quinta-feira, 10 de junho de 2010

VAI DE PROGRESSIVA? [ENSAIO]

Senegalês alto, forte, falante, com sorriso de dentes brancos, de pele muito preta, até as palmas das mãos dele eram “escurecidas”. O homem Era o que denominamos espantosamente de “azul”. Num evento no MAM-Ba, ele trajava coloridas roupas típicas da África Subsaariana, estranhas aos nossos padrões ocidentais. Aquilo me trouxe espanto e até curiosidade. Meus olhos não desgrudavam daquela figura exótica. Eu percorria com o olhar todas as dimensões dele, degustando-lhe o máximo de traços possíveis. De fato, era um elemento alienígena, distinto do que concebemos como negro em Salvador. Mas o que mais me impressionou era a alegria do homem, mesmo ele tornando pública sua solidão amorosa em terras estrangeiras. A pergunta era inevitável: como um homem daquele, que deveria ser o arquétipo de beleza em seu país (e quem sabe o ideal perdido de nossa cultura negra), estava à procura incessante e mal-sucedida por um companheiro justamente numa terra onde a maioria da população se diz (e é apontada como) negra ou afrodescendente? A resposta veio de suas próprias palavras, em tom sincero, curto e até debochante. Professor de francês na UNEB, o africano estava só porque era negro demais; não só no fenótipo, também nos tarjes, na fala, na origem, enfim na identidade e na personalidade. Esse tipo de alteridade não é muito tolerado.

A rejeição à qual o professor de francês de origem senegalesa está submetido não é, infelizmente, caso isolado. Os negros e mestiços que residem no Brasil, principalmente nos grandes centros urbanos, convivem com essa realidade diariamente. A repulsa pelo que é negro está aglutinada em muitos elementos e manifestações que compõem nossa cultura e nossa identidade. Tanto aquele que se autodenomina branco como aquele que se declara ou é declarado negro ou afrodescendente contribuem consciente ou inconscientemente para a manutenção desse fenômeno. Como? Façamos breve viagem pela história para melhor entendermos como isso se deu e se dá.

Paulatinamente, ao longo de séculos, a negação do negro e do que a ele está ligado foi forjada, à base de muita violência e dor, por parte daqueles que detinham o poder – e apoiada por aqueles que, de alguma forma, tiravam proveito disso. – A fim de assegurar seu poderio sócio-econômico, político-cultural e bélico-policial, o ocidental precisava manter a submissão dos povos negros sob os seus interesses e caprichos. Para tal, além de lançar mão de demasiada bestialidade, teceu, de maneira ardilosa (e até covarde), “verdades” detratadoras acerca dos povos oriundos d’África. Recorrendo a elementos fisicamente naturais dos negros, como tipo e aspecto de cabelo, cor de pele, formas do rosto; utilizando os elementos culturais deles: línguas, cultos sagrados, maneira de relacionar e se relacionar com os bens e capitais e a reprodução desses; e manipulando os elementos basilares da cultura e sociedade do então Brasil em formação, religião, educação formal e oficial, literatura, música, teatro, arte, manifestações populares, leis, entre outros, o branco deu início ao processo de monstrificação e negação do negro, o outro, para o qual foi atribuído, de início, o estigma de não-humano. A partir daí, tudo que era parte do ser negro e dele produzido e reproduzido eram aquiescidos como anormais, promíscuos, burlescos e perniciosos, portanto condenados, sem direito de revisão ou retrucamento, à difamação, à cassação, ao banimento e ao consequente esquecimento. Forçosa e mentirosa foi a ideia imposta de que apenas a civilização ocidental portava a verdade, possui a beleza, herdeira da glória divina e igualmente ostentava o direito exclusivo de existir como manifestação de humanidade em detrimento de todas as outras civilizações. Quem quisesse conviver e sobreviver com o branco precisaria, inevitavelmente, passar pelo processo forçoso, desconfigurador e violento do embranquecimento.

Acuado ou resistindo como podia, o negro assistia (ora passivo, ora defensivo, ora atacante, ora oportunista) à própria corrosão. Via sua identidade ser desmantelada, e em seu lugar surgir outra segundo os moldes ocidentais. Foi forçado (e se forçando) a aceitar sua suposta inferioridade e a acreditar na quimérica superioridade branca. Claro, tudo isso num complicado, complexo, demorado, e violento processo, o qual se encontra em inacabado! “Precisava” abandonar a si para se inserir na nova nação, que se montava às custas de seu suor. Era urgente adaptar-se aos padrões senhoris o mais rápido e perfeitamente possível, copiando-os; o que fomentava o fenômeno de apagamento de seus traços sócio-culturais, legitimando as diretrizes que o embranquecimento trazia consigo. Uma nova origem, por meio de matrizes europeias, era desenhada para os negros; até então pretos e mulatos, e na contemporaneidade afrodescendentes – termo que, em algumas situações, parece ser utilizado como um eufemismo (?).

Como é sabido, em todo encontro amistoso ou bestial entre dois ou mais povos, sempre há a permuta de experiências e a mescla de características pertencentes às partes oponentes, sejam como substrato, adstrato ou superstrato, dando origem a elementos híbridos. Isso não seria diferente aqui no Brasil entre os brancos e os negros. No ato da aquisição (muitas das vezes precário e cruel) dos elementos da civilização ocidental, o negro, resistindo corajosa e criativamente, legou algumas marcas suas para o que viriam a ser o imaginário de povo e de sociedade brasileiros. A religião, a língua, a economia, a política, os costumes, tudo enfim que era europeu, em terras além-mar, sofreram re-configuração, tornando-se local e se afastando (ora para mais, ora para menos) do arquétipo metropolitano. Surge, então, o simulacro, e com ele a busca incessante pelo “original” e a interminável repulsa de si, a não-aceitação do ser híbrido que somos enquanto latino-americanos, sul-americanos, brasileiros e sociedade em vias de desenvolvimento, país emergente – já não somos mais o país do futuro como se dizia. Ele (o futuro) já chegou e nos surpreende com aparência do passado que conhecemos tão bem (ou pensamos conhecer), mesmo trazendo o moderno.

Sim, somos o país e a nação mestiça que se auto-flagelam. Desejamos ser ocidentais a todo custo. Só que isso não é possível. Somos, digamos, geneticamente multirraciais e policulturais. Como tais, não há como abandonar completamente nossa natureza forte em cheiros, abundante em cores e estúpida em sabores muitos e diversos. Esse conflito de identidade afeta o branco e o negro – e o quase extinto índio, e o diferente asiático. – Ambos (brancos e negros) sabem o que é a dor de não se enquadrarem ante o standard da cultura globalmente dominadora. O branco aqui não é e jamais será como o branco de lá, mesmo que use de todas as suas forças e criatividades. O negro brasileiro jamais será como os brancos daqui, mesmo que tente, magicamente, eximir-se de sua pretude. Ele sempre será o preto; no máximo, mestiço, moreninho, o meio-do-caminho, o inacabado. E se desejar volver aos modos de seus ancestrais africanos, também não poderá fazê-lo. Perdida já está a matriz africana que nos compôs, tanto no tempo quanto no espaço, mas não completamente. Há, sim, vestígios espalhados aqui e lá. Alguns até pulsantes. Notemos o candomblé, o Ilê-Aiê, o Malê Debalê, o Olodumpor, como exemplos. Contudo, a matriz como nos foi importada nos tempos da escravidão, essa já não temos mais e não conseguiremos nunca. Os negros da África atual não são nem poderiam ser os mesmos que foram trazidos para o Brasil. Mudados já estão e em mudança se encontram como todos os humanos. É inato ao ser o devir. A via mais provável para o resgate do “eldorado perdido” seria por meio do intercâmbio com os contemporâneos africanos; coisa que seria dificilmente permitida pela dinâmica de interesses correntes.

Sob a análise adotada nesse texto, parece-nos que é o preto que mais sofre com a crise do eu ocidentalizado imperfeitamente. Mas também o índio, o asiático e o oceânico têm de forma similar sua desgraça decorrente do processo de negação, apagamento e embranquecimento empreendido pelo ocidental.

Detratar, monstrificar, negar, apagar e embranquecer o negro e aquilo que dele se produz e reproduz. Essas foram e ainda são ordens seguidas por muitos de nossa sociedade, no passado de maneira mais explicita e ácida, hoje de forma mais sutil e adocicada (e também de forma crítica, não nos enganemos). Associando o negro à cor preta e toda carga semântica negativa que a ela é associada em mito, como obscuridade, ausência de “luz” como sinônimo de sabedoria, maldade, demônios, foi deslocado para o plano do degenerado, ruim, mau, torpe, inacabado e incapaz de se governar o negro, o qual “precisaria” da tutela de outrem, o branco, o suposto mais forte, sábio e evoluído. “Verdade” apoiada pela lógica Darwiniana da evolução das espécies, apropriada e utilizada a seu modo pelos algozes. Justificou-se a escravização e marginalização do negro. Foi-se a escravidão oficial, e permanece o massacre. Filhos de negros, geração após geração, cresceram ouvindo de muitíssimos, inclusive de suas próprias mães, que ser negro não é legal, que preto é feio, preguiçoso, fede e é “macaco”. Esfolada foi – e ainda é! – a auto-estima desses. Piadas, ditados populares, provérbios, contos, estórias, músicas mal-intencionados pulularam Brasil a fora detraindo o elemento negro e legitimando seu martírio. Quem já não ouviu (e reproduziu) coisas como esta: “branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão”? Ou não já chamou de maneira pejorativa alguém de negrinha, querendo levantar a imagem de pessoa desvirtuosa? Cobrindo-se da inocência e espontaneidade, em suposto serviço ao lúdico, esses instrumentos, assim como muitos outros, conseguiram infiltrar em muitíssimos de nós a ideia de que o negro deve ser abandonado e em seu lugar se buscar o branco. Isso seria o suposto e tão sonhado ingresso para salvação de si, a ida ao progresso, a chegada à modernidade, o reconhecimento como verdadeiro ente da humanidade, membro da civilização. A coisa foi feita de maneira tão maquinalmente arquitetada e vorazmente mantida ao longo do tempo, sob a lógica do processo de naturalização, que é difícil hoje a perceber e reconhecê-la em muitos casos e momentos do nosso dia-a-dia. Coisas que dissemos, falamos, fazemos nos parecem (e a temos como) tão naturais que nem imaginamos que elas carregam em si a extirpação do elemento negro.

É fato: há fortes movimentos de auto-valorização do negro, resistência bela e com fôlego, mas ainda o negro está alojado no plano do ridicularizado – isso está mudando e ainda vai mudar mais! – Enquanto essa mudança não se implanta completamente, o espelho, seguindo os ditos da moda e do padrão de beleza instituído, insiste em gritar para o pretinho e para a pretinha que seu cabelo é duro e que seu nariz é achatado. Os veículos de comunicação não cansam de estarrar na cara de todos o padrão esguio de beleza branca, comumente acompanhado da ostentação de um way of live além das condições de muitos. Frustração. Estarrecido, o preto que é geralmente o pobre se acha feio. A insatisfação é fato. Resignado, tolera a rotulação de afrodescendente. Afasta o aconchego incômodo da compaixão dispensado ao coitadinho e busca a saída. Alguns poucos mergulham de cabeça no que é tido como tosco: aguçam em si elementos da identidade negra, como os rastas, tornando-se para muitos figura repulsiva. Por valor baixo, compram seu lote na margem e pagam alto IPTU para subsistir nele. Sonhadores, são esses que resistem e sustentam a mudança. É neles que há a luta e a esperança por dias melhores para os negros e mestiços. Em contra mão, outros muitos preferem se embalar no ritmo tocado pelo sistema. É a hora de se negar como negro, abandonar sua pretude e erigir em si o branco por vias do mutilador processo de embranquecimento.

Não é difícil entender por que se lança mão do embranquecimento. O poder é atraente, nos fascina, nos torna “melhores”, “mais” fortes, “mais” belos, invejados, temidos. Quem não deseja ser aceito, reconhecido, respeitado, ter seu espaço, ter acesso às delícias que a modernidade exala? Ascender é mais que necessário; é vital, assim creem muitos e muitas. Queremos possuir, todos, inclusive aqueles deserdados: pobres, negros, pretos, mestiços, afrosdescendetes.

Na relação obscura pela busca e disputa de poder, como é bem apresentado por Michel Foucault, o indivíduo humano pode fazer de tudo com os outros e até consigo para ser o Senhor. O preto se embranquece. Nas ruas de salvador, é normal ver gente com cabelo espichado, ou alisado à base de produtos químicos ou sob o calor dos obsoletos ferros ou modernas chapinhas, pranchinhas e progressivas, ou ainda deflagrando mega-hairs. Pessoas recorrem a cirurgias plásticas com o objetivo de afinalar o nariz. Outras, como Machado de Assis, em ato extremo, procuram as sombras e proteção das roupas para não se amorenar no sol fornalha dos trópicos. Tentando se vestir, andar, falar e se comportar como o ocidental, mutilando-se, o preto chega, ao máximo, ao simulacro. Abandonado por si, o ele habita na eterna e efervescente crise num entre-lugar agonizante: ele não é branco, não é negro, é mestiço, é moreno; melhor, é o chato afordescendente, o qual exige cotas para o terror dos brancos! Mas que diabos é o afrosdecendente? É aquele com identidade fosca (e ofuscada, e ofuscante) para o qual o Senhor do poder pensa está dando oportunidades e pagando sua dívida histórica.

O irônico é que mesmo o embranquecimento não sendo um instrumento eficaz de inserção na sociedade ocidental (e na nossa ocidentalizada), muitos negros e mestiços teimam utilizá-lo. Os que conseguem se verter elite se tornam mais brancos dos que os próprios brancos ao lançar seu olhar e atirar sua mão sobre o pobre, o preto e o mestiço, afrodescendente, reflexos de seu passado ainda quentinho. Foi ensinado e aprendido a eles e todos os demais que se “deve” mais que rejeitar, “é” fundamental punir tudo que leve a marca de negro. É difícil desfazer esse “trabalho”, não impossível!

Creio que não é através da sacralização do branco como ideal que o negro, perto, mestiço e afrodescendente vão ter satisfação e paz. Antes, é (em sugestão) desmantelando toda essa trama que o condena ao ser monstro; aceitando-se como indivíduo híbrido, buscando elementos que o fortaleçam tanto nas matrizes negras quanto nas brancas (e em outras igualmente), aqui ou fora do país, segundo as oportunidades e suas conveniências; trabalhando sua auto-estima a fim de fortalecê-la ainda mais; militando em si e na atmosfera que circunda o outro contra a opressão que ainda é realidade, sem ir ao radical, valendo-se da diligência, moderação e inteligência; forjando outras verdades acerca de si que demonstrem, de maneira elucidada e honesta, a beleza, a dignidade e a sapiência que também há em si; e exigindo a vez de tornar sua voz audível e legítima. Não é apenas um tolo sonho, ainda espero que a humanidade se dê conta de que não há negros, nem brancos, nem amarelos, nem mestiços, nem -descendentes, e, sim, uma única humanidade extraordinariamente manifestada e manifestando-se em nuances, todos em pé de igualdade, respeitando e reproduzindo uma das lógicas da existência: a diversidade. Lembra do professor senegalês do início do texto? Assim que concebermos o outro com os cuidados que dispensamos ao nosso eu, ele encontrará, no espelho já modificado, uma outra imagem que não a sua, disposta a construir, juntamente com ele, em união, a felicidade de dois em apenas um: a amizade e o amor e o amor e a amizade, o matrimônio.
Agradecimentos a
Pérsio
Ari

Por Diógenes Pereira. Salvador-ba, 25 de junho de 2009.

Glossário:

Estarrar: expor com demasiada vontade algo/alguém.

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