I
Preliminares
Da mais pobre a mais rica, da mais desigual a mais justa, da mais corrupta a mais transparente, da mais ditatorial a mais democrática, da mais desenvolvida a mais retardada tecnologicamente, da mais espontânea a mais serena, da mais revolucionária a mais conservadora, não há sociedade que não possua a delinquência e a violência na estrutura de sua realidade. Isso é o fenômeno que afeta a todos em menor ou maior grau. Fato: ninguém escapa disso. Seja o indivíduo rico, seja miserável, seja soberbo, seja humilde, seja honesto, seja corrupto, seja cauteloso, seja ousado, seja agressivo, seja pacífico, seja sábio, seja ignorante, seja ocioso, seja criativo, seja temeroso, seja estúpido, seja voraz, todos são reféns dessas endemias, as quais, provavelmente, têm sua origem nos tempos imemoráveis do surgimento da própria humanidade.
A pergunta é: existe alguém que deseja a violência e a delinquência ilimitadamente? Não. A estupidez e a burrice também possuem limites! Mesmo aquele que promove a delinquência e a violência, só as busca quando é necessário acessar o poder, manter ou ampliar seu status e garantir vantagens para si e seus cúmplices e protegidos. Por outro lado, se elas são utilizadas por outros e se voltam para si, de pronto o algoz passa à vítima, e logo as repugna. Até o mais bestial indivíduo deseja a paz. No caos pleno, não pode haver o corpus e com ele suas partes constituintes com as diretrizes hierárquicas que sustentam toda a estrutura. A barbárie é apenas um instrumento funcional usado, de modo específico e limitado, para podar as tentativas de desordem em face da ordem estabelecida, seja ela de caráter legitimado ou paralelo.
Justamente, é o desejo incessante e até mesmo exacerbado e, algumas vezes, ingênuo a favor da manutenção da ordem erigida ou daquela idealizada que faz nascer, em parte, mecanismos caçadores daquele que seria a ameaça potencial. Não é à toa que existem paradigmas, moral, ética, leis, judiciário, polícias, presídios, manicômios, asilos, escolas, clubes, associações. É fundamental localizar, devassar, classificar, distinguir, segregar, criar, educar, manter, punir, submeter, extirpar, limpar, camuflar, ludibriar, idiotizar, dominar. Liberdade é verdade utópica. Qual humano está livre dos limites impostos pela coletividade egoísta de poucos que de fato usufruem os bens da sociedade: os ricos e poderosos? Para aquele despossuído de acessos ao poder que, por força e capricho de desejos e impulsos íntimos, transgride além do permitido, há toda uma máquina armada para castrar, inibir e direcionar à “segura” vida socialmente desejável a ele, (re)modelando-o. O engraçado: mesmo com tanta energia investida contra os corruptores do sistema, cada vez mais nasce aquele que, por algum motivo, caminha para longe do centro por conta própria ou foi marginalizado por outros. A lógica da ação e reação nunca foi tão pulsante! Quanto mais se deseja a profilaxia, mais “sujeira” aparece. Os indesejáveis aumentam proporcionalmente à vontade de emergir uma humanidade “bela” e “organizada” sob uma ou poucas perspectivas. Não há espaço para opiniões, vontades e desejos diversos e principalmente divergentes. A diversidade e alteridade são tidas e reconstruídas como patologias graves que necessitam de tratamento urgente. Ser demasiado diferente é a certa sentença de morte, seja ela morte definitiva – o fim da existência no plano físico-psíquico –, seja ela a morte de cidadania – o fim por meio do exílio social num mundo paralelo e estigmatizado.
Os instrumentos mantenedores da ordem corrente ou da almejada, que toda sociedade possui, não são tão eficazes como se pretende. Eles são a besta desmedida que requer mais e mais sangue e carne. Na insanidade de se manter a Ordem, ninguém escapa de algum tipo de castração, policiamento e redirecionamento de suas intempéries e desejos. Todos em algum momento, em alguma ocasião ultrapassam o limite de segurança e tornam-se corruptores do Sistema. Para mantê-lo, logo é preciso corrigir a ameaça de forma iminente. Dessa maneira, absolutamente todo mundo, até mesmo aquele que está na “sala de controle”, acessa a loucura, precisando de “ajuda” compulsória para retornar à norma-lidade – caso queira coexistir e coabitar na sociedade. – O fracasso desse aparelho dilacerador está justamente no objetivo de se controlar o indomável: a alma humana. O indivíduo é espontaneamente sedento pelo devir. Ele quer variar, ele muda muito, ele transgride, ele pira, ele é único, ele não para. Não há como fixar-se ao modelo. Isso seria negar sua natureza. Inevitavelmente, nasce frustração em todos. Tristeza brota, alegria se torna mercadoria cara e felicidade não passa de mais uma quimera no conto de fadas que é tecido, ora na introspecção de cada um, ora no imaginário coletivo, a fim de aliviar tanta dor. O cão, que é criado com tanto zelo dentro de casa como se fosse o mais fiel amigo, trai: a mão que o alimenta é mordida ferozmente.
Concebida portando enfermidade em si, a sociedade e seu sistema imunológico colaboram e corroboram para a sua própria ruína. O monstro que criaram para eliminar o indesejável foge ao seu controle pleno. E descontentamento é efervescente na face de todos. Mesmo aquele que é mais passivo à ordem, é marginalizado em algum momento. Essa marginalização pode ser temporária, retroagindo no instante em que o transgressor recue, funcionando como advertência ou pode ser específica, que será perpétua: uma ferida que nunca sara, da qual não se pode ou não se quer abandonar e com a qual o indivíduo terá de conviver em atrito até o momento de sua morte. Como se olhar ao espelho e ter paz? Recalques e conflitos.
II
Escória
Nenhum indivíduo decide por si se quer nascer ou não nem onde, quando, como e por meio de quem vir ao mundo, carregando em si X características, e não Y. Já no ato da concepção do ser, não há escolhas, apenas imposições e resultados. Tudo é determinado – por quem ou por que coisa? – e logrado ao indivíduo sem lhe perguntar nada nem muito menos lhe pedir sugestões. Indague-se: foi você que escolheu seu nome ou foram seus tutores que lhe “deram”? Por sorte ou azar, destino ou combinação de acontecimentos, nasce-se branco ou perto, homem ou mulher, rico ou miserável, viado/sapatão ou hétero, baixo ou alto, gordo ou magro, sereno ou tempestuoso, criativo ou ocioso, delicado ou áspero, emotivo ou insensível, sadio ou enfermo. Quase uma loteria. Só que na loteria que conhecemos, há, sim, a decisão de participar ou não do jogo de azar. No ciclo de vida-e-morte não! Entra-se com tudo e seja o que Deus quiser ou o que o Diabo determinar – e ainda há espaço para outras entidades e divindades!
Mesmo sem ter a decisão de vir ou não à existência, é direito compulsório de todos que a ela chegam possuir condições mínimas e igualmente plenas em acessibilidade e funcionalidade para viver, coabitar e manifestar sua singularidade; isso sem prejuízo direto ao bem-estar legítimo do outro. Contudo, não é isso que se assiste. Quando se é introduzido em N sociedade, já começam as castrações, inibições e direcionamentos do indivíduo. Ele tem sua identidade esculpida pela cultura do ambiente no qual se encontra ou transita e pela força exercida do corpo social impessoal e coletivo, além de ele mesmo a moldar de acordo com suas experiências e vivências de outros. Até aí existe certa coerência visto que o humano é humanidade, isso é, parece ser verdade absoluta que é da natureza do ser humano viver e conviver em associação comunitária. O problema é: não somos abelhas nem formigas. A fim de legitimar seu privilégio em face do outro, alguns indivíduos constroem verdades desconfiguradoras. Algumas delas dizem respeito ao princípio da inviolabilidade do direito ao bem-estar legítimo. Calma. Vamos entender melhor. Primeiro: o que seria o direto ao bem-estar legítimo? Segundo: como se pode infringir esse direito? Terceiro: como ele é utilizado por oportunistas que pretendem legitimar seus privilégios frente a semelhantes? Quarto: que consequências isso traz ao equilíbrio da convivência pacífica em comunidade?
Como já foi exposto, todo ser tem o direito ao bem-estar legítimo. Esse se configura como a necessidade de condições mínimas para viabilizar a sobrevivência de qualquer ser vivo, como: acesso a alimentos, à água, à moradia digna, ao sexo, à paz e à liberdade de escolha e ir, vir e permanecer. Quanto ao humano, o inventário de necessidades se amplia ao passo que estamos ajuntados em complexas estruturas sociais. Além das já citadas, somam-se: acesso ao lazer e à cultura, à informação e à tecnologia, à educação, à assistência à saúde, ao trabalho, à liberdade de expressão, à justiça, à política, à família, à dignidade e à associação com afins. Elas estão submetidas proporcionalmente às exigências básicas do corpo e da personalidade de cada indivíduo, variando de um para o outro. Em contrapartida, o indivíduo não pode ultrapassar seus limites, adentrar no mundo do outro, adquirir excedentes ou aquilo que cabe ao alheio, promover seu privilégio, erigir seu status, exacerbar sua distinção natural por meio de vantagens adquiridas que cerceiam a igual oportunidade de seu similar em também a fazer, tecer verdades que legitimem sua suposta superioridade, restringir e concentrar o acesso ao poder a sua pessoa e, consequentemente, macular o bem-estar de seu próximo. O indivíduo, portanto, não poderia, segundo esse princípio, possuir além do necessário para viver. Sua distinção forçosa é uma violação direta ao direito ao bem-estar legítimo que cabe a todos.
Os oportunistas forjam a sua autoridade e a sua competência para determinar o que seria o verdadeiro direito ao bem-estar legítimo, reconfigurando seu significado de acordo com suas pretensões. Geralmente, impelidos pela ganância, mesquinhez, vaidade e caprichos, eles colocam suas vontades e seus desejos acima das dos outros e procuram comprovar isso por meio da confecção de verdades após verdades, tornando-se únicos tutores delas, as quais legitimam sua suposta superioridade. Qualidade que é sustentada também pela obtenção de bens (os excedentes e aquilo que caberia ao alheio), vantagens e privilégios, privação parcial do acesso às necessidades básicas de sobrevivência de outros, restrição do controle de poder a si e à esfera que o apoia e uso e abuso da violência física e ideológica. Exemplos não faltam, citando: 1. a existência de indivíduos extremamente ricos, usufruindo de conforto e luxo num mundo onde reina o desperdício e a ostentação em face de outros que convivem com a miséria absoluta numa realidade detratante que lhes logram dificuldades e privações; 2. limitações e cerceamento do usufruto de direitos básicos aos civis menos favorecidos, evitando a eles acesso livre à educação de qualidade, à segurança, à justiça, à moradia digna, ao trabalho recompensador, ao lazer, à dignidade...; 3. fuga do dever dos políticos de representar a vontade do povo em favorecimento da elite, as decisões de o que privilegiar e o que rechaçar na sociedade, como gastar as verbas públicas...; 4. repressão física utilizando a força policial e até mesmo o judiciário, empreendimento de guerras, instalação de governos déspotas; 5. e a montagem de verdades supostamente absolutas, como: I- a crença do Deus único e verdadeiro somada a sua pujante defesa, propaganda e catequização em detrimento das outras crenças, as quais são vistas como inverdades que devem ser extirpadas; II- a ainda viva ideia de que as etnias brancas (sobretudo oriundas da Europa Ocidental) são superiores às não brancas (negros, índios, asiáticos), criando e fomentando o ódio e o racismo; e III- a concepção de que a homossexualidade e os homossexuais são uma espécie de anormalidade nefasta, um distúrbio moral transbordante de desejosos e comportamentos torpes, ignominiosos e esfaceladores do ser, devendo ser evitados a todo custo!
A partir do momento em que os oportunistas recaracterizam o conceito do direito ao bem-estar legítimo, criam outros direitos que nada mais são que a legalização de suas vontades impostas aos marginalizados do poder social a partir duma esquemática e sistemática trama de violência física e ideológica. Uma marca essencial do protodireito é transportada aos neodireitos: a sua inviolabilidade. Dessa forma, quem for de encontro aos direitos que garantem vantagens e privilégios aos poucos que se distinguem na sociedade estará incorrendo em delito e deverá sofrer sanções cabíveis e iminentes. Eis aí uma das importâncias da existência e da utilização de leis, Justiça, Polícia, presídios, manicômios, os quais sempre são usados a favor da manutenção da Ordem Vigente. Como saldo, há extrema disseminação de violência, barbárie e medo. É urgente, pois, suscitar o respeito e o temor nos subordinados. Inevitavelmente, descontentamento é pulsante e quase generalizado. Algo precisa ser feito para trazer equilíbrio e minimizar o mal-estar instituído. Nessa hora, entra a arte da maquiagem da agressão, a qual é feita a partir de justificativas compostas e sustentadas por “verdades históricas, culturais e científicas” artificiais somadas à massivo, inteligente, paulatino, penetrante, contínuo e quase eficiente processo de alienação das massas; além da já bem empregada política do “pão-e-circo”.
O incômodo é que aquele que não pertence à classe dos controladores da estrutura social nem a ela se submete, assistirá a cassação quase total de seu direito primário como ser vivo, assim como dos novos direitos forjados. Sem escapatória, o indivíduo usurpado sofrerá abalo em sua estima, frustrando-se. O rancor, o ódio e uma forte, insistente e crescente vontade de vingança e justiça começam a nascer nele. O atrito é realidade anunciante. Como resposta, ocorrerem violência e delinquência empreendidas por aquele que assume a postura da rebelião. O ente rebelde logo é renegado pela estrutura dominante e encaminhado à margem social estigmatizada e desdenhadora a fim de puni-lo e enfraquecê-lo com o exílio forçado. Para tal, é preciso, antes, justificar essa necessidade. Lança-se mão do processo de monstrificação (torna monstro) do indivíduo infrator a partir do levantamento de características aspecto-comportamentais dele que divergem do standard social. Por meio de verdades forjadas, a pessoa rebelada perde alguns traços que o marcava como “humano” de acordo com o senso, a análise e o julgamento do Cerne do Sistema e daqueles que o segue: os cidadãos. Passa a ser um semi-humano ou até mesmo um ser não humano no instante em que sofre supostas degradações morais, comportamentais, ideológicas, aspectuais. Logo, deixa de ser pessoa e regride para coisa. O anticidadão é percebido com uma nova identidade, a qual o acompanhará sempre: o marginal. Isso é sustentado pela sua aparência tosca, trejeitos torpes, jeitos perniciosos, pensamentos irracionais, desejos demasiado libidinosos, psique insubordinada, confusa e obscura, segundo a perspectiva do cidadão.
(O marginal é um título atribuído aos indivíduos rebeldes que insistem negar e atacar a ordem instituída. Ele é a criatura asquerosa, vil, torpe, tosca, ignorante, bestial, antissocial, anticidadã que merece apenas nojo, repulsa, indiferença, ignorância e, no máximo, migalhas de piedade por parte daqueles que são tidos como cidadãos, pois é visto e sentido como coisa que necessita de ajuda para viver menos miseravelmente em sua existência definhadora. É um monstro, nada além disso. Como tal, deve ser evitado a todo custo. E não pense que o marginal é excluído. Não! Sem poder ser extirpado da existência por completo, ele faz, sim, parte da sociedade humana mesmo sofrendo o processo de desumanização de seu sujeito. Ele passa a ser mais um tipo social entre tantos, o qual detém função específica na estrutura. Habitando num submundo, uma espécie de apêndice ou anexo do “mundo maravilhoso dos cidadãos”, as supostas “pessoas de bem”, o marginal seria o bom exemplo de ente fracassado que não aceitou os “caminhos sadios para se alcançar a felicidade” criados, defendidos, postulados e ensinados por aqueles que criam as “verdades”.)
O irônico: o ser é mutável e adaptável. Geralmente, ele consegue se adequar a novos e hostis ambientes. Não seria diferente nessa ocasião. Sem outra alternativa, o marginal se apropria da nova identidade que a ele é atribuída, se fortalece e, de modo inteligentíssimo e fantástico, a emprega em seu favor. Por meio de sua imagem física repulsiva e de seus atos e costumes condenados frente aos olhos e ao bom senso da sociedade “oficial”, ele consegue devolver o medo, a bestialidade e a agressão aos seus algozes e conseguir deles certo medo, cautela, posição e até mesmo respeito – não o respeito que dignifica a pessoa, mas aquele que é consequência do medo ao estranho e ao desconhecido. – De modo inverso, essa realidade acaba lhe trazendo certa doze de prazer e prestígio em sua realidade, dentro do bioma humano. O marginal agora possui existência própria, independente daqueles que se autodeclaram sociedade organizadamente civilizada, a qual é tão ou mais contraditória, violenta e repulsiva.
III
Pagando a conta
É difícil abandonar o conhecido e encarar o vazio e ter como realidade o recomeçar do nada ou quase nada. É mais cômodo manter o que já se tem do que perdê-lo, mesmo quando não é perfeito e não há satisfação plena com seu usufruto. Também há horror quando nasce a possibilidade do abandono, da indiferença e da solidão. Quem quer ficar sozinho e isolado? Provavelmente, raros sujeitos. Ganhar é a perfeição; perder, o desastre; e manter, a “sensatez”. Mediante isso, o tido e dito cidadão defende sua identificação e status como tal, atacando ferozmente todo e qualquer ser que ameace seu mundo de sonhos e realizações – por que não acrescentar: pesadelos e privações? – O desejo pela profilaxia constante nasce potente e vigoroso, sedento por vítimas, as quais não faltam. Unindo forças e em solidariedade mútua, cada ente se ajunta e forma a sociedade em instância maior. A partir daí, a sociedade em instância maior, com sua perspectiva etnocêntrica, egocêntrica, preconceituosa, limitada, ignominiosa e ambivalente, cerca e caça o marginal, coisa repugnante. O perigoso: existe extrema dificuldade em separar o cajá das siriguelas e as pitangas das acerolas, ou seja, todos são marginais, uns os típicos e outros os temporários ou localizados.
(Sociedade entendida aqui como a reunião, coabitação e convívio de indivíduos que compartilham X características culturais e interesses afins, obedecendo a certas regras comuns no interior de um sistema com sua realidade, no espaço-tempo, além de eles usufruírem de toda uma estrutura física. Só que a sociedade não é um ser impessoal, sem rosto ou corpo como muitos pensam. Muito pelo contrário, ela é a figura de mosaico formada por muitas pecinhas menores. Cada pecinha é um indivíduo com suas peculiaridades. Juntas são a Sociedade em instância maior, ou seja, a voz e a vontade da coletividade ou pelo menos da maioria ou do grupo que acessa o poder e tem o controle do Sistema. Já a Sociedade em instância menor é o indivíduo em si com seus desejos, suas decisões e atitudes próprias. A pessoa é a Sociedade, a qual, por sua vez, é a composição de várias “Sociedades individuais”. E o marginal típico é o mesmo que anticidadão, conceituado logo na segunda parte deste texto. Já o marginal temporário ou localizado não é visto como marginal segundo o conhecimento vulgar/comum, mas apenas alguém que não se encaixa à determinada regra ou padrão, logo é: 1. o cidadão que infringe alguma lei/regra ou se afasta de algum paradigma, mas retornando ao arquétipo depois de algum tempo (ex.: aquele que lesa uma determinada lei, rouba, tem um comportamento que destoa de sua esfera e tipo social, mas retorna à sua posição anterior ou por conta própria ou por força do Sistema Coercivo); e 2. o localizado é quando o indivíduo não se adéqua a Y modelo ou não segue com perfeição ou ignora determinada regra, permanecendo constantemente na margem – geralmente isso se dá em situações que estão sob controle do Sistema (ex.: uma pessoa gorda, baixa e careca. Ela não pertence ao padrão de belo, logo sofre certa repulsa e descriminação por parte de muitos. Ou quando uma idosa, por exemplo, se veste e se comporta como uma jovem de 20 anos por livre escolha. Fato visto com anormalidade por grande parte das outras pessoas, que geralmente a condenam). )
É duro ser cidadão. Todos sofrem vigilância, policiamento, castração, inibição, mutilação, orientação, sanção e penalização constantes em menor ou maior grau. A dosagem delas será medida e dispensada a partir de como e quanto o ente social está para os padrões, regras e caprichos da Ordem Vigente. Esteja onde for na pirâmide hierárquica da sociedade, o indivíduo pagará sua conta pelo “aluguel” de sua cidadania, a qual, proporcional à distância que exista, é mais onerosa para aquele que mais se distancia do poder e dos padrões instituídos. Os mais pobres, com menos bens, menor grau de instrução e com pouco ou nulo direito a decisões, geralmente considerados os menos belos e mais bárbaros, são os que pagam a maior fatia da dívida cobrada, mesmo sendo os que menos usufruem das delícias e delírios que o mundo moderno e deslumbrante oferece.
A fim de encontrar e punir exemplarmente os infratores da Ordem, cria-se o complexo Sistema Coercivo presente em todos os rincões da sociedade, inclusive internalizado e arraigado à introspectividade da Sociedade em instância menor. Os mais comuns são: os paradigmas de belo, beleza e perfeição; ética e moral; leis; Poder Judiciário; força policial; presídios; manicômios; escolas; e mitos e verdades. O Sistema Coercivo é largamente utilizado. É potente e ostensivo. Possui força e relativa eficiência; por outro lado, também apresenta falhas significativas, deficiências, possibilitando constantes crises e existência de mundos paralelos, como os dos marginais típicos.
Quem pode negar que o padrão de belo, beleza e perfeição segue rígidas diretrizes dos fenótipos do Ocidente, o qual, por sua vez, já é limitado porque elege X características que não incluem toda a diversidade de gente que ocorre lá? Imagine esse padrão, ao longo de séculos, sofrendo modificações até mesmo artificiais e desconfiguradoras do corpo humano – cita-se a magreza aguda da maioria das estrelas da moda –, afastando-se ainda mais da realidade da grande maioria. Depois pense que esse arquétipo é transportando quase sem sofrer ajustes ao mundo não ocidental e ocidentalizado, como é o nosso. E, prendendo-se ao Brasil, pode-se perceber como o paradigma de belo, beleza e perfeição ocidental não é nada democrático em face de nossa realidade multiétnica e mestiça, marginalizando cruelmente a muitos e fazendo emergir sentimento de autonegação e complexo de inferioridade naquele que não é branco. Imagine o negro, o índio, o asiático e os seus descendentes miscigenados quando se olham ao “espelho”, veem televisão, contemplam seus artistas e, sem poder evitar, notam que não têm nada a ver com eles, que eles são bem diferentes de si. Isso choca, traz transtorno e até mesmo crise de identidade. Quantos não se mutilam ou se desconfiguram a fim de buscar uma aparência artificial que o aproxime do “Belo” instituído? É corrente ver nas ruas: negros e mulatos alisando o cabelo e afinalando o nariz – esse último recurso para quem tem bala n’agulha; asiáticos que arredondam os olhinhos puxados; gordinhos e gordinhas que fazem mil-e-uma dietas para emagrecer a todo custo (isso sem falar na polêmica lipoaspiração) ou aqueles que são maníacos por exercícios e academia de ginástica, lançando mão de energéticos, suplementos alimentares e até mesmo anabolizantes, todos colocando sua saúde e vida em risco; baixinhos e baixinhas que compram só sapatos com salto e até rejeitam namorar pessoas mais altas que elas – geralmente, é o homem que não gosta de ter uma mulher mais alta que ele como namorada ou esposa. Febre geral: é preciso ser bonito, belo e ter uma aparência perfeita a todo custo, não importando o que seja necessário para isso. Faça e alcançará a aceitação, o prestígio e a felicidade. Será mesmo? (risos). Pode o apontado como feio, o mutilado, algum dia chegar ao belo? Rejeitando-se, abandonando-se e buscando o que jamais será em perfeição, como comumente é feito, ele sempre será o simulacro errante, nunca transgredindo essa natureza.
Quem discordaria que a moral está sofrendo fortes abalos, passando por considerável crise? É fácil notar que muitos valores sociais, antes considerados incólumes, modificam-se ao sabor das tendências contemporâneas e da vontade de se buscar o novo e o diferente, por exemplo. A efemeridade parece ter ampliado seu espaço e importância no senso analítico-crítico do cidadão, influenciando bastante a tomada de suas decisões e escolhas. A isso se soma o fato de que muitos defensores da moral levam vida dupla. Senhores e Senhoras de famílias e setores tradicionais que gozam de prestígio social praticam (às escuras, escondidos de muitos, numa vida paralela) muitas coisas que eles mesmos condenam com veemência, aterrorizados. Há casos burlescos e até mesmo repugnantes tamanha sua tacanhice e seu mal caratismo: 1. militares de alta patente que se dizem machistas, másculos, viris e severos e que não possuem a mínima discrição em transpassar sua ojeriza à homossexualidade, e, no entanto, são viados encubados em plena atividade, não dispensando chupar uma pica, dar a bundinha ou comer um cu; 2. religiosos que pregam a vontade do maravilhoso Deus, e caem nos prazeres da carne, abusando sexualmente de crianças e afogando-se na liberdade do álcool; 3. Juízes que deveriam prezar pelo excelente exercício da Justiça, e são um dos que colaboram e corroboram para sua ruína a partir do momento em que são vencidos pela corrupção e pelo autofavorecimento; 4. advogados que teriam como uma das obrigações representar e defender seus clientes sempre por meios lícitos, vendem-se por altos preços, distorcem fatos, mentem, montam outras verdades e fazem do culpado a vítima; 5. educadores que defendem a liberdade, a diversidade e a alteridade, e são completamente preconceituosos quando o que se está em discussão é a aceitação e assimilação do que vem do povo e são obtusos principalmente quando tratam de assuntos de seu círculo familiar. E quanto à ética? Essa também não anda bem das pernas, não! A ética possui uma maleabilidade incrível! Adapta-se com velocidade às circunstância. Quanto mais conveniência ofertar determinada situação, mais ela a acompanha de mãos dadas. É inevitável perguntar: I- onde está a ética profissional dos médicos que juraram zelar pela vida e pela saúde humana, mas se recusam cruel e escrachadamente a atender um moribundo miserável que não tem plano de saúde e chega às portas de seus hospitais moderníssimos e chiques clínicas? II- Cadê a ética de líderes de governos democráticos que juram agir apenas sob a orientação do respeito à vida e à dignidade humana, mas fingem não ver atrocidades aberrantes cometidas por governos ditatoriais, importando apenas o quanto vão lucrar com o comércio com eles, e até mesmo financiando-os em sua barbárie ou cometendo as suas próprias, seja em sua nação, negando o que é de direito aos cidadãos, principalmente os mais pobres, seja em terras além, irrompendo guerras sangrentas? III- Onde se esconde a ética de pessoas que se jactam de suas grandiosas mentes que voltam a agitação de sua inteligência para produzir aquilo que devasta a vida: armamentos bélicos de destruição em massa e drogas e entorpecentes cada vez mais viciadores e dilaceradores da saúde e do bem-estar? A hipocrisia e a mesquinharia reinam absolutas sob o dengo da vaidade e a orientação da conveniência.
Quem, em algum momento, não se indignou com as leis, vendo-as como incompletas, obscuras, confusas, contraditórias, arbitrárias, restritivas demasiadamente, injustas, falhas, afuncionais, inadequadas? Leis são criadas com o único fim: manter a paz e a segurança do Sistema, garantindo sua ordem. E quem controla o Sistema? Poucos que possuem acesso ao poder, os quais legitimam sua vontade e conveniência por meio da confecção de regras, as leis. Por isso, a sensação de não representatividade da vontade daquele que se sente lesado. Ato contínuo, o “lesado”, quando pode, busca o serviço de advogados oportunistas – salvo exceções –, que, com manobras sapientíssimas, contornam as leis, livrando o “lesado” da penalização que sofreria caso condenado. Já para os que não podem comprar esse serviço caríssimo, resta resignar-se e cumprir a pena que acreditam ser pura manifestação da mais cruel injustiça ou simplesmente se tornar mais um fora-da-lei, ignorando-a e vivendo como podem, sempre escondendo-se de alguma forma – fuga, adoção de identidade falsa, apoderação de “perfil” inabalável, falsa moral.
Quem não considera o Poder Judiciário lento, arcaico, burocrático e complexo demais, falho, injusto e até mesmo imparcial, arbitrário e corrupto? Existem insatisfação e muita injustiça, sim, com o exercício da Justiça. Ironia. Ela é produto da mente humana e como tal está sujeita à natureza humana. Elucidando, pode haver a melhor das intenções, também pode ser pensado da forma mais perfeita possível com a orientação de grandiosas mentes e apoiada por esforços sinceros e bem-intencionados, mas qualquer coisa que o humano crie estará sujeito a erros. Infelizmente, onde há a presença de pessoa com acesso ao poder e sua conveniência, de um lado, e, do outro, aquele que teme por sua posição e segurança ou deseja tirar vantagem da situação, ocorre chantagem, suborno, corrupção, sem dúvidas. Justiça torna-se o avesso.
Quem não pensa que a Polícia, muitas vezes, abusa de seu poder, é prepotente, é arbitrária, é mal treinada, é mal-equipada, é intransigente, é ociosa, é violenta, está desonesta? Erros esdrúxulos cometidos por policiais incompetentes ou burramente sustentados por sua arrogância acontecem um após o outro. Confusões. Mal-entendidos. Deslizes. Falta de zelo. Barbárie mesmo. Casos cada dia mais comuns em que os policiais assumem a postura e o comportamento daqueles que deveria perseguir e coagir são realidade corrente. Muitos policiais são verdadeiros parasitas e/ou criminosos que se aproveitam do poder (competência, autoridade e legitimidade) que o Estado lhes cede a fim de promover suas vontades em detrimento daqueles que deveriam proteger. Os cidadãos, por sua vez, são as vítimas. Quem hoje se sente protegido, seguro, vive em paz, crer num mundo melhor para seus filhos, netos e bisnetos, posteridade? A insegurança, o medo e o desacreditamento predominam. Na atualidade, é forte o sentido dos dizeres: “cada um por si e Deus por todos” e “salve-se quem puder”.
Quem não assiste ao colapso de nosso sistema prisional e vê que muita coisa está errada? Os presídios estão bem distante daquilo que impeliu a sua construção. Fracassados, eles não cumprem com o mínimo de eficiência na sua incumbência. Muitos presidiários de alta periculosidade, que deveriam estar afastados da sociedade, continuam mantendo contato com células criminosas e ditando vigorosamente como a violência deve caminhar. Pior: isso de dentro dos presídios, sob a tutela do Estado, valendo-se de celulares (alguns verdadeiros computadores de mão) e do auxílio de advogados corruptos que trazem informações valiosas e levam suas ordens! Também, os presídios falham em sua função reeducadora e restauradora dos criminosos, que, ociosos, não retornam regenerados à sociedade. É, sim, o sistema prisional a melhor universidade para aquele que deseja empreender o crime e a bestialidade, podendo se pós-graduar de diversas maneiras. Inevitável é a indagação: como lugares insalubres, desumanos, superlotados, que ostentam ociosidade, dirigidos muitas vezes por administradores e mantidos por funcionários incompetentes e corruptos – salvo exceções –, sem uma política e estrutura que reeduque e trabalhe a autoestima e autoconfiança daquele que é levado a crer que é um monstro irrecuperável pode fazer do criminoso um indivíduo recuperado? Faltam bons exemplos em face do qual os criminosos possam se espelhar, e sobram muitos maus exemplos, dentro e fora dos presídios, que reforçam a ideia que a impunidade é mais certa que a Justiça e que o crime compensa – basta dá uma olhadinha em Brasília (risos).
Quem já não pensa que os manicômios são formas cruéis e ultrapassadas de lidar com aquele que é considerado preconceituosa e inconsequentemente: louco, débil mental, lelé da cuca, “mongoloide”? Similar aos presídios em muitos aspectos, os manicômios tratam – ou destratam? – de distúrbios mentais a partir do abuso irresponsável de drogas e técnicas médicas e terapêuticas que muitas vezes não consideram a individualidade, a subjetividade e a história de vida do enfermo. O louco é o desconhecido, o temido, o perigoso e a manifestação máxima da degeneração e improdutividade humanas, além de requerer para si o gasto dispendioso e desnecessário, sendo apenas mais um que deve ser marginalizado da “perfeição social”, assim a Ordem Vigente crê, deseja e lança esforços vigorosos para que creiamos nisso e faça-se acontecer. E o direito à loucura nasce por meio dum aborto. Falecido está. Devanear é proibido.
Quem não possui alguma reclamação a fazer acerca das escolas e o sistema de educação? Muitos locais voltados para prática do ensino estão carentes de boa estrutura física e pedagógica. Sucateadas e dominadas pelo pensamento impositório e retrógrado que toma a criança e o educando como tábua rasa, as escolas são o local de castração e desprazer. Conta-se de dedo quem vai a elas alegre e satisfeito. Ainda predomina a ideia de que o professor é o senhor do conhecimento e o aluno, apenas o receptor. As salas de aula parecem campos de treino militar ou campo de refugiados. Não há estímulo à autonomia do estudante. Esse não é orientado a pensar, analisar, criticar, discutir, pesquisar, produzir por conta própria. Não há liberdade criativa. Não se estimula a genialidade mental e artística ou físico-esportiva. Tudo ou quase tudo lhe é passado de forma superficial a fim de que ele decorre, e não assimile de fato. A escola é o ótimo lugar para fortalecer e fomentar preconceitos históricos, mitos e verdades que sustentam o Sistema Vigente. Lá o que se chamam senso comum e imaginário coletivo, com suas contradições e tacanhices, ganha fôlego. Cita-se o mito do brasileiro que não sabe falar a língua portuguesa corretamente. – Após o nascimento, a criança é exposta a língua espontânea do ceio familiar e aprende sozinha (apenas escutando e observando) a língua dos pais, dos mais íntimos e dos que fazem parte de sua esfera social de maneira natural, dominando-a com perfeição. Tempo depois, ela adentra no sistema de educação e leva logo um tórrido baque: “você fala errado, menino(a). Não é assim que se diz! Observe:... É esta a única forma correta, viu?”. Aí começa a perseguição linguística e o preconceito linguístico é introduzido. Esse mal é tão arraigado à mente dos brasileiros que poucos são aqueles que detêm noção de que sua forma de falar é, sim, uma de muitas maneiras válidas da manifestação de seu sistema linguístico. Contudo, a Norma-padrão (anormal e antidemocrática e utilizada em situações formais e oficiais) condena as variedades populares da língua. Assim, regida pela gramática natural, a forma espontânea de falar entra em conflito com o que a gramática normativo-prescritiva estipula, e a pessoa passa a achar feia sua expressividade linguística, substituindo-a parcialmente por uma estranha e difícil (porque é impossível se ter domínio completo do ideal). – Não há como a escola não ser chata desse jeito! Claro, há, sim, exceções. Excelentes educadores já pensam sobre os problemas, esboçam possíveis soluções e até enfrentam-nos de frente. Principalmente em ricos centros de ensino – mesmo a educação sendo mais um produto mercantilizado no capitalismo –, já existem mudanças positivas. É, sobretudo, nas escolas púbicas carentes que o problema é mais embaixo. Faltam desde professores qualificados, material básico de higiene até políticas educativas sérias e eficazes. Sem uma consistente e sadia educação, não passaremos do país do futuro – o futuro que nunca chega.
Quem não conhece alguém que é firme em suas crenças mesmo elas fugindo à lógica, à racionalidade, à intuição de igualdade e medida, ao senso de justiça, à ponderação, ao bom senso e, muitas vezes, agredindo o bem-estar de outros? Muitas são as verdades forjadas para validar/legitimar a vontade e os caprichos de alguns em detrimento de muitos. Elas geralmente são acompanhadas de mitos, os quais pintam de pitoresco, burlesco, fantástico e/ou pernicioso a ocorrência de elementos que vão de encontro aos seus postulados. Mitos e verdades estão tão presentes na sociedade, tanto em instância maior como em instância menor, no imaginário coletivo como na introspectividade particular de cada ente, que é difícil percebê-los e escrutá-los com facilidade, percebendo suas intenções mais íntimas, sutilmente perigosas, que afeta de modo substancial a vida de todos! Mitos e verdades são montados, propagados e mantidos de tal forma que passam despercebidos a todo momento. As pessoas reproduzem-nos a todo o instante quando lançam mão de atividades simples à complexas: o supostamente natural modo de andar, comer, falar e pensar; um simples e aparentemente ingênuo cumprimentar; a descontraída forma de olhar, ouvir, notar. E inevitavelmente aplicam ao outro, assim como também sofrem, os efeitos nocivos que chegam com a ativação desses discursos. Discursos esses montados numa linguagem atraente, sólida, maquinal, arquitetada, funcional, proposital em maneira ou sutil, ou direta, ou enigmática, ou dúbia; todos passados pelo processo de naturalização (tornar algo forjado em natural). Eles passam , dessa forma, a ser supostamente espontâneos e inatos, como se fosse algo inerente à natureza humana e indispensável para manutenção da vida e do bem-estar, como é a necessidade de dormir, comer, beber, comunicar e comunicar-se. Contudo, até aquilo que é de fato natural, sofre modificações e passa pelo processo de forjamento a fim de imperar a favor das verdades e mitos. Logo, é difícil apontar o que é natural em face do naturalizado. E os discursos estão fortemente internalizados, inculcados e arraigados às mentes, compondo as estruturas dos desejos, influenciando as ações. É difícil escapar dos tentáculos da verdade e dos mitos, e aceitar aquilo que seja seu oposto. Citam-se os seguintes mito-verdades: 1. o brasileiro que não fala a língua portuguesa corretamente; 2. a superioridade étnica do branco-ariano; 3. a promiscuidade, ignominiosidade e degeneração própria da homossexualidade. Para muitos, dificílimo é negar e escapar desses mito-verdades e aceitar como válido tudo aquilo que eles negam com veemência. Não é à toa que há tanta ignorância, intolerância, arrogância, medo, ódio, rancor, insatisfação, frustração, conflito, violência.
IV
Saldo
A barbárie, por sua vez, é mantida e fomentada. O ciclo infindável da dor se perpetua não por via dos que são apontados como marginais típicos, e, sim, por todos os humanos. São as maquinações da mente e dos desejos etnocêntricos e egoístas, as quais visam a superioridade e o proveito próprio daquele que ostenta certo acesso ao poder em detrimento de outros, que promovem a frustração e o mal-estar. Todos são o Deus criador e mantenedor da frustração e da infelicidade no outro e em si mesmo. Absolutamente, todas as pessoas são marginais, sofrem marginalização e são agentes marginalizadores. Não há quem não se limite, não seja nem esteja castrado, não tenha um pouquinho que seja de covardia. A cada instante, ocorre o suicídio de si. Pouquinho a pouquinho, um eu que faz do indivíduo ser humano morre à medida que existe a renúncia do sincero impulso da vontade de manifestar-se como existência, à sua vontade, livre. Espontaneidade é luxo e devaneio. Não pode! (risos)
Outrossim, o marginal típico está de parabéns! Não há como negar. É ele um sobrevivente duma guerra massacrante, desleal e vergonhosa suscitada e mantida por aqueles que usufruem do poder social. Sua vontade de existir e sobreviver, mesmo em meio tanta adversidade, é maior que a conveniência mesquinha e perniciosa de alguns. Ao marginal, a vida confere-lhe os títulos de guerreiro e vencedor, pois conseguiram evitar a morte definitiva e souberam conviver com a morte de cidadania sabiamente.
Por fim, todos os humanos desejam a realidade definhante ao passo que aceitam a Ordem Instituída, a qual passa bem longe de ser um mal necessário. Não mesmo! Há, sim, outras formas de se viver a humanidade e a própria existência. Maneiras a partir das quais pode haver muito mais respeito ao princípio do direito ao bem-estar legítimo de cada ser vivo, humano e não humano. Mas, para que isso venha a se tornar realidade, é preciso que os insatisfeitos (todos) reconheçam sua enfermidade e irrompam a revolta, desejando a mudança sincera e renovadora. Caso contrário, tudo será como é, e a alegria continuará sendo mercadoria cara para quem pode pagar preços altos, assim como a felicidade nunca passará dum ideal. E a humanidade jamais escapará de ser a triste manifestação máxima da frustração. Agora reflitamos: até onde iremos? Só a agitação dos que se permitem à sensibilidade poderá ariscar um palpite. Você se permite a sensibilidade? Senão, não sabe a dé-lí-cia que está perdendo... (gargalhadas)
Diógenes Silva. Ssa, 18 fev. de 2010.
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