quinta-feira, 10 de junho de 2010

SIM, MAIS UM! [CONTO]

Ainda posso sentir o cheirinho maravilhoso e o delicioso sabor daquele monstruoooso pedaço de CARne todinho em minha boca, hum... Era mais que realização, foi A Glória! Senhorrrr! Único, inesquecível! Momento mais feliz na vida nunca tive. Pena... Durou tão pouco. Valeu. Foi demais meeezzzmo!!! Foi num dia que eu cheguei em casa retaaado. A noite e a madrugada não foram das melhores. Melhor nem lembrar dessa parte. Pulo logo inferno e mergulho de vez no céu – apesar que o inferno não deve ser tão ruim assim como dizem nem o céu tão bom como desenham. Ah, deixa pra lá. Eu e as percepções e os fetiches estranhos. Ririri... – Sim... Deitei. Num tapa, fui levado pro paraíso na primeira classe. Sem me dar conta de como, eu já tava lá. Era uma mansão enorrrme: jardins que colocariam no chinelo os lendários da Babilônia, um rio translúcido, povoado por peixes vários, cortando todo o gramado arborizado e frutífero, cercando a casa. Muitas flores, rosas, orquídeas, enfim muito verde e outras cores, cheiros e formas. No interior, muito luxo, requinte e riqueza: móveis de época, quadros de Da Vinci, Michelangelo, Picasso, Dali, Portinari, outros, esculturas, prataria, ouro, pedras preciosas, peças decorativas de todo parte do mundo, muito mármore, longas cortinas, tapetes persas, artesanatos, muitos objetos decorativos, espetacular mosaico de épocas, estilos e gostos harmonizados, sem suscitar o brega e o confuso. O inverso, passando bem ao largo deles. Beleza em diversidade aos bocados. Bem que eu não ligo muito pr’essas coisas – creia! Logo Moi? Nunquinha. Eu quero é mais! – Eu, o Imperador Senhor de Tudo. Todos aos meus pés, súditos fiéis, amáveis e sadios. Bajulação pra todo laaado. As gatinhas, hum... Cada uma melhor que a outra... Todas na mão: ali, aqui, lá, mergulhado nelas. Eu tava louco já! Tudo que desejei e pedi – é... Bem... Talvez não tudo, mas muita coisa. – O buffet?! Melhor que o dos Césares. Espetáculo! Sublime! Uma mesa imennnsa abarrotada de todo tipo de carrrne preparada de todo jeiiito que possa imaginar (e também sem puder imaginar). Qualquer carnívoro adoraria estar na sua borda e no seu alcance. Estupidez! O que foi aquilo?! Loucura! Mas o esquisito era que bem no centro não tinha nada. Um espaço vazio! Aquilo me intrigou bastante. Por que justamente aquilo? Para quê aquele pedaço sem nada logo no meio da mesa, em destaque? Qual função tinha? O que queriam com ele? A mente tava nervosa: ora presa as maravilhas que chegam a ela pelos sentidos todos eriçados em excitação, ora atraída pela curiosidade lasciva do esquisito. Alguma coisa ia acontecer. alguma surpresa me aguardava, isso minha intuição fofocava. Dexa quéto. Estava Ânsia potencializada. Agitação! Ia curtindo tudo em minúcias. Não me deixava escapulir qualquer que fosse o detalhe. Tava esperto a tudinho. Sempre vinha algo diferente, novo, inusitado. A expectativa aumentava abruptamente a cada desvendar. E pra fuder logo com o cara, não demorou e foi a vez do Il Grande Finale arrasador. Abalou as estruturas. Entraram os fortes servos e as doces servas mais hermosos que já vi, trazendo consigo uma bandeja monstruooosa. Nela, nada menos que um bife fresco, ainda sangrando, pulsando, que eu tenho certeza: não era dum boi. Aquilo deveria pertencer a um Mamute, e um dos gigantões, porque era ignorância. Colocaram ele justamente no meio da mesa. Festa pra meus olhos, escândalo pra minhas narinas e deleite pra minhas presas, que já salivavam ansiosas. Ai... Não me contive. Cedi a todos os instintos. Não poupei energia. Como A Madame transloucada que não guenta ver lançamento de bolsa e sapato de grife, fui direto, sem cerimônia, pra cima daquela excelência da Natureza. No começo, fui voraz. Expus toda minha Animália. Depois fui me satisfazendo e fui namorando aquela obraprima que teimava não se acabar, mesmo eu já tendo devorado um monte dele. Fui o último dos românticos. Estava apaixonado. Não me cabia mais em mim. Perdi a noção do mundo: era eu e o bifão, só nós dois em namoro. Aiii... Que deleite! Que prazer! Que gooozo! Realização. Simplesmente FE-LI-CI-DA-DE!!! Mas a desgraceira aconteceu. Sabiiia... Era demais pum pobre coitadinho como eu. Tinham que estragar tudo.




Aos pouquinhos, chegava aos meus ouvidos um sutil barulhinho, insistente, que não parava. Ai... Apenas ele ia aumentando e me retirando da terra prometida, na tora mesmo, porque eu não queria (jamais!) abandonar tudo aquilo – o mundo que se lixasse, era a minha vez. Não tava nem aí pra nada. Queria era ficar sozinho, na boa, curtindo meu presentão! – De novo: abuso, insistência. Marteladas. Não: marretadas com todos os braços do mundo operando a desgraçada! Eu não sabia o que era ele ou ela ou o quê, sei lá. Sei bem que me importunava na hora errada, justamente naquele momento mais que sublime, excelso! Senhor, o que fiz para merecer brutal castigo? Logo eu, criatura tão transbordante de caridade e amorrr – bem, talvez nem tanto, mas o suficiente para me arrancar da rinha dos cães. Ok. Confesso. Cometi alguns deslizes. Nada que exigisse castigo à altura. Exagero, sim! Sacanagem das miseravonas comigo. Destá! Pra frente nós vai, como diz a preta de lá de casa. – Não poderia ser outra vez, como na hora do banho? – Odeeeio banho. Não sei pra que esse erro? Acho que inventaram isso só pra aporrinhar com os desavisados. – Mas não... Papito aqui tinha de ser massacrado. Vai: joga pedra na Geni – ui... Só pode ser encosto. Trabalho dos bons, talvez um boi inteirinho! Ta repreendiiido! Xô, mal! – Tentava ignorar ele o máximo que podia; cada vez mais, exigindo força maior, mas ele vinha que vinha, teimoso, o danado. Agora trazia consigo um friozinho gostoooso – ai... dé-lí-ci-a! –, que só fazia me convidar pa ficar de vez na caminha quente e macia de Mãinha. E como vontade tem pressa, eu me encolhia fazendo enroladinho de mim. Buscava proteção no calor de meu próprio corpo sobre todo aquele univerrrso de maciez... Voltei pro paraíso. Caía de boca naquele manjar... Me espalhava todinho. Era a Felicidaaade com todos os biquinhos de manha. De repente, o miserável retorna. Chegava mais potente, armado com gotinhas de água geladinha que espiravam todas sobre mim. Fiquei firme. Não dei a mínima. Penetrei mais ainda em mim construindo fortaleza. Até relaxei. Aproveitei aquela zuadinha compassada, ritmada dele – tenho que confessar: é até gostosa pra dormir, faz ninar – e me embalei no meu presente. Mas quem disse que o açougue tava pra gatos? A desgraçada da janela, aberta, em conspiração com ele só pa me sacanear, deixou o ordinário entrar com tudo, em turbilhão. Aí já foi. Fiquei pobre, sem nada. Num salto, arrepiado, assustado, desnorteado por todo, arregalei os’ói e claridade veio com toda: foi a tristeza, e, pra minha surpresa, não era ele, e, sim, ela, a chuva. Fechei minha cara imediatamente. Indignado, fui prum canto da cama bem longe onde ela não me alcançaria. Apenas eu mirava ela com pinta de sedento justiceiro, porque ela tinha que me pagar. Ah se tinha! Agora, como? Isso eu lá não sabia. Só pensava em me vingar. Como já se viu! Abusar quem tá quéto. Não fiz nada pra ela. Apenas tava na minha. Curtindo o que se é raro possuir em completude, sempre uma vez na vida, e olhe lá. Mas tiiinha que me roubar o prazer. Porra! Que ódio! Não me restava mais nada. Nem saco mais tinha pra lembrar de alguma coisa boa. Perdi meu dia. Me resignei.


Cansado de pensar besteira que não renderia peixe, resolvi dar um giro pela casa já que não podia sair mesmo, tava chovendo, e me molhar? Nunquinha. Tomei banho semana passada, o erro! Outro que não venha tão cedo. A casa tava numa mesmice só. As Crianças brigando pra ver quem ficava com o controle e quem seria o ditador da tv, entre arranhões, tapas e puxadas de cabelo e muita xingamento, faltava apenas sangue – e quem sabe homicídio triplamente qualificado, o que não demoraria (cá entre nós: aquelas pestinhas eram Os Cães! Desse espaço pra elas e neguin ia ver o que é taxo de torrar farinha de mandioca bem nas virilhas!);,va toda, acontece algo de bom, o que duvido muito. mas a caseira. olhei ,inho em minha boca, humm Patrão, cheio de cerveja e amendoim, castanha, salsicha no rabo gordo, no quarto vendo futebol, porque era domingo e o Timão tava na Arena. Nadinha no mundo faria ele perder seu verdadeiro amor em atuação, nem a aparição das pernas de Ivete Sangalo – será mesmo? Tenho lá dúvidas; – e Mãinha, coitada, incompreendida e nada reconhecida pelos abutres da casa, lá na senzala suando preparando o rango da galera da casa, parecendo uma louca que fugiu do Juliano! Fora, é claro, Tia Fifi, que chegaria com sua renca pra filar a boia. Terror: dia de domingo chuvoso, nada de interessemocionante pra gastar tempo e, pra acabar de me matar, casa lotada de parentada num zunzum interminável, que sempre acabava em alguma confusão, tava rebocado! Já vi essa tragédia outras vezes. Fazer o quê? Que venha a tempestade. Bem, tudo na sua norrma-li-da-de. Eu sem nadica de nada de petiberiba pra fazer. Então, fui ver se Esperto estava esperto meeezmo. Cheguei de mancinho... Sem que ele nem ninguém me percebessem. Olhei sorrateiro... – A barra tinha que tá limpa. Tran-qui-li-daaa-de... – Me fazia de desentendido, dissimulando, como se não tivesse nem aí pra ele nem pa porra nenhuma, apenas de bobe pela casa. Dei alguns passos, reconhecendo o terreno... Nada de diferente. Ele lá, no glu-glu dele interminável e irritante (entra água, sai água), indo de um lado pro outro de sua baiazinha quadrada e cheia de enfeitinhos de maugosto, como um bobalhão. Aproveitei a situação. Fixei bote e, numa ligeireza que só eu tenho, me arremessei com tudo pra cima dele. Ai! Maior mole. Quase quebro o focinho. Tinha me esquecido, na cegueira de minha esperteza presunçosa, que tinha um tipo de parede invisível que arrodeava a baiazinha onde ele tava dentro; isso não me deixava pegar ele de jeito algum. Miséria! O sacripanta sabia disso. Ficava na dele, só esperando minha desgraça pra se esparramar em satisfação. Gozava de minha cara e da minha vergonhosa impotência, falência, pra não dizer burrice mesmo. Sempre eu caía no igual erro, vai saber por quê. Vacilo meu. Dexa quéto. Eu idiota e ele o Todo-todo, assim terminava o capítulo, mas não a História. O Mar virou Sertão, diz muita gente. Também a baía encantada dele vai se tornar um Salar, ah se vai... Deixa que o dia dele cheeega. – Engraçado... Ainda me pergunto por que chamavam Esperto de esperto. Aquela cara de sei-lá-o-quê. E ele que é o esperto?! Aiaiai. – Beleza. Já recuperado, estima Clodovil Hernandes outra vez e vaidade Gisele Bündchen, continuei minha jornada caseira. Olhei alguns cantinhos, por cima, embaixo e atrás dos móveis, nada. Nenhum ratinho, nem baratinha, nem mosquinha. Nada pra me distrair. Tinha lá, largado, o rolo de lã. Não. Cansou. Olhei o teto, limpo. Fui no banheiro, ok. Nos outros quartos, tudo certo. Rodei a casa toda, zero! Que tédio! Restou somente me achegar interesseiro pra junto do pessoal, maquiado de carinhos, perfeito. E o que recebi em troca? Repulsa. Ninguém nem aí pra mim. Afff! O jeito é voltar pro quarto e ficar de boresta na janela que pouco antes me traiu. Quem sabe, naquela chuva toda, acontece algo de bom – o que duvido muito. – Mas sei lá, né, tudo é possível. Me permiti.


O quarto tava num silêncio só. Tudo no seu lugar, estranhamente normal, até demais. A escuridão era quase completa, uma pinta de filme de terror – era a regravação pasteurizada do Exorcista nos trópicos? Babado. – Bem, quanto mais longe da janela, por onde entrava um pouquinho de claridade marreeenta, menos luz tinha. O ambiente era friozinho e úmido. Me arrepiei um pouco. Tive um filete de medo. Entrar de primeira? Jamais! Não... Tinha que ter certeza. A barra tinha que tá limpa. Olhei com distância. Parecia beleza. Quando coloquei minha perna na parte de dentro, voou loucamente um saco cheio de papel do alto do guardaroupas. Gritei nervosamente – dizem que macho não grita, né? Mentira. Naquela ora eu fui Edson Cordeiro sendo atacado por Preta Gil, imaginem a cena! Kakaka!!! Hilário. Daria todas minhas coleções pra assistir isso de camarote! – Corri doido e espichado pra bem longe. Não sabia o que fez aquilo – como não há consenso sobre a existência ou não de coisas sobrenaturais, melhor ter cuidado. – Parei. Pensei. Ponderei. Retornei. – Que bom que ninguém viu ou percebeu de alguma forma a demonstração de pânico e covardia de minha parte. Rsrsrs – Um pouco longe, observei com rabo de olho. Ainda tinha uns papéis voando sobre todo teto. Lembrava um forró pé de serra, só que no ar e com papéis. Até que tinha sua beleza. Fiquei um tempinho admirando. Isso foi me acalmando. Quando eles finalmente cansaram e desceram pro chão, eu vi que não foi nada demais. Deveria ter sido o vento mais forte que entrou e carregou o saco, abriu ele e espalhou todos os papéis que tinha dentro. Foi isso – pelo menos acho. Acreditei. – Com uma gotinha de receio, ainda estava eu, mesmo assim entrei, dei uma geral. Nada. Tranquilidade. Fui enchido de coragem outra vez. Eu era o dono do pedaço. O que poderia acontecer comigo ali? Era apenas um quarto de dormir. Pulei na cama. Gostosa como sempre, apenas estava gelada, uiii! Detesto. Desci dela e, num salto, já estava na janela. Pela primeira vez do dia, vi o mundo lá fora.


Da janela, sentia o vento friozinho e via a chuva pequenina. Ventava (não tanto quanto antes); chovia (era uma chuva preguiçosa). O ritmo das coisas parecia outro, muito mais lento. A impressão era que faltava energia pra todos e tudo. Não se via aquela ferveção dos dias ensolarados e quentes. Todos recolhidos. Tudo molhadamente chato. Tédio pleno. Não gosto da época das chuvas. Aliás, acho que ninguém gosta de chuva. Pra que chuva? Tudo e todos não poderiam ficar eternamente secos? Acho que dessa forma todo mundo seria mais feliz – pelo menos eu, né? – Mas não... Tinha que chover. Água? Só pra beber e olhe lá! Chove e tudo fica numa morte em vida da porra: alguns dormindo o dia todo, outros tantos presos em suas casas fazendo nada, ou vendo tv, ou ouvindo música chata, ou lendo bobagem tipo revista de fofoca e sobre novela, ou resenhando no telefone, ou se ocupando da vida dos outros, ou comendo demais pra depois se arrepender e querer fazer mil-e-uma dietas pra emagrecer – não sei qual pior! – Sei que nos dias como esse, não tem criança brincando na rua, pivete perturbando os outros, não tem passarinho no céu, não tem ir-vir frenético de gente ansiosa, não tem futebol no campo de barro ou na rua mesmo, não tem cachorro perambulando pela calçada cagando tudo e mijando os pneus dos carros – péra! Isso é até bom. Rsrsrs... O mundo sem cachorro seria maravilhoso. Agora, ter isso às custas de dia chuvoso, jamais! Prefiro os cães burramente latidores. Aliás, por que será que eles latem por tudo, heim? Afff. Eles não sabem como me aborrecem. São feios, bobalhões, puxasacos, dependentes, sujos, fedorentos. Totalmente diferentes de nós. Somos superiores. Totalmente limpos e possuidores de liberdade. Somos o que há! – Ops! Voltando... Onde parei mesmo? Ah, sim... A cidade praticamente fica na UTI. E eu obrigado a ficar em casa. O tempo custa a passar. Aparece é coisa desagradável aqui, ali, lá, em cada um de nós mesmos. Reparamos todos os defeitos que possam existir. É o momento da depressão, sem se falar no desespero. O jeito é continuar pensando besteira e ficar mais triste que já está, ou virá zumbi logo de vez, ou dormir, ou embernar. Chove tanto nessa época, praticamente todos os dias, dias seguidos, sem descanso. Ninguém merece! Ai... Bateu até um soninho... Mas não tava com saco, não. Dormi tanto já. Basta. O que fazer então? Traquinar? Não, não é uma boa ideia. – Olha, penso logo na desgraça. Rsrsrs... É o instinto. Rsrsrs... – Da última vez, quase botei a casa toda em fogo. Na cozinha, fui inventar de subir no armário, derrubei as panela que caiu pra todo lado. Maior barulhão. Me assustei. Dei um pulão que fui parar na geladeira. Escorreguei na toalhinha que cobria ela – pobreza da porra! – Me segurei com força nela, vim pra baixo com tudo. O radim que também tava lá, se espatifou no chão. Ficou mudo de vez. Saiu umas faisconas dele, rapaz! Deu curtocircuito da porra no fio que ligava ele na tomada. Queimou a instalação elétrica da casa toda, juntamente com os eletroeletrônicos que estavam conectados nela. Se foi geladeira, micro-ondas, tvs, som, computador. Preju total. Nesse dia, vi o que era caos. Foi um grita aqui, mão na cabeça, “ai, meu deus!”, “socorro, Jesus!”, corre pra lá, corre pra cá interminável. Entra vizinho, desconhecido, inimigo, todo tipo de gente e gentinha. O povo queria espetáculo! Não é todo dia que acontece uma coisa daquelas. A populaça não ia deixar isso passar de graça. Tinham que aproveitar. A casa tava um cinema de noite de estreia. Ninguém sabia o que fazer na hora. Todo mundo pegado de surpresa. Foi a Doideira só. Quando tudo se acalmou, aí que o bicho pegou. Buscando a origem do problema, chegaram a mim. Foi um pega pra capar da zorra. “Pega ele, segura esse miserave, ordinário!”, erra o que se ouvia em meio tanto palavrão, como os caralho da vida. Eu, que não sou besta, corri desembestado. Dei o sumiço. Se me pegam... Hum... Iam fazer de mim peça empalhada, o que seria pouco! (Rsrsrs...). Vendo tudo aquilo hoje, de fora, até que foi engraçado e emocionante. Foi hilário ver Mãinha correndo atrás de mim puxando o vestido pra baixo, que insistia subir e mostrar suas coxas gordas, e estrientas, e celulíticas; e Patrão, barrigudão, com perninhas finas de passarinho mirrado, se contorcendo e se equilibrando todo na cadeira pra me alcançar na estante, inútil! As Crianças que eram escrotas... Arremessavam tudo que encontravam. Queriam mais que me acertar; desejavam sangue! Nunca vi coisa mais cruel que criança. Ô coisinhas miúdas que não têm pena de nada! E todas estilo Capitu, só na sombra da inocência. Os tolos dos adultos ainda creem nelas. Eu não! Não sou otário. A mim não enganam mais. Quando vêm com carrinho e chamego pra cima de mim, fico logo desconfiado. Boa coisa não tá por trás daquilo; traquimaldade vem por aí. É só pagar caro pra ver, provar e sentir mais que na pele. Não mesmo! Não quero conta com elas. Sei quem são as peças. Elas lá, eu cá, na minha, de boaça. Enfim, é passado. É mais uma lembrança, como muitas. Sim, como ia dizendo, tava de mári. Até que...


...Até que eu tava olhando pro ar, sem me ligar em coisa alguma, com a cabeça bem longe, pensando sei-lá-o-quê, não lembro (deveria ser besteirol), e uma coisa estranha invade o espaço aéreo onde meus olhos estavam ligados. Uma criatura miudinha, magrinha, com asas, voando engraçada bem no meio do chuvisco, embalada pelo ventinho lerdo. Espremi mais ainda meus’ói pra ver se enxergava melhor. Tinha que saber o que era. Olhei... Olhei... Não dava pra perceber ao certo. Tava um pouco longe. Por ora, notava que era pequenucha e tinha asas – também, isso era fácil de deduzir, tava voando. – Aquilo me gritou atenção. Que loucura: como alguém tem coragem de sair debaixo de chuva? Ou é Danado ou Danada, ou muito Burro, ou tão Idiota o bastante pra tá na chuva e no frio de graça. Já viu que eu nunca ia fazer isso?! Olhe pra mim!A Bonita, não, ia que ia: linda, se achando, se sentindo, na maior – acho que deveria pensar que era a porradona do pedaço. – Perambulando pelo ar, veio se aproximando de mim aos poucos, sem pressa, como se estivesse curtindo seu passeio molhafrio. Quando tava bem pertim, vi o que era: uma libélula... Não! Era A Libélula! Mesmo anã, tinha que admitir: era linda demais. Cheia de charme, movimentava seus pares de asas colortransparentes numa delicadeza... Era um misto de cores vivamente encantadoras: vermelho, amarelo, prata, roxo, preto, branco, num arranjo que tornava seu corpo esbelto uma aquarela em mosaico. Estupendo! Fiquei de boca aberta. Muito graciosa. Realmente obraprima. Não, mais! Uma dádiva (se de Deus, ou do Diabo, ou sei lá de quem, ou do quê; mas que era, isso lá era, sim). – Dava vontade de ter ela pra mim. E olha que eu não guento ver inseto que logo quero pegar pra brincar. Largo só quando judio tanto até matar o bichinho (ririri). Com ela, não! Foi tudo diferente. Era outra a história e o caso. Ela, eu ia fazer de bonequinha de cabeceira de cama. Ter ela lá só p’admirar. Minha. Unicamente minha! – Olha, passado esse estágio de feitiço, raciocinei com o inconsciente: primeiro o choque que sua investida na chuva me causou, em seguida a catarse que sua beleza me proporcionou, depois foi a vez da suspensão onde eu fiquei me perguntando contorcivo: que misera essa coisinha lindamente delicada tava fazendo exposta num tempo tão ruim? Ela ia acabar se estragando, corroendo sua beleza e até podendo morrer mesmo. Isso não podia acontecer. Precisava dela, algo já me impunha isso. Especulava: será que não girava bem da cabeça? Ou tava desesperada por algo ou alguém? Ou alguma coisa muito ruim lhe aconteceu ao ponto de querer se suicidar? Tinha que ser alguma coisa. Eu tinha que descobrir e até ajudar a bichinha. Não sou tão escroto como posso parecer. Também sou altruísta; mesmo que esse altruísmo trabalhe a favor de meus caprichos. Bem, isso não importava. O que valia era que eu tava afim de ser amiguinho dela (rsrsrs). – Finalmente algo interessante pr’eu ocupar meu tempo.


No momento que ela tava bem pertinho, chamei ela e falei de modo bem amigável, como se já conhecesse ela, esbanjando simpatia. Ninha, ô ninha, vem cá. Me diga uma coisa, minha linda: por que a princesinha tá aí solta nesse tempo ruim, tomando chuva, comendo frio nesse vento? Não vê não que isso vai te prejudicar, menina? Pode quebrar uma asa sua, uma antena, uma patinha, deixar você doente ou quem sabe até lhe arrebentar toda, maluca; basta pra isso o tempo fechar de vez, e aí você vai ver o que é pau pra armar barraco! Sai daí, neguinha. Se protege dessa chuva. Vem pra cá. Aqui tá sequinho, seguro e quente. Vem, mãe, vem. É até bom que conversamos, batemos um papinho descontraído, matamos o tempo... Tô aqui sozim. Maior chatice. Fazemos companhia um ao outro. O que acha? Vi você sozinha, resolvi te chamar pra cá. Sou um ótimo indivíduo. Possuo estirpe nobre. Sou do bem. – Eu doido que ela viesse logo. Queria era agarrar ela, prender e ficar pra mim na primeira oportunidade, que não desperdiçaria jamais. – Contudo, entretanto, no entendo, todavia, porém ela não foi nem era besta como eu tinha pensado. Ao contrário, ela era muita da esperta. Maldou facilmente minha intenção verdadeira ficou bem ligada em meus movimentos e palavras. Quando estava falando com ela, ela tava próxima, em uma distância segura onde eu não poderia pegar ela sem gastar muito esforço, o que daria tempo dela fugir se caso eu tentasse algo. Meia que desconfidissimulada, ela foi saindo pela tangente, escorregando. Não, painho. Brigada mesmo, mas aqui tá bom pra mim. Não se ocupe comigo, não, tá? Seu que você é óóótimo ser e tá com as melhooores intenções comigo. Mas não precisa, não. Tá ótimo aqui. A retada perecia que tinha lido minha mente e descoberto tudo. Impossível. Eu deveria ter dado algum mole, sei lá, um olhar, tom de voz, ansiedade, insistência, alguma coisa fez ela desconfiar e notar tudinho. Danada! Retruquei de pronto. Oxe! Como já se viu, um clima desse, e você ainda diz que tá bom pra você! Lesou, foi? Acorda, Alice! Vem pra cá de vez. Espera passar a chuva e depois você vai pra onde você quiser ir, pra onde você já tava indo. Quem disse que ela comia meu H. Com temperamento docemente indiferente em sua afetação, permaneceu firme em sua posição. Poxa... Tanta gentileza sua em se preocupar comigo... Estou até lisonjeada. Nunca imaginaria que mereceria tamanha preocupação e nobres cuidados logo vindo de criatura tão eminente como a sua. Mas não dá mesmo. Tô de boa. Quero não. Brigada de verdade. Prefiro ficar aqui. Até gosto, sabia? Adoro dia como esse. A chuva me faz bem. Amo esse ventinho. Gosto do clima fresco de hoje. Faz bem pra minha carapaça. Me deixa mais jovem, fresca, saudável. Além de lembrar que dia assim, tudo fica mais tranquilo. Quase nenhuma confusão. Espaço livre, fico solta, à vontade, quase sem abuso ou ameaça dos outros. Dia de sol não. Dia ensolarado é o erro! Prefiro ficar recolhida. E como o céu tá pra raia, saí bem cedinho e tô curtindo meu dia maravilho. Acho que vocezinho poderia fazer o mesmo. Quer não? Vem, bem, vem (rsrsrs). A salafrária tava tirando comigo. Ela sabia que jamais iria sair de casa e ir pro tempo aberto me molhar e passar frio, nem morto! Sei quem sou, do gosto e o que repugno. Sai pra lá! Nada nesse mundo me faria submissão a esse absurdo que a transloucada me propunha num convite sarcasirônico. Raiai... Florzinha, acho que você me entendeu mal. Queria apenas ser gentil com você e te ajudar a..., disse fechando logo a cara e mudando o tom de voz. Irritado e já sem paciência estava por todo. Aliás, paciência, conversinha não é comigo. Que nada, nego, eu também tô sendo tão legal. Achou que eu ia desejar algo ruim pra você? Nunca, nunca, nunca, nunquinha mesmo. (Risos.) Nem te passe isso na mente. Sou gente boa, me cortou com aquele tom de voz irritante de quem tá sendo amável forçosamente, e sem esconder, sabe (o que é pior!)? Ela queria que eu soubesse mesmo que ela tava tirando onda com’inha cara. Ai... Fiquei fila da puta! Eu querendo fazer um de Irmã Dulce, e ela de Cabecinha Branca comigo, tirana. Esquentou meu sangue. Não poderia deixar barato. Fui logo pra grosseria. Venha cá, vei, colé a sua? Tá pensando que é assim, é? Chega macia e já vai se espalhando como se aqui fosse casa de amiguinho besta que não sabe dizer não pro oportunista do coleguinha explorador? Se liga, rapá! Se plante, que aqui as coisa se resolve de outro jeito. O plantão aqui é forte. Não como regue de ninguém, não, tá! Ah... Pra que fui dá um de miseravão. Ela se transformou. Alteração. Fiquei até sem ação, não esperava aquilo. Seu porra, você chega com essa conversinha de cudoce da misera, pensando que vai me levar nesse papinho de menino donzelo e ainda tá se achando mais macho que os’otro, é? Apesar de libélula e fêmea (e com muito orgulho!), tenho mais peito que você, seu bundão. Acorda pra vida, mimadinho! Tá vacilando, é? Não dá mole, não, seu Zé Ruela! Tá pensando que levo boa vida de mãezinha e paizinho como você? Dou duro, caralho! Ralo todo dia pra conseguir o que comer, sobreviver na real, e não em contodefadas. Não sou como você: como, bebe, dorme, arrota, bufa, caga, não! Enquanto você taí caçando mosquinha e pegando baratinha, eu tô na geral me fudendo. Sou atitude, maluco. Aqui mora a coragem, a ousadia, a persistência, a criatividade, o jogodecintura. Moleque, se eu contasse um tantinho que já passei ou vivo, você ia pirar. Aqui, sim, o plantão é duro. Não aí, na casinha de bonequinha. Fui entupido. A miserável me escrachou. Não tive mais reação. O que falaria depois daquela baixaria toda? O que ela tinha de danada, faltava em tamanho. Vagabunda! Eu não poderia deixar barato. Tinha que passar o troco. Não sou de ficar por baixo, nunca, senão não sou eu! Aí partir pra apelação. Olhe, serzinho inferior, repare bem pra mim, tá vendo, sou superior a você. Sou mamífero, tenho sangue quente, carnívoro, acima na cadeia alimentar, além de viver muito mais tempo que você. Aonde você é melhor que eu? Aonde? Vivo no luxo. Você, na dureza. Sou nobreza, véi. Vê lá como se dirige a mim. Breve silêncio. Estou afetada profundamente com tudo que você me falou. Parabéns. Aplausos para você – e batia palmas frígidas. – Você tem toda razão, Meu Sinhorzinho. Tenho que prestar mais que respeito ao Senhor, tenho é que lhe servir zelosamente. Eu inflava o peito e olhava com ar arrogante pra ela. Isso mesmo. Ainda bem que você sabe. Até que não é tão burra como eu pensava. Se ouviram altas gargalhadas. Kakaka! Aiaiai... Me poupe... Ó Minha Santa Goiabinha! Hoje tive certeza de que ironia e sacarmos só tocam os que têm capacidade cognitiva para absorvê-las, os inteligentes. Os topograficamente rasteiros estão além de margem de compreender as intempéries da sapiência. Clarice se espantaria com sua figura torpe, tosca, vil, perniciosamente arrogante, afetadamente estrangulada, superior em V-A-Z-I-O à coitadinha da Macabéa, ambos dignos de pena e cuidados. (Sorriso.) Sensibilidade, em você?Nem a quilômetro de distância! Eita animalzinho estupidamente ausente de nuances do Eu. Acho que a sua introspectividade se resume ao espelho ludibriador. Quanto à sua idiossincrasia, coitada, essa só deve conceber uma dimensão das coisas; sem falar que você nunca deve ter se permitido ao Prisma da Alteridade. De fato, você é superior a todos os seres. Mas em sua perspectiva Jactar-se, burramente reflexiva, a qual busca em si unicamente um Devir que nunca chega, e sabe por quê? Por que é desnutrida. Filhote, cria coragem e vai dar um passeiozinho pelo mundo, tá! Veja que há muito mais coisas que o seu rapo. Se jogue. Cresça. Se amplie nas experiências, se fortaleça nas trocas, se comunique, busque aos outros, quebre um pouca a cacholinha bobinha, bobinho. Você ainda tem jeito. Basta arregalar bem seus “porros” e deixar que a própria dinâmica das coisas vai lhe inundar de sensações muitas; e aí você vai saber o que é lamber instantes de Satisfação Plena, Catarse, e roçar em sexo a Felicidade. Bem, já tá na minha hora. Tchazinho, fofinho. Se cuida, tá! Foi um prazer enorrrme (rsrsrs). Beijos. A Libélula foi embora mais sublime que chegou. Eu, lá na janela, com a cara no ar outra vez. Não tinha entendido direito o que ela falava – na verdade, não compreendi porra nenhuma! – Só achava estranhamente chique e irritante.


Fiquei mais uma cara olhando pro ar, e sem ver nada. Eram as palavras dela que enchiam minha mente: permissão, devir, nuance, prisma de alteridade, topografia rasteira, experiências, idiossincrasia, lamber satisfação pra ter catarse, roçar felicidade... Ai! Era muito pra mim. Pra que falar tão difícil assim? Complicação. Exibida, isso que ela era. Se eu quisesse também faria o mesmo, senão muito melhor. Ela deveria ser mais humilde, isso sim. A vontade foi abocanhar ela ali mesmo de uma só vez e dar fim a tudo, escrota! Tentei esquecer o vexame e voltar para normalidade de meu mundinho. Ops! Foi isso mesmo que pensei: voltar para normalidade de MEU MUNDINHO. Não! Eu não sou desses de ter mundinho, melhor, de viver em um. Sou... Sim, sou... Não vinham predicativos. Minha mente tava vazia de conceitos, ideias. Eu estava numa sensação de esvaziamento muito incomodestranho. Olhava de um jeito torto pra mim mesmo. Percorria meu corpo com os olhos. Um olhar esquisito como se eu quisesse enxergar ao contrário: em vez de ser do olho pra fora, era uma tentativa de ver do olho pra dentro. Que maluquice. Nunca aconteceu aquilo comigo. Parecia que eu não era eu. Péra! Deixa explicar melhor. A sensação era outra, inédita. Tinha impressão que eu tinha me deslocado do corpo. Não! Mais: não apenas do corpo físico, também da identidade e da personalidade. O espírito parecia que estava em re-iniciação, e não reconhecia o lugar onde ele estava alojado há anos. Arrepio. Boca seca. Pensei: estou louco? Será que pirei de vez? Ainda tô vivo? Isto tudo não será um sonho? Não, não era alguma daquelas opções-questionamentos. Eu estava bem vivo, sadio e lúcido. Sim, em outra consciência. Melhor, agora posso notar que foi minha IN-CONS-CI-ÊN-CIA que tinha aflorado e tomado a voz. Ela que estava no palco agora, no fronte, sem máscaras, sem trejeitos. Ela era crua, nua, devassa, tirana, expostamente ela, denunciando meu ponto fraco, me levando pra crise. Desesperei! Mordi minha calda. Dor! Corri em círculos pelo quarto energicamente até faltar combustível. Cansei. Caí largado no chão – pra ser mais fiel, eu desabei mesmo, já não tinha controle sobre os músculos. – Um zumbi? Talvez. Ou quem sabe um híbrido dele e algo mais que foge da sapiência inata ou adquirida. Sei que estava em um tipo de transe (de transitoriedade) muito perturbador. Muitas coisas na cabeça ao mesmo tempo. Lembranças. Vozes. Sons. Imagens. Dor. A retrospectiva de minha existência caminhou pela mente em fleches, escorregando pelo resto do corpo. Entrei em convulsão de mim unicamente atuante no interno. Tremia. Me encolhia. Não era frio, e, sim, um calor estelar que me consumia por completo. Sim, eu estava queimando! Em breve, seria cinzas. E as cinzas não chegaram. As brasas queriam sua vez. Não foram embora. No chão, eu fui paralisia. Espaço-tempo deixou de ocorrer naquele instante. Eu estava deslocado do plano existencial normal para uma outra permissibilidade, um tipo medonho de ser-estar-ocorrer. É complicado descrever. Só vivenciando mesmo pra saber o que foi aquilo. Enfim, de repente, tudo se acalmou. Foi abrupto. Parecia que o coração e a respiração tinham parado. Não existia mais nada na mente. Fui silêncio completo, pleno. Sono me fez seu embrião que aguardava o final de sua gestação para se inaugurar num outro mundo. Eu estava preste a nascer outra vez.


Até onde me lembro, todas as vezes que dormia, mesmo que fosse um tênue cochilo, eu sonhava. Sonho bobo, sonho fantástico, pesadelo, sonho romântico. Sempre tinham sonhos. Mas daquela vez não. Eu dormi profundamente. Não tive sonho. Apenas ouvia numa altura estrondosa os ruídos do funcionamento de meu corpo. Era Vida. Talvez para me lembrar que ainda não era a vez da Morte. Não sei por quanto tempo. Certeza é que aquilo durou o bastante p’eu notar todo meu ser. Um notar outro; foi o interno que se foi buscado, exposto, escrutado. Conheci a mim, e neguei O Conhecer tecido pelos outros. Com certeza, uma das poucas vezes que conhecemos sem reconhecer. E, como se algo decidisse que já era o suficiente, fui arrebatado por uma força que, ao descarregar energia torrente, balançou minhas estruturas. Estava retornando pro externo. Primeiro foram os ouvidos. Eles foram rompidos de uma única vez. Ouvi todos os sons possíveis em conjunto. Era orquestra. Os músculos, antes rijos, passaram a relaxados. A circulação sanguínea há pouca lesma, assumiu o ritmo Axé com Bolsa Nova. A respiração saiu da cadeia e foi pro campo. Em seguida, foi a vez dos olhos. Eles se abriram lentamente, cada um em seu tempo, segundo vontade deles individualmente. A luz, fragmentada, entrava devagar, pedindo licença, carinhosa, beijando todo o tecido ocular e lhe presenteando com as cores, muitas, várias, alguns até então inéditas. Começaram a aparecer formas, contornos. Girava o olhar sem mexer a cabeça. Estava no quarto. Mas parecia outro, não porque tivesse mudado as coisas, e, sim, porque eu via de uma outra maneira. É como se eu antes não enxergasse o que tava na cara, e naquele momento eu me abraçava com eles. Nunca tinha achado o quarto legal. A paz me inundou. Era ali meu lar. Estava em casa. Segurança. De pronto, larguei olhar sobre mim. Tudo ali, não faltava nada, completo, inteiro, e, igualmente, diferente. As coisas que eu não gostava e até odiava em mim sumiram, não porque elas simplesmente desapareceram, e, sim, porque eu já não concebia elas como antes. Via outra beleza nelas. Eu me aceitava por todo e com tudo, respeitando a lógica de cada parte, percebendo e aquiescendo a diversidade que existe no mundo em mim. Foi belo. As pernas queriam ficar de pé. Levantei. Espichei o corpo. Acordado. Ativo. Lambi meus beço. O paladar tava aguçado. As pontas de minhas patas sentiam o frescor do chão calçado de porcelanato. Eles queria chão nu. Respirei fundo. Meus pulmões inflaro com o cheiro de terra molhada carregada de outros odores múltiplos e mesclados. O desejo foi único. Soltar para janela. Como vontade tem pressa, fiz logo. Da janela, a mesma vista que antes achava monótona e pobre, passou a ostentar outra agitação e riqueza. Era como se tudo fosse novo.


Sim, tudo era novidade, sim. Nada se apresentava para meus sentidos como anteriormente. Tudo e todos traziam em si surpresas. A cada fraçãozinha de tempo, eu era agraciado com algo. Provava tudo. Nada escapava. A idiossincrasia que se deleitaaava... O ventinho frio me roçava gostoooso... Deixava meus pelos úmidos, macios e sedosos. Conseguiu arrancar o sorriso de minha boca. Dé-lí-ci-á! Levantei os’ói pro céu. Que fantástico! Era lindo demais. Muitas nuvens, gigantescas, todas unidas como um infiniiito lençol oponentemente cinzanegro, pesado, cobrindo a todos cá em baixo, tornando o dia uma outra noite – a Noite é encantadora. Inspira os desejos mais desejosos e fomenta os sentimentos mais indomáveis. Agora, a Noite-Em-Dia, essa é singular em tuuudo. É dia, e é noite ao mesmo tempo. Os ânimos dos seres mudam. Existe o profundo senso de respeito. Todos ficam mais reservados e o estado de vigília se aguça. É a vez de ser espectador diligente. O teatro está prestes a começar. Todos em seus lugares. Voilà! – Trovões e Trovoadas iluminavam tudo, Raios riscavam o céu em rachaduras brilhanserpentes e faziam a comunicação entre céu e terra, e toda atmosfera se enchia de Pujança da Natureza: era o grito da Dança da Continuidade. Nada se cria, tudo se reconstrói numa farsa criativa. Ciclos intermináveis. Origens? Novo? Nada encontrado. Outros conceitos. O vento ia se fortalecendo. As plantas, nervosas, seguiam ele balançando seus cimos no sabor das torrentondas de ar. O solo, mesmo molhado, clamava por mais água, junto com todos os outros vegetais e seres (principalmente os minerais. Esses queriam reações de si e químicas entre vários). Insatisfação, por ora. A atmosfera se movimentava agilmente, se organizava, se arranjava, ia dar o que tanto queriam. Ela era o ceio cheio de leite pronto pra amamentar os famintos. Então, veio chuva. Generosidade. Gotas minúsculas se juntavam a outras até formarem aberrações aceitáveis e desejáveis. Quando chegavam no chão, se ouvia o estralo que elas faziam e se notava a satisfação do solo e dos que nele se firmavam. Caía com vontade, forte, rigorosamente bonita, soberba, poderosa. Em instantes, lagos cheios, rios transbordantes, planaltos escavados, planícies inundadas – é maravilindo ver as águas, com toda sua potência, arrastar e carregar tudo que está em sua frente. Nada resiste. Tudo é levado. Após sua passada, também muita coisa fica. Fertilização. Mudança. – Paisagens transformadas e em metamorfose. Destruição. Construção. Refazer. Horizonte era cortina acinzentada. Não dava pra ver mais nada. Tudo era um cinza de águas respeitando a gravidade. Eu, já transgredindo o encanto, me exigia Gozo. Queria passar de espectador a co-ator. O convite veio de cada celulazinha que me fazia Colônia Vida. Não demorei. Aceitei. E mergulhei naquele mundão de chuva.


Uiuiui... O que foi aquilo? Que coisa mais maravilhosa! Nada comparável com tomar banho de chuva. Sentir ela te tocar por todo, tomando você por completo, preenchendo todos os espaços secos. Naquele instante, não sabia o que era medo nem repugnância de água. Muito pelo contrário, quanto mais tinha ela em mim, mais desejava ela. Corria livre, desembestado. Subia telhados, escalava árvores, aportava em lajes. Ia ao ponto mais alto. Abri a boca. Deixei ela me alimentar. Confirmou o que já se sabe: sou líquido em maioria. Me reabasteceu! Que gostoooso... A água da chuva é muito saborosa. Mata de morte matada a sede, que ali foi outra. Estava em GOZANDO. Parado, na mais alta das lajes, curtia tudo que o dia chuvoso me ofertava farto. Eu, grato, me entregava inocente, abrindo todas as portas possíveis de minha ocorrência. Fiquei assim por um bom tempo, até a última surpresa chegar. Senti um forte baque em minhas costas. Corri a pata pra lá. Era alguma coisa grudada nela. Segurei e trouxe pra mim ligeiro. Queria saber logo o que era. Assim que botei meus olhos sobre a coisinha, completei a satisfação. Foi a Libélula que há um tempo atrás me ajudou a renascer. Ela tava exausta. Com ar de bêbada. Só se tirava dela risos de Alegria e soluços de Felicidade. Ela tava toda largada, aberta, satisfeita. Saci Pererê lhe fez visita. Eu contemplava ela em respeito máximo. Era toda realização de Vida. Nela, a Dinâmica já tinha completado sua jornada. E aí já não lhe restava mais nada. A Morte chegou inevitavelmente linda. Com ela, o Devir tornaria o corpo dela adubo de vida. Em minhas patas, antes, ela se despediu. Olá, meu lindãooo! Deu último sorriso. Essa foi a melhor imagem que já tive. Morreu à Oxum. Ela, sim, conseguiu ser a Felicidade. Eu, com ela, através dela, pude me conceber a tudo e, finalmente, entender o que tanto ela falou pra mim no nosso primeiro encontro. Só pude, então, lhe agradecer. Trouxe ela pra mais perto e lhe deu o Beijo de Amor e Amizade e Amizade e Amor. A lágrima escorregou de um dos olhos, e mais outra veio, e muitas chegaram. Saia chuva de mim também. Me unia a todo aquele espetáculo. Fui a parte do Continuum. Naquele agora, logrei tangenciar a satisfação, rocei a Felicidade. Fui elevado. Cheguei ao cume. Consegui, com êxito, me permitir aos outros e a experiências. Conquistas. O que um dia de chuva não faz! Nasci de novo. Renovado, ganhei o dia. Saciado, jamais! Sim, mais um! É o que está em mente desde o término daquele dia. Quero outros “dias chuvosos”, quero “outras chuvas”, porque sei que nenhum nem nenhuma serão como foi aquele e aquela. Cada um/uma trarão seus traços de intempéries e temperos. Que se faça o banquete! A vida pra mim ainda tem muito...


GLOSSÁRIO:

A preta de lá de casa: a empregada.
Alice: pessoa boba, ingênua.
Aff: interjeição.
Boaça: de boa, tranquilo, bem consigo e com os outros.
Bobe: bobeira.
Boresta: de bobeira, sem fazer nada, ocioso.
Brilhanserpente: brilhante e serpente.
Caralho: interjeição.
Colé: qual é?
Colortransparente: colorido e transparente.
Comer H: acreditar no que alguém fala/diz.
Comer regue: aceitar desaforo, afronta; temer ameaça ou ofensa de.
Cudoce: pessoa que fala demais, e nada faz; enrolada.
Danado: do verbo danar-se (irritar-se); retado; esperto, ágil, sagaz, traquino, abusado.
Da porra/ pra porra: modificador ou intensificador (bom ou ruim; muito, bastante).
Dar mole: vacilar, errar, cometer engano.
Dar sumiço: desaparecer(se), sumir, sumir com algo.
Dar uma geral: vasculhar tudo.
De boa: > boaça.
De graça: sem algum lucro; sem alguma intenção ou proveito.
Desconfidissimulado: desconfiado e dissimulado.
Desta: mesmo que deixa estar.
Dexa quéto: deixa estar.
Escrachar: ridicularizar.
Estar rebocado: fato, acontecimento, coisa mais que óbvia, clara, iminente.
Ficar fila da puta: irritar-se, danar-se, retar-se.
Filar a boia: comer da comida, geralmente sem ter contribuído com alguma coisa.
Fuder: prejudicar alguém ou algo (“pra fuder logo com cara”).
Incomodestranho: incomodar e estranho.
Interessemocionante: interessante e emocionante.
Juliano: como os soteropolitanos chamam um hospital psiquiátrico de Salvador.
Maravilindo: maravilhoso e lindo.
Mári: maresia; boresta.
Marrento: tirado, orgulhoso, pomposo, arrogante, chato.
Miseravão: espertalhão; forte; respeitado; temido; admirado; retado, danado; todo-todo.
Miserave: miserável.
Mole: > dar mole (“maior mole”).
Molhafrio: molhado e frio.
Na geral: no espaço livre, na rua, no campo, ao ar livre.
Não estar com saco/ não ter saco: não ter vontade, desejo de.
Neguin: neguinho < negrinho.
Num tapa: com rapidez, de imediato, logo.
O que há: o melhor, o mais belo.
Ops!: interjeição.
Os’ói: os olhos.
Papito: derivado de pai.
Passar de graça: > de graça; sem deixar vestígio ou marca; pouco ou nada notável.
Péra: espera.
Pertim: pertinho.
Porra!: interjeição.
Porradona: danado, retado, o que há.
Preju: prejuízo.
Rabo de olho: olhar de canto de olho; desconfiado; irritado.
Radim: radiozinho.
Raia: um tipo de pipa quadrangulada muito comum em Salvador.
Raiai: interjeição.
Rango: comida, geralmente almoço ou janta.
Renca: grupo, conjunto, galera, muita gente ou coisa juntas.
Retado: do verbo retar-se; ver danado.
Rsrsrs: risos; o mesmo que ririri.
Sacana: quem comete sacanagem; sacripanta.
Sacanear: cometer sacanagem; prejudicar; aproveitar-se ilicitamente.
Sarcasirônico: sarcástico e irônico.
Sozim: sozinho.
Tirar/ tirar onda: fazer alguém de besta.
Todo-todo: > o que há; danado; retado; porradona.
Torrentonda: torrente e ondas.
Traquimaldade: traquinagem e maldade.
Uma cara: há muito tempo.
Vacilo: mole; erro.
Vacilão: otário.
Vei: vocativo derivado de velho; cara.
Zé Ruela: pessoa besta; otário; vacilão.

DIÓGENES SILVA

2 comentários:

  1. Impossível não almejar ser um gato, mas não um gato qualquer, tem que ser esse. Cada um de nós sonha em ser um gato assim. Não precisamos de todos os defeitos que ele possuia, mas sempre nos incomodamos com certas coisas simplesmente pelo fato de não tentarmos enxergar de uma outra forma.
    Por que devo consigo pensar mais facilmente na chuva que derruba casas, do que na chuva que brota a colheita?
    Nem todos terão uma libélula pra nos dar o recado, pra avisar gentilmente a hora da mudança.
    Toda hora é hora. Basta ter vontade, e como vc já disse... "vontade tem pressa".
    Muito bom!!!

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  2. Curti muito a forma como vc escreve, seu estilo é próprio vei diferente de tudo que eu já vi. Gostei bastante também da idéia que o texto passa, com uma leitura instigante em vários momentos faz o leitor pensar e refletir sobre varias questões da vida.

    Laerte Rabelo

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