfação! Lágrimas de prazer! Sorriso, risos, gargalhadas. Nenhuma palavra. Apenas carícias de reconhecimento e des-cobrimento depois de tanto tempo privadas. Reencontro. Encontros se seguiram. Conhecer. Tamanha foi a alegria delas que seus pés abalaram o interior do planeta. Rocha, antes sólida, se derrete em lava efervescente. Há movimentos nas profundezas. A crosta se racha em muitas placas. O chão se move. Terremotos. Fogo vem do interior, surge o que se chamará inferno. Vulcões. Apocalipse. Gases jogados no ar. Nova atmosfera. Efeito estufa. Mais calor. O gelo começa a derreter. Desce das montanhas, escorrega das geleiras, se desfaz o sólido. A vontade é uma só: correr para o mar! Rios brotam em todas as partes. Amazonas, Nilo, Danúbio, Mississipi, Amarelo, Darling. Na foz, mais celebração de união como aperto de mão em simples estuário ou como abraço em emaranhado delta. É fantástico o progresso e a consolidação do sentimento que agrega Pujança e Beleza. Não era mais contível. Águas começam a evaporar, subir para os céus. Mares continentais secam por completo: olha os Salares Andinos. Nuvens. Estão juntas Beleza e Pujança. Unidas, caem em chuvas, nevascas, tempestades. Raios e trovões riscam e iluminam os céus. Energia. Força. Poder. Ciclo da água e das águas. O relevo, antes predominantemente plano serpenteado por magnânimas cadeias montanhosas, ganha face e personalidade: chapadas, vales, depressões, kênions. O solo anteriormente árido é regado. Lagos aparecem aos bocados. Pântanos são muitos. Beleza dá seu primeiro presente à Pujança: detritos oriundos da terra que mudaram a composição dos mares. Pujança se contenta e molda as protovidas. Começa a ter oxigênio no ar. Logo, Vida é explosão em todo canto, todo lado. Como manifestação da plena realização que inunda Pujança e Beleza, as quais são as inventoras e primeiras vítimas da Amizade e Amor e do Amor e Amizade, há diversidade em tudo. A vida é nuances, prismas, segredos, fascínio, diversidade. Do grandioso ao minúsculo, do visível ao ignorado, do multicor ao pluricheiroso, tudo é permitido em Vida. Com ela, também chega Morte, o ponto de recomeçar. Há o equilíbrio ecológico nos diversos e distintos biomas que ocupam a Terra em ar, solo, subsolo, águas. Todos belos e ricos; todos com suas singularidades em fauna, flora, clima, relevo. Atacama. Mata Atlântica. Floresta boreal. Savanas. Pantanal. Manguesais. Grande barreira de corais. Arte. Isso tudo como prova de mais pleno sentimento de se expandir e realizar-se em si através das experiências do outro, agora em compartilhamento. Cumplicidade. E a troca de presentes não cessa.

Carinhosamente cuidadosa, dedicada, sensível, criativa, inteligente e generosa, Beleza quer mais que surpreender Pujança; aspira o seu fôlego perdido em torpor e sua face remodelada pela catarse.

Em segredo, planeja o que veria ser mais que o presente a sua amada companheira Pujança; servirá como a obra prima que celebrará a união das duas, o símbolo comemorativo do amor correspondido, o seu maior feito até então!

Lançando mão de forças muitas, convocando tempestade, visita o interior seco do Nordeste. Chuva, vento. Escava em relevo outra topografia. Morros aplainados como mesas surgem, vales aparecem, serras fazem parte do horizonte. Outra flora e fauna são criadas para o novo jardim: Chapada Diamantina. Na Serra do Sincorá, mais ou menos 1.200 metros de altitude, entre vegetação, rochas, pedras preciosas e muito diamantes, rasga do solo nascente do Peruassu, “água grande, mar grande, grande rio”, mais tarde Paraguaçu. De início, segue ao norte, vai se engrossando, ganhando volume e explosão de víveres. Se vira para o leste, busca o Atlântico, e o encontra depois de centopear cerca de 500 km. Já na costa, Pujança o recebe em gozo, refresca-se com suas águas fartas e generosas, ricas de nutrientes. Eufórica, completa seu presente. Volta-se para Beleza e pede sua atenção. Já que me deu o Paraguaçu, vou te fazer dele mais: a Baía, o berço no qual nossa Amizade e Amor dormirão todas as noites de maré e lua farta. E assim mar penetra continente, faz côncavo, Recôncavo. De águas azuis e profundas, repleta de ilhas, mangues, belas e tranquilas praias, penínsulas, cercadas por verdes morros, e montes, e colinas, como a Sagrada do Nosso Senhor do Bonfim, Itapagipe, São Salvador, é a comemoração de Vida e Morte e Morte e Vida num Romance fantástico envolto de mistérios e magias: Baía de Todos os Santos. Ela, a Menina dos’Ói. O xodó de Beleza e Pujança. Mais tarde habita por humanidade, a última das criações. Não qualquer humanidade. Uma criada formada a partir de outras, que retira da dor a alegria dos dias em suor sobre a pele amorenada, música das coisas, ginga, sensualidade e malícia do corpo. Gente generosa, humilde, religiosa e até mesmo ingênua na sua simplicidade e ignorância. Talvez burrice em sua alma serena. Enfim, pessoas que têm a intimidade nos botões dos poros, que fazem do desconhecido o amigo, que recebem o estrangeiro como convidado, que amam as águas da Baía, a qual lhes concede Bahia, baianos, baianidade.

Quem ou o quê poderia imaginar, tanto aqui quanto lá no Universo bidimensional de Permissibilidade, que justamente o Universo exótico criado, perdido, esquecido por aqueles que julgaram, condenaram e puniram Pujança e Beleza ao banimento eterno, em máximo isolamento e martírio, deixaria de ser a pior das detenções e se tornaria o lar perfeito para a festividade contínua e perpétua do bem-querer que envolve Beleza e Pujanças. Ironicamente, o que deveria lhes trazer punição lhes possibilita plenas condições de manifestar todo o carinho que há em e entre elas. Completa privacidade e liberdade. Não há algum tipo de conexão entre o universo onde Pujança e Beleza se originaram e esse agora no qual ocorrem em total reconfiguração. Ignorância recíproca. Sobre ela, a injustiça se desfez finalmente. Pelo mal inicial se fez o bem término. Experiências foram e são permitidas. No nosso Universo, Beleza e Pujança são as únicas que governam soberanas em conjunção, com inteligentes e generosas mãos delicadas e amorosas. O casamento delas é o que se conhece como Natureza. E tudo que dela vem são os frutos de sabedoria, alegria e felicidade. Elas nunca desistiram do que sentiam uma pela outra. Mesmo fragilizadas na estima, preservaram em si o que de mais forte havia nelas, a Vontade de existir em ocorrendo de gozos. Quando se existe Esperança, há muito que sonhar, surgem forças para lutar, se suscitam ousadia para persistir perspicaz e se colhe disposição para se deleitar no conquistado. Flor teima em lançar seu perfume ao ar. Quem desejo tiver, aceite o convite e venha. Como uma Menina dos’Ói, há muito que se construir não só entre dois, talvez com muitos e muitas, todos e todas, tudo.

DIÓGENES SILVA

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