Caía, suavemente, sobre meu corpo, partes do sol, do qual já vinham queimaduras delicadas. Sentado, sentindo o cheiro de asfalto acordando duma longa madrugada, tinha mais que tempo para medir, em olhares de muitos sentidos, as maneiras que se eram o Meiofio da repleta rua de migalhas de vidas descartadas. Ia nomeando os capins, memorizando cada formiguinha, assistindo a pueril algazarra do vento ao dar forma à poeira e lixo, escrutando a rude e sapiente arquitetura das singelas casas periféricas frutos de criatividade de arquitetos não diplomados, devassando os sonhos que havia naqueles carros de sucatas abandonados por um outro mundo que só tinha acesso pela parte de dentro das janelas dos ônibus, percorrendo os fios de postes enfeitados pelos restos das arraias dos pivetes judiadas pela intempérie, tentando ouvir descompromissado a fofoca matutina das curujonas, lendo nos cachorros vagabundos suas vontades, ousando nos gatos errantes suas decepções, colhendo nos passarinhos a labuta diurna, encontrando movimento no esgoto a céu aberto que escorria contínuo perfazendo menção a rios outrora. Parei o passeio des-venda-dor quando enxerguei as unhas e seus pés. Não eram simples pés e unhas! Eram o alicerce de histórias recontadas incansável em outra suposta permissão de ocorrer. Sujas, grandes, deformadas, cada unha dizia de si as perdas, contava casos, mentia, delirava, devaneava, dizia caminhos, falava lugares, escrevia projetos finalizados, abortados e inacabados, mesmo seu silêncio denotava e conotava muito. Possuía brutachocante beleza. Em ação seguida, escalando pele ora ressequida ora sedosa, me informava acerca de tudo que foi degustado com prazer e repulsa. Sobre os braços fortes, via a futilidade da vaidade armada e também sua razão de estado: seduzir. Nas palmas das mãos, me achegava a calos de ócio. Deslizando sobre o oleoso rosto, topografava as deformações duma superfície tão negada e substituída em ficção da mente por idealizações, arquétipos, artificialidade, moda, distância. Querendo provar dos olhos pelo seu interior, tropecei nas limitações da criação. Ainda era criação! E como era! E foi o azul acima de mim que me carregou, inerte, a um vazio aterrador. Sentia frio, mesmo sendo verão no trópico. Era doença. O Mal da Perda já era em mim terreiro que se agigantava ao longo das fotografias da memória. Nesse tempo, me ausentei do mundo real. Voltou-me para introspectividade. Afastei o fantástico que resistia em mim. E deixei livres todas as forças possíveis. Agitação... Sem espaço-tempo ou qualquer outra razão conhecida, adentrava mais e mais nos tecidos da Perda. Escandalizava-me com tão engenhosa e arte-sanal eram de si as formas. Via nela seu poderio e vontade-luz de comunicar-se e se propagar, acariciando muitos e muitas com seu sabor. Eu fui mais um banquete deliciado a pontas de dedos... Agora, minhas fronteiras, já rompidas, permitiam que eu vazasse completo; o que tornava o Nada algo concreto. Sim, conheci o Nada! O Nada não é a simples ausência de tudo; é mais, além, é também a reunião de tudo que extirpado foi do direito à existência, sobrando apenas vagas e magoadas lacunas. É isso: em mim, havia lacunas aos montes, referências de coisas que marcavam voz ativa, presente e autônoma, e que agora são narradas por voz passiva, pretérita e terceirizada. Pude provar o quanto é chato ser subtraído dum sonho, ser arrancado dum plano, ser banido duma moldura. Pior, fui a própria experiência da ignorância e indiferença. Assistia ao mundo e via vida harmônica dita e feita completa, repleta de alegrias e felicidade, e eu aquém da margem, reservado ao quinhão de escória. Pra mim sobrava apenas uma frágil paráfrase de que houve uma lacuna que me representava, porque até isso me foi tirado. Perder não é bom. É aqui que a vaidade falece, o ego desmonta e as imagens borram-se. Decrescendo pela Perda, vejo meu inventário de desejos – aquele que me dá prova de que existo e acesso a alegria e posso idealizar a felicidade – ruir e retroceder. Pânico à primeira reação, frustração e desapontamento em segunda estância e degredo em ato final. Atrofio-me demasiadamente; reação de defesa suicida. O medo se implanta. Não há mais o conhecido como propriedade. Só há o estranho e o receio de manter comércio com ele. Desconfiado de tudo e todos, peço asilo à solidão, a qual é a outra meretriz que adorna e traz distinto calor ao corpo. É a saudade que me é a melhor amiga. Peço seu colo. Abuso a memória, preciso reviver o vivido. É nesse instante que a morte dá lugar a vida; mas uma vida com outra textura. Não me satisfaz por inteiro. Apenas é um rápido paliativo. Viciado, já não sinto mais seu efeito como na primeira vez e busco a diferença, e não a encontro. Piro na possibilidade de não ter mais um lugar. Temo me lançar ao novo. Estanque. Não sei mais o que quero. Sei que não posso ir ao que já provei; não há mais função para mim lá. E os outros parecem tão hostis... Parecem? Ou assim eu os quero para validar minha desgraça? Preciso de provas para mostrar a mim que sou vítima. Eu me planto o algoz do agora. Sufocado por minha própria arrogância e intolerância, não permito que de mim façam caminhos. Ai mas como eu queria ser cruzamentos... Há uma distância tão monstruosa entre desejar e fazer-se desejo ação! Cadê forçar, ousadia, realização? Onde está aquele sonhador, desbravador, investidor, destemido? Para onde foram minhas esperanças? Esperanças? Há uma cara que não sei a que esse lexema remete. Sou a Perdição. A mente parou. O ócio é um outro. Pensa-se em várias coisinhas e nada dá fome. Sede só da subsistência. Quando tudo vai parar? Talvez quando m’escorrer por completo, finalizando todo o processo. Aí então estarei pronto para vários inícios. Mas não se pode reiniciar desde agora? Pode, sim. Mas sei lá porquê a Conveniência não quer. Ela tem seu tempo, é manhosa, e assim o quer. Pé firme, teimosia, xaxo. Se é assim, assim o é por motivos ofuscados por uma luz inabsorvível. O dia certo da revolta só ela conhece. Ah e quando esse dia chegar... Explosão! Segurem-se... Não haverá nada que possa conter! Pedirão que cesse, e não serão atendidos. O momento é de penúria, promessas, aguardo. O pós é de expectativas ainda frívolas. Tudo isso causado pela Perda? Sim. Em tudo há importância. E não é a Perda que não trará em si a confirmação de que o universo não para. O Devir sempre exige passagem, mesmo que estranha seja a forma como reclame isso. Paciência... Aproveitemos atentos e sensíveis outra maquinação do que nos fez e faz continuum de um todo intricado, complexo, inacabado, interligado, ansioso, buliçoso, inovador, conservador, ambivalente, contraditório, medonho, tosco, magnífico... A Perda vai ditar muita coisa ainda. Ouçamos o que ela tem a nos dizer... Ouvidos limpos, poros escancarados, olhos aflitos, língua insegura, narinas agitadas e mente receptiva. É hora dos pães e em breve os queijos.
Diógenes pereira. Ssa, 06 de fev de 2009
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